terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Adoecimento docente (III)


Seria necessário gastar mais de uma postagem para comentar o livro Condições do trabalho e suas repercussões na saúde dos professores da educação básica no Brasil: estado da arte, resultante de pesquisa  realizada em 2007 e coordenada por Marcia de Paula Leite e Aparecida Neri de Souza,  professoras da Unicamp, sobre a qual venho falando nos últimos dias. Mas, como estou bastante cansado neste final de ano, vou destacar apenas dois pontos dessa publicação (disponível, na íntegra, aqui - site da Fundacentro).

Na fundamentação teórica do estudo, os pesquisadores valeram-se, entre outros autores, do espanhol José Manuel Esteve, que cunhou o termo mal-estar docente. A expressão, segundo Esteve, " é intencionalmente ambígua (...) sabemos que algo não vai bem, mas não somos capazes de definir o que não funciona e por quê?"

Para o espanhol,  

"o mal-estar docente é um fenômeno social do mundo ocidental, que possui como agentes desencadeadores a desvalorização profissional, concomitante às constantes exigências profissionais; a violência, a indisciplina, entre outros fatores que acabam por promover uma crise de identidade em que o professor passa a se questionar sobre a sua escolha profissional e o próprio sentido da profissão".

Todos esses problemas estão diretamente relacionados às condições sociais do trabalho docente, indo além das eventuais inadaptações de um ou outro profissional. Por isso José Manuel Esteve "irá referir-se ao mal-estar docente como a um tipo de doença social causada pela falta de apoio da sociedade ao professor, provocando o desencantamento com o trabalho realizado".

A escola vem enfrentando um longo processo de sucateamento e desprestígio, ainda mais em se tratando de instituições públicas. Sua principal missão - ser um lugar, por excelência, de ensino e aprendizagem - encontra-se comprometida (sendo direto e sem tergiversações idealistas e irreais, reconheço que não se inventou, na contemporaneidade, outro espaço onde crianças e adolescentes possam ficar sob a supervisão de adultos, durante parte do dia, enquanto seus pais trabalham; boa parte das unidades escolares hoje em dia limita-se a cumprir essa função). Tudo isso tem relação direta com o mal-estar que acompanha o principal "insumo" da educação formal/escolar: a professora/o professor. 

Um mal característico da profissão docente no mundo de hoje é o burnout, devidamente discutido no estudo da Unicamp/Fundacentro. Cita-se o abrangente trabalho coordenado por Wanderley Codo, da UnB - Educação, carinho e trabalho: Burnout, a síndrome da desistência do educador, que pode levar à falência da Educação, considerado um dos mais importantes livros sobre o tema publicados no Brasil. Defende-se neste a ideia de que o sofrimento psíquico dos educadores origina-se na quebra do circuito afetivo que envolve professores e alunos. 

A definição apresentada no estudo da Unicamp/Fundacentro diz que

" O Burnout é uma síndrome que vai avançando com o tempo, corroendo devagar o ânimo do trabalhador, que vai se apagando devagar. Burnout é uma desistência de quem ainda está lá, encalacrado em uma situação de trabalho que não pode suportar, mas que, concomitantemente, também não pode desistir. O trabalhador arma inconscientemente uma retirada psicológica, um modo de abandonar o trabalho, apesar de continuar no posto. Está presente na sala de aula, mas passa a considerar cada aula, cada aluno, cada semestre, como números que vão se somando em uma folha em branco".

Conheço vários educadores que apresentam as características acima descritas, inclusive este blogueiro...

Mas são as questões levantadas, a partir do livro de W.Codo, pelos autores de Condições do trabalho e suas repercussões na saúde dos professores da educação básica no Brasil  que gostaria de destacar:

" [...] em que medida a alienação do professor é considerada na formulação das políticas educacionais, ou seja, em que medida os responsáveis por tais elaborações compreendem o fazer cotidiano dos professores, considerando as especificidades locais ou regionais? Outro ponto a ser compreendido diz respeito à importância da afetividade para a realização do ato de educar. Há que se questionar em que medida este aspecto não poderia estar sendo superdimensionado. Ou seja, não se poderia pensar em uma relação, baseada no respeito, consideração e solidariedade, seguindo os princípios da cidadania, ainda que esses princípios não excluam a afetividade?".

Termino com uma questão desagradável, do tipo "ovo-ou-galinha": quem se tornou (ou se tornará) irrelevante primeiro: o professor ou a escola?



BG de Hoje

O músico Wally de Backer (mais conhecido como GOTYE) não deve ter do que reclamar em 2012. Foi dele o hit mais tocado e comentado do ano - o que ajudou muito na venda de seu disco, Making mirrors (aliás, um ótimo trabalho). Nesse CD, gosto principalmente de State of the art, um dub "computadorizado" acachapante.


sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Adoecimento docente (II)



Volto a falar do adoecimento que vem afligindo boa parte dos trabalhadores da educação do Brasil nas últimas décadas. Em postagem anterior, tratando do tema, mencionei o projeto denominado Condições do trabalho e suas repercussões na saúde dos professores da educação básica no Brasil. "Encomendada" pela Fundacentro (Ministério do Trabalho e Emprego) e parcialmente financiada pela Secretaria de Educação Básica (MEC), a pesquisa teve a coordenação de duas professoras da Unicamp - Aparecida Neri de Souza e Márcia de Paula Leite - contando, entretanto, com a colaboração de profissionais de outras instituições na equipe do projeto.

Como disse noutra oportunidade, pode-se ter uma breve exposição do que foi este estudo através de matéria publicada no Jornal da Unicamp* (disponível aqui). Um dos aspectos do ofício do professor , observado na pesquisa, diz respeito à

"necessidade [...] do estabelecimento de um vínculo afetivo e emocional para o exercício da atividade docente. Entretanto, o trabalho [de pesquisa] sugeriu que este vínculo está sendo bloqueado pelo jogo de interdições que caracterizam a atuação dos profissionais da educação. ' Isso define o aparecimento do sofrimento psíquico, que ocorre quando o investimento, afetivo, emocional e cognitivo, não tem retorno, como nas relações entre professor e aluno', exemplifica [uma das coordenadoras do estudo, Aparecida] Neri. ' Mas isso não fornece base e argumentos fortes para responsabilizar a qualificação da força de trabalho dos profissionais da educação pelas mazelas e pela baixa qualidade do ensino no Brasil', esclarece" [grifos meus].

Já declarei que considero a frustração a característica mais marcante do trabalho docente na atualidade (falo apenas da educação básica, na qual estão os professores que enfrentam o touro à unha, de verdade). Não há sentimento de realização naquilo que fazemos (há tempos não experimento essa sensação). A maioria dos usuários (pais e mães, indiretamente, e os estudantes, filhos deles, diretamente) nos desrespeita, todos os dias, sem constrangimento algum. A frequência escolar, hoje, é apenas um "remédio" amargo que se engole por causa da imposição legal.

Que males contribuem para o adoecimento dos professores? Segundo a pesquisa:

" [...] exposição a temperaturas inadequadas, ruídos, superlotação das salas, cansaço extremo pelas longas jornadas de trabalho, dupla jornada das mulheres, falta de tempo para si e para se atualizarem, angústia pelas exigências sociais em termos de atividades, complexidade das tarefas aliada à falta de recursos, problemas sociofamiliares dos alunos, ritmo de trabalho, multiplicidade de tarefas simultaneamente às posturas desconfortáveis, pouca frequência de pausas, falta de valorização, burocratização das atividades, falta de diálogo com a administração das escolas e expansão dos contratos de trabalho temporários e eventuais" [grifei os que, pessoalmente, mais me incomodam].

Quais sintomas esse processo de adoecimento provoca? A pesquisa lista vários, mas vou destacar apenas um trecho da matéria do Jornal da Unicamp:

" Esse mal-estar passa a se manifestar em sentimentos negativos intensos como angústia, alienação, ansiedade e desmotivação, além de exaustão emocional, frieza perante as dificuldades dos outros, insensibilidade e postura desumanizada. A profissão docente é hoje considerada como uma das mais estressantes, uma profissão de risco, conforme a Organização Internacional do Trabalho (OIT)".

Não tenho dúvida de que me tornei um ser humano pior desde a minha entrada profissional no serviço educacional público.

Na próxima atualização, começo a comentar o livro que resultou do projeto Condições de trabalho e suas representações na saúde dos professores na educação básica do Brasil.

* Por que os professores adoecem? Jornal da Unicamp. Campinas, Ano XXIV, n. 447, 9/22 nov. 2009. Disponível em <http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/novembro2009/ju447_pag0607.php#> Acesso em 25/10/12 


BG de Hoje

Dias atrás me referi a uma ligeira confusão arrumada no boteco por dizer  que considerava Aldir Blanc um letrista melhor do que CHICO BUARQUE. Para botar água na fervura, o BG de hoje será Hino de Duran, uma das dezenas de excelentes canções de Buarque, e que, por diversos motivos, tenho ouvido muito nos últimos dias. No vídeo, o cantor/compositor está acompanhado dos Paralamas do Sucesso, no saudoso programa de TV Chico & Caetano.


quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Poeta: quem é?

Esta eu "pesquei" lá no blog do Antonio Cicero (Acontecimentos):

  W.H. Auden: sobre o poeta e as palavras*


"Um poeta é, antes de qualquer outra coisa, uma pessoa que ama apaixonadamente a linguagem. Se tal amor é sinal de seu dom poético ou é o próprio dom -- pois a paixão é algo dado, e não escolhido -- não sei, mas é certamente o sinal pelo qual se reconhece se um jovem é potencialmente poeta ou não.

'Por que você quer escrever poesia?' Se o jovem responde: ' Tenho coisas importantes a dizer', então não é um poeta. Se responde: 'Gosto de curtir as palavras, ouvindo o que elas têm a dizer', então talvez se torne um poeta".


* AUDEN, W.H. Squares and oblongs . In: ARNHEIM, Rudolf; AUDEN, W.H.; SHAPIRO, Karl; STAUFFER, Donald A. Poets at work. Introdução de Charles A. Abbott. New York: Hartcourt, Brace and Company, 1948, p.170.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

O direito das minorias



Poucas vezes vi um servidor público ser tão badalado quanto o atual presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Joaquim Barbosa. Começou com sua atuação no "caso Mensalão", do qual era o relator. E culminou, na semana passada, com a cerimônia de posse na presidência do STF e que parecia, em certos momentos, um festival de tietagem em torno de uma dessas "celebridades" fabricadas pelos meios de comunicação de massa.

O ministro, hoje, além de estar à frente de um dos poderes da República, adquiriu status de símbolo para a causa da negritude e representa uma esperança em direção a um Estado mais sensibilizado, consciente e atuante em seu papel de combate ao racismo.

Há uns dez anos li um artigo escrito por Joaquim Barbosa. Obviamente, não imaginava que o articulista teria tanta projeção como hoje (para falar a verdade, era um total desconhecido para mim). Por considerar ainda válida aquela análise, comento o texto nesta postagem.

Em O uso da lei no combate ao racismo: direitos difusos e as ações civis públicas*, Barbosa escreve logo de início (como se estivesse prevendo o destaque que alcançaria nos últimos meses): " A luta por transformações sociais constitui indiscutivelmente tarefa de caráter eminentemente coletivo. Uma única pessoa, seja ela um líder político, religioso ou intelectual de grande influência, por mais influente que seja, jamais terá força suficiente para conduzir sozinho o processo de mudanças necessário à promoção da justiça social".

Após fazer "esta singela constatação", o autor afirma que, no país,

" o establishment jurídico [...] formado essencialmente por membros dos estratos conservadores da sociedade, sempre foi majoritariamente individualista, poucos dentre esses conseguindo dissimular o sentimento refratário que nutrem em relação a todo e qualquer instrumento de defesa coletiva da sociedade e de alguns segmentos".

A justiça brasileira, em sua opinião, pensa mais no indivíduo isoladamente do que em promover ações que atinjam grupos maiores de pessoas. Mas isso vem mudando, principalmente a partir da promulgação da Lei nº 7.347/85 (a Lei da Ação Civil Pública) e da Constituição de 1988, graças a qual o Ministério Público teve seus poderes ampliados (e Joaquim Barbosa, num primeiro momento, me pareceu valer-se o artigo para enaltecer a instituição; na época, ele era Procurador da República no Rio de Janeiro).

No cenário atual, reconhece-se "uma categoria intermediária de direitos, situada a meio caminho entre os direitos puramente individuais e os direitos e interesses gerais da sociedade como um todo". Barbosa, então, passa a discutir os conceitos de direito coletivo e direito difuso e como estes - sobretudo o segundo - podem ser defendidos, legitimamente, pelo MP, utilizando o instrumento jurídico da Ação Civil Pública. Os direitos daqueles pertencentes a uma mesma raça/grupo étnico estão nessa categoria.

Segundo o articulista,

"a busca de solução aos problemas de grupos étnicos minoritários interessa não só a esses grupos mas também à sociedade brasileira como um todo, ao Estado Brasileiro e, cada vez mais, às forças econômicas hegemônicas no país, que têm todo o interesse em ver integradas à sociedade de consumo as grandes massas marginalizadas da nossa sociedade, compostas majoritariamente por pessoas de descendência africana".

Outro aspecto destacado é o do acesso à justiça (geralmente interditado ao pobre no Brasil por causa dos altos custos). Diz Barbosa: " [...] imagine-se um grupo de cidadãos negros em luta contra o Estado ou contra o poderoso lobby do ensino privado lucrativo brasileiro, a fim de valer seu direito, de cunho constitucional de ver os filhos contemplados com o acesso à boa educação". Ações civis públicas, propostas pelo MP, podem ser alternativas viáveis, pois "não expõe[m] individualmente cada cidadão interessado, tampouco implica[m] gastos por parte do cidadão interessado na tutela".

Mas, nessa altura, o autor critica o sistema jurídico e o próprio MP, ao confrontar as observações que vinha fazendo com "a cruel realidade..." Ações civis públicas, "em sua maioria são elas abortadas no nascedouro, seja por decisões judiciais estapafúrdias de conteúdo meramente processual [...], seja por medidas liminares altamente contestáveis, impostas de cima para baixo pelos órgãos jurisdicionais de revisão e de cúpula do Judiciário Federal".

Para Barbosa, essa situação expõe "os vícios e as chagas perpétuas" da justiça no Brasil: "o individualismo exacerbado, o formalismo outrancier, a falta de racionalidade e de praticidade da grande maioria dos instrumentos de ação, etc." Soma-se a isso o papel ainda subalterno desempenhado pelo MP, que "como nos velhos tempos", ainda privilegia "a emissão de pareceres em casos de natureza privatística e relegando a um plano secundário a missão que a constituição lhe outorgou de defesa de direitos e interesses difusos e coletivos das grandes massas, das minorias humilhadas e sem voz na vida pública do país".

Por fim, Barbosa convoca as entidades e organizações brasileiras, dedicadas ao combate à discriminação racial, a empreender uma série de ações na tentativa de reverter o quadro acima descrito.

Como se vê, ter um negro na presidência do STF é um passo importante. Porém, ainda há muito chão pela frente quando se discute o direito das minorias no país.

* GOMES, Joaquim B. Barbosa. O uso da lei no combate ao racismo: direitos difusos e as ações civis públicas. In: GUIMARÃES, Antonio S. Alfredo; HUNTLEY, Lynn. Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 389 - 409

BG de Hoje

Os B-52's fazem parte daqueles saudáveis artistas da música pop que não podem ser facilmente rotulados. Chamar o som que fazem de new wave não diz absolutamente nada. No vídeo abaixo, uma apresentação ao vivo de Mesopotamia, uma das minhas canções prediletas dessa banda de Athens.



quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Falou e disse...

" A ciência vem revelando a falácia do conceito de raça do ponto de vista biológico. Essa constatação científica é utilizada para minar as reivindicações de políticas específicas para grupos discriminados com base na 'raça' ou na cor da pele. As novas pesquisas destroem as bases do racialismo do século XIX, que consagrou a superioridade racial dos brancos em relação a outros grupos humanos, justificando opressões e privilégios, mas elas ainda não tiveram impacto sobre as diversas manifestações de racismo em ascensão no mundo inteiro, e sobre a persistente reprodução de desigualdades que ele gera, o que reafirma o caráter político do conceito de raça, a sua permanência e atualidade, a despeito de ser insustentável do ponto de vista biológico"*

* CARNEIRO, Sueli. A miscigenação racial no Brasil. In: __________. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011. p. 66-69

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Adoecimento docente (I)


Muitos professores da educação básica - muitos mesmo - estão doentes. Entidades representativas da categoria (como os sindicatos) vêm alertando, há bastante tempo, que a desvalorização do trabalho docente tem afetado não só o bolso mas também a saúde dos educadores.

Dos últimos estudos a respeito dessa questão, considero a pesquisa realizada pela Unicamp em 2007 - Condições do trabalho e suas repercussões na saúde dos professores da educação básica no Brasil - uma das mais relevantes. A pesquisa, é bom que se diga, contou com a participação de profissionais de outras instituições.

Na edição nº 447 do Jornal da Unicamp* (disponível aqui) é possível ter uma visão mais geral desta iniciativa.

Aparecida Neri de Souza e Márcia de Paula Leite, coordenadoras do estudo, junto com outros 13 colaboradores, buscaram analisar que tendências estavam sendo apontadas nas pesquisas acadêmicas, tratando de trabalho e saúde dos professores, produzidas entre 1998 e 2007. Algo logo chamou a atenção da equipe, nas primeiras análises:

 " [...] embora a escola sendo reconhecida grosso modo como uma instituição em que as condições de trabalho são ruins, o professor foi considerado, paradoxalmente, um profissional com alta qualificação profissional no mercado. Ainda que soe uma contradição, ficou claro que o professor não realiza suas tarefas mecanicamente e busca um sentido para o trabalho que faz" 

Trabalho há 18 anos no ensino fundamental. E penso que o termo mais indicado para caracterizar o trabalho educativo seja a palavra frustração. Se o professor é um profissional qualificado, é provável que espere ser reconhecido e recompensado por isso (não estou me referindo apenas à remuneração). Nessa "busca [de] um sentido para o trabalho que faz" é que o educador mais se sente frustrado porque trabalha numa instituição que, a meu ver, vem perdendo relevância social e deixando de fazer sentido. Por isso, cada vez mais profissionais optam, numa compreensível postura de autodefesa, pela mecanização de suas tarefas.

O trabalho da Unicamp aponta " uma crise de identidade nos professores, que vão perdendo a referência sobre o que devem fazer no ofício de ensinar" e também revela que:

"A importância da escola no processo de mobilidade social [...] tem sido colocada em dúvida, ao mesmo tempo em que o mundo do trabalho vem valorizando-a como uma possibilidade de acesso ao restrito mercado de trabalho. Sem garantir, no entanto, a inserção dos jovens escolarizados. Tudo isso lança uma pergunta que parece cada vez mais difícil de ser respondida: qual o papel social da escola atualmente?"

Existe uma distância muito grande entre o que escola deveria ser, teoricamente falando, e o que a escola é, no seu sofrido dia-a-dia. 

" A defasagem entre o trabalho a ser realizado e a realidade é cada vez maior, segundo as pesquisadoras. Os autores a caracterizam como 'a face oculta de nossa modernidade' e concluem que, quanto maior for essa defasagem, maior será o investimento afetivo e cognitivo exigido do professor, demandando maior esforço e sofrimento psíquico dele".

Continuarei a falar do importante estudo Condições do trabalho e suas repercussões na saúde dos professores da educação básica no Brasil nas próximas postagens.

___________
* Por que os professores adoecem? Jornal da Unicamp. Campinas, Ano XXIV, n. 447, 9/22 nov. 2009. Disponível em <http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/novembro2009/ju447_pag0607.php#> Acesso em 25/10/12 

BG de Hoje

Durante este mês estou tentando, por meio de letras de música, começar a implementar o que determina a lei 10.639 com as turmas de EJA (Educação de Jovens e Adultos) aqui da escola em que trabalho. Ilu-Ayê (Terra da vida) foi uma das que escolhi: tematiza a afrodescendência de forma simples e bonita. E a interpretação da MÔNICA SALMASO, no disco Voadeira, com a luxuosíssima percussão do Marcos Suzano, ficou divina! No vídeo abaixo, entretanto, a cantora está acompanhada de Eduardo Salmaso (não sei qual é o parentesco entre os dois - se é que há algum)


quarta-feira, 14 de novembro de 2012

"Medidas de austeridade"? Tá bom...



Hoje pela manhã, ouvi toda a programação da Band News FM . Eu até gosto. Mas pude constatar, mais uma vez, que aqueles que falam de objetividade e imparcialidade no jornalismo ou são pessoas muito ingênuas ou bastante mal intencionadas.

Tanto as apresentadoras do noticiário quanto o repórter, correspondente na Europa, ao se referirem aos protestos que aconteciam na Espanha e em Portugal, disseram que estes eram contra as "medidas de austeridade" impostas pela União Europeia para socorrer economicamente esses países.

Ora, nada entendo de política nem de economia, mas, na minha visão de besta quadrada, o que a cúpula da União Europeia quer  - desculpem a expressão chula - é enfiar no c... da população, sobretudo dos trabalhadores, uma conta que deveria ser paga por banqueiros e megacorporações.

A emissora, que é uma empresa gigantesca de comunicação, irá, obviamente, corroborar o discurso dos endinheirados e usar o eufemismo "medidas de austeridade".

Tá bom...

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Em que consitem - ontem e ainda hoje - as "aulas de Português"? (II)


Sírio Possenti, nos artigos que escreve habitualmente para a revista Língua Portuguesa, discute, com frequência, as relações (desarmoniosas, quase sempre) entre gramatica normativa, linguística e o ensino do português. Em seu último texto - Uma imposição paralímpica* -, o professor da Unicamp afirma logo de início: "Muita gente pensa que 'regra' de gramática é conceito que tem uma só direção. Simplificando: se está no livro, tem de ser seguida (ou seja: ela começaria no livro, no manual). E acrescenta: "[Porém,] Não fica claro de onde se imagina que as regras venham".

Quase todas as publicações lançadas no Brasil tratando da gramática de nosso idioma são, invariavelmente, muito mais prescritivas do que descritivas, não escondendo o quanto ainda se prendem ao modelo beletrista - e aristocrático - desse tipo de livro, antes do advento (importantíssimo) da Linguística**. Isso pode ser percebido, por exemplo, no corpus do qual esses manuais extraem os dados para justificar os preceitos de uso da língua considerados corretos (na visão do gramático). No geral, selecionam-se trechos de obras literárias cujos autores integram o cânone nacional, em detrimento da linguagem empregada mais cotidianamente pela maioria dos falantes.

A esse respeito, o linguista Sírio Possenti escreve (admitindo, porém, tratar-se de uma simplificação):

"[...] escritores empregam regularmente certas construções, os gramáticos descobrem a regularidade e propõem uma regra (lei); mas ela passa a ser lida como se proposta pelos gramáticos, supostamente detentores de saber que os autoriza a isso; portanto, deve reger os usos futuros da língua".

Além disso, tenta-se regular (leia-se "controlar o uso dos" ) idiomas também através do que impõem segmentos e agentes taludos no jogo sociopolítico e econômico.

Como no caso dos vocábulos paralimpíada e paralímpicos. Esses termos são propriedade do Comitê Olímpico Internacional; por isso, cada comitê local teve que modificá-los. Sírio Possenti dispara: "Esses são exemplos de um segundo tipo de regra: o de que o poder não deixa escapar nada (nem mesmo a língua). É totalmente regular, seja ele mais ou menos burro".

O curioso nesse caso é que a forma paralímpico "contraria uma regra das mais sólidas do português, dessas que as gramáticas não tratam explicitamente, é verdade, mas só porque são seguidas por todos os falantes de todos os coturnos [...] 'A vogal final átona cai quando a forma seguinte começa por vogal'", observa o articulista.

Ou seja, a palavra imposta pelo Comitê, "se seguisse a regra, seria 'parolímpico' e 'parolimpíada' ".

As aulas de Português deveriam discutir, experimentar, praticar e refletir sobre os usos da língua nos diversos contextos e situações (como no caso acima mencionado), tanto na modalidade escrita quanto nas manifestações da oralidade. Entretanto, ainda se perde tempo "ensinando" aos estudantes da educação básica a diferença entre complemento nominal e adjunto adnominal, ou classificando orações subordinadas, ou decorando os nomes dos processos de formação das palavras, ou...
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* POSSENTI, Sírio. Um imposição paralímpica. Língua Portuguesa, São Paulo, ano 8, n. 84, out. 2012, p. 16-17

** É claro que, atualmente, há diversas gramáticas de viés descritivo e que registram os usos mais efetivos realizados pelos falantes (obras, na maioria das vezes, elaboradas por linguistas). Mas são exceções e ainda pouco lidas fora do ambiente acadêmico especializado.

BG de Hoje

Outro dia estava num boteco que habitualmente frequento e provoquei, sem desejar, calorosa discussão. Só porque disse que achava ALDIR BLANC um letrista melhor do que Chico Buarque. Fui chamado de tudo quanto é nome... Mas não mudei de opinião. Observe a letra cujo título é A nível de..., por exemplo. Humor acachapante, para criticar os eternos ripongas intelectualoides, que abrem restaurantes naturais, fazem artesanato, analisam (cheios de circunlóquios e afetação) o casamento "a nível de proposta" - seja ele de caráter hétero ou homoafetivo - para, afinal, darem-se conta de que os relacionamentos humanos, no fundo, são sempre a mesma merda. Associada ao violão inigualável de JOÃO BOSCO, considero essa letra um dos pontos altos da nossa música.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Em que consistem - ontem e ainda hoje - as "aulas de Português"? (I)



Este blog está empoeirando. Ando sem a mínima disposição para mantê-lo atualizado. Por enquanto, comento duas matérias que saíram na edição  de outubro da revista Língua Portuguesa (uma delas, nesta postagem; a outra fica para o fim da semana).

Em Guerra contra as legendas*, Carmen Guerreiro apresenta os resultados de uma pesquisa (Hábitos de consumo no mercado de entretenimento) encomendada ao Datafolha pelo Sindicato das Empresas Distribuidoras Cinematográficas do Município do Rio de Janeiro. A maioria das duas mil pessoas ouvidas (56%) quer assistir a filmes dublados nas salas de exibição. Segundo a reportagem,

"Cada vez mais, quem é frequentador assíduo do cinema quer filmes dublados. A média desse público cativo (o cinéfilo heavy) tem cerca de 30 anos, é da classe média e está cada vez mais escolarizado. As empresas de entretenimento dizem que os filmes dublados têm mais sucesso em regiões mais populares e menos centrais das cidades. Qualquer conclusão a partir disso é suposição, mas o empresário do setor intui que um público mais velho e de menor escolarização mantém hábitos culturais herdados da TV aberta e tem pouco hábito de leitura de legendas".

Mas o que esse assunto tem a ver com as aulas de Português colocadas lá no título? Tento explicar.

Fui regente (professor não habilitado **) de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Educação, aqui de Minas, por cerca de um ano. Pouquíssimo tempo, é verdade, mas suficiente para constatar quanto o ambiente escolar é embrutecedor, frustrante e causador de esgotamento mental (depois disso, nunca mais tive coragem de dar aulas, um dos motivos que me levaram a abandonar o curso de Letras). NOTA: Por incompetência - ou por uma razão "menor", como contas para pagar - continuo, desaforadamente, trabalhando em escolas de educação básica (agora em outra função).

Pois bem. As aulas de Português até a década de 1990 - inclusive as minhas - apenas corroboravam o discurso normativista, baseado nas noções simplistas e vazias do "certo" e do "errado", incluindo "pegadinhas" nos exercícios, testes e provas. Pelo que sei, didática e pedagogicamente, as coisas continuam na mesma: a língua portuguesa, na escola, é vista como espécime a ser dissecado e não como elemento vivo de comunicação e expressão.

Voltando ao ponto ora em discussão. Como, paradoxalmente, lê-se e escreve-se muito pouco nas aulas de Português (além do fato das aulas de Língua Estrangeira na educação básica serem péssimas - isso quando simplesmente deixam de acontecer, não permitindo atividades comparativas interdisciplinares), não é de se estranhar que as cópias dubladas sejam cada vez mais presentes no mercado do entretenimento, pois estudantes que leem e escrevem cada vez menos, qualitativamente falando, não terão paciência nem concentração para acompanharem as legendas.

. . . . . . .

Necessário fazer a seguinte ressalva: a matéria aventa outra razão para a preferência por filmes dublados, citando a opinião de Patrícia Cotta, gerente de marketing da rede Kinoplex:

"A dublagem não se limita só a traduzir o filme ao pé da letra, há um cuidado em adaptar os diálogos, o humor, a maneira de falar de cada país, o que faz com que, na opinião de grande parte do público, o filme tenha mais afinidade à sua realidade cultural".

Acho, aliás, a dublagem brasileira muito boa. E preciso reconhecer que, mesmo preferindo assistir filmes com legendas, no caso dos desenhos animados, só vejo (e me divirto mais) com a mediação dos dubladores aqui do pais.

Na sexta-feira discuto um artigo do linguista Sírio Possenti.
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* Guerra contra as legendas. Língua Portuguesa, São Paulo, ano 8, n. 84, out. 2012. p. 18-19. A matéria é assinada por Carmen Guerreiro
 
** Não sei como é hoje, mas nos anos 1990, aqui em Minas Gerais, a Secretaria Estadual de Educação contratava estudantes universitários para dar aulas em escolas públicas. Foi assim que virei um "professor não habilitado", ou seja, sem ter terminado a licenciatura.

BG de Hoje

Convivendo diariamente com gente que, se não fosse pra manter as aparências, nem sequer cumprimentaria, nunca deixo de  recordar famosa frase do Mario Quintana (mas não me lembro em qual livro): " Se eu amo a meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?". E, por outras razões, acabo associando-a ao refrão de uma ótima canção do PATO FU: " Eu/queria tanto encontrar/uma pessoa como eu/a quem eu possa confessar/alguma coisa sobre mim".

 

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Shakespeare no Cinema (II)


A adaptação para o Cinema da peça Coriolano, de William Shakespeare, foi menos literal do que A tempestade, discutida na última postagem. O filme de 2011 - dirigido e protagonizado por Ralph Fiennes - fez consideráveis modificações na ordenação do texto original. Por exemplo: "enxertou" , em certas cenas, diálogos retirados de outras; também alterou e criou novos cenários. Ainda assim, a marca habitual das versões cinematográficas da obra do dramaturgo inglês permaneceu: a reprodução, com a maior fidelidade possível, da linguagem shakespeareana.

Coriolano é uma obra de forte conotação política: mais precisamente, uma obra a tratar dos conflitos pelo poder (não se deve perder de vista que a arrogância e o orgulho aristocráticos do personagem central irão precipitá-lo na tragédia relatada na peça). Aliás, uma das grandes "sacadas" da adaptação foi dar a Coriolano uma aparência de contemporaneidade. Muitas cenas lembram a guerra na ex-Iugoslávia e, mais recentemente, os protestos provocados pela crise econômica na zona do euro. Sendo suscetível a diversas abordagens, destacarei apenas um ponto da peça - a (im)popularidade do protagonista - explorado de forma criativa no filme.

Após voltar de campanha militar bem sucedida contra os volscos, inimigos dos romanos e liderados pelo arquirrival Tulo Aufídio, o recém denominado Coriolano é escolhido, pelo senado, cônsul da república, cargo da alta hierarquia. Respeitando a tradição, porém, necessitará ter seu nome ratificado pelo povo (que, na opinião do líder militar, é um "monstro de mil cabeças", formado por "cães ordinários" e "fragmentos" de pessoas). O filme introduz um elemento impossível de se conceber no tempo de Shakespeare, mas que ajuda a ressaltar os elementos políticos, já por si evidentes, da peça: a atuação dos meios de comunicação, nas sociedades de massa, no que se refere à construção da imagem das figuras públicas (e por isso recomendaria a professores de História e Sociologia utilizar o filme em suas aulas no ensino médio).

Uma das cenas mais interessantes é a que exibe trecho de um programa jornalístico, ao estilo Canal Livre, no qual o âncora debate com dois especialistas sobre perfil e as chances de Coriolano, na tentativa de obter o cargo de cônsul. A cena reproduz o diálogo de abertura da cena II, no Segundo Ato da peça (os oficiais do texto original foram substituídos, no filme, pelo jornalista e os outros debatores do programa mencionado acima). Nesse diálogo, há uma análise sem rebuço do caráter das multidões (cito a tradução de Carlos Alberto Nunes*):

" Por minha fé, há muitos personagens de projeção que adularam o povo, sem nunca lhes terem dedicado a menor afeição, como a outros que o povo amou sem saber porquê.  Ora, se o povo ama sem saber porquê, também odeia sem maior fundamento. Assim, não se preocupando nem com o amor nem com o ódio que os plebeus possam votar-lhe, Coriolano prova que conhece prefeitamente a disposição de todos eles, o que revela à saciedade com sua nobre indiferença".

Quando, assustadoramente, vê-se que um candidato da espécie de Celso Russomano chegou a liderar as pesquisas de intenção de voto para prefeito na mais rica e importante cidade do Brasil, é difícil não concordar que o "povo ama sem saber porquê" e "também odeia sem maior fundamento".

Gostaria de falar sobre a atuação espetacular de Vanessa Redgrave, no papel de Volúmnia, a mãe de Coriolano, sobretudo na cena em que esta vai implorar clemência ao filho (cena III, Quinto Ato). Mas fica para outra ocasião.

* SHAKESPEARE, William. Coriolano; MacBeth. São Paulo: Melhoramentos, 195? [tradução de Carlos Alberto Nunes]. De novo, cotejando o texto desta tradução com as legendas em DVD, notei serem idênticas

BG de Hoje

Sem  dúvida, Truth é um dos melhores discos de rock de todos os tempos. Rod Stewart estava cantando muito em 1968 e JEFF BECK é sensacional. A melhor canção da dupla nesse disco, em minha limitada opinião - Let me love you - é o BG de hoje.


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Shakespeare no Cinema (I)



Aproveitei os dias de recesso no trabalho para assistir a um punhado de filmes. Sem método algum ou mesmo critério de escolha, pois, quando o assunto é cinema, sou uma besta ainda mais quadrada. Volto a falar de educação na semana que vem.

Entre os títulos assistidos, havia desde uma recente realização da Hammer, velha produtora de filmes de terror, passando por desenhos animados, blockbusters hollywoodianos e até um clássico "filme-cabeça" alemão (que não entendi). Ah, e adaptações de duas peças de William Shakespeare, além de um filme no qual se questiona o próprio estatuto autoral do dramaturgo inglês.

Não é  nenhuma novidade, obviamente, a presença de Shakespeare na telona (ou telinha, no caso de quem prefere ver filmes em casa, como eu). Menciono, por exemplo, os trabalhos do ator e diretor Kenneth Branagh anos atrás. Não gostei da sua versão de Muito barulho por nada, mas achei as de Hamlet e Otelo muito boas (OBS: Branagh não dirigiu a última, na qual apenas interpreta o vilão Iago). 

Penso que a maior dificuldade para se adaptar cinematograficamente a obra de Shakespeare esteja na apresentação dos diálogos. Qual a melhor opção: "facilitá-los" para que sejam prontamente assimilados pelos espectadores ou manter-se o mais fiel possível ao texto original? Falemos de um dos filmes que vi recentemente.

Em A tempestade (The tempest - direção de Julie Taymor, 2010) o roteiro, parece-me, não se desvia em quase nada da composição de Shakespeare, fixada entre 1611 e 1612. É claro que essa opinião é meio capenga, porque meu conhecimento da língua inglesa é bastante reduzido (assisti ao filme cotejando as legendas com a tradução em português de Carlos Alberto Nunes*).

Nesta peça, vale dizer, estão algumas das frases mais famosas da dramaturgia shakespereana (e valho-me uma vez mais da tradução de Nunes):

" Somos feitos da matéria dos sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono".

" É mais nobre o perdão do que a vingança".

" Admirável mundo novo que tem tais habitantes! "

E duas notas sobre o filme:

1) Próspero torna-se Próspera. Ao invés do duque traído de Milão, perito nas "ciências secretas", temos uma duquesa, interpretada por Helen Mirren.

2) O ator beninense (naturalizado norte-americano) Djimon Hounsou,  como Calibã (o monstro filho da bruxa Sicorax, escravizado por Próspero), exerce o papel sem demasiada extravagância, ajudado pela criativa maquiagem, usando a voz poderosa e uma curiosa movimentação corporal.

Na próxima postagem, comento a versão - um pouco mais iconoclasta, mas só um pouquinho - de Coriolano.

* SHAKESPEARE, William. A tempestade; A comédia dos erros. São Paulo: Melhoramentos, 195? [tradução de Carlos Alberto Nunes] As legendas do filme, na maioria das vezes - como no epílogo cantado por Próspero(a) - repetem ipsis litteris essa tradução. Será que ela já caiu em domínio público e por isso pode ser livremente citada ou é apenas coincidência? Ou tratar-se-ia de plágio? Cartas para a redação, hehehe...

BG de Hoje

Minha música preferida, de uma das minhas bandas do coração: Hand of doom, BLACK SABBATH. No finalzinho da apresentação, eles emendam Rat Salad, ambas composições presentes no clássico Paranoid, de 1970)

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Falou e disse...



MOMENTO NUM CAFÉ

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um, no entanto, se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta *.


* BANDEIRA, Manuel. Momento num café. In: __________. Estrela da vida inteira. 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 155 [esse poema foi originalmente publicado no livro Estrela da manhã, de 1936] Os grifos na segunda estrofe são meus.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Algumas notas sobre a educação escolar contemporânea, por Jean Hébrard



Jean Hébrard é um dos poucos intelectuais contemporâneos, do campo da Educação, que me interessam. NOTA: Penso que já passou da hora de darmos mais voz aos professores que botam a mão na massa e menos trela aos tecnocratas e "pensadores" descompromissados quando se discutem os problemas das instituições escolares. Há mais de 10 anos, o francês concedeu uma sensacional entrevista para a revista Presença Pedagógica*, na qual defende pontos de vista que se distanciam da lengalenga típica dos discursos relativos à área educacional. Reproduzo abaixo alguns trechos da conversa - extensos; rogo a paciência do(a) eventual leitor(a). Não analisarei nem discutirei, por ora, nenhum deles; deixo-os "cozinhando" na cabeça de quem aqui chegar (e se interessar, obviamente).
(OBS: Todos os grifos são meus)

"Não é possível montar apenas com a vontade uma escola diferente. A escola é um processo tão complexo, mas tão complexo que é impossível, apenas com a vontade, mudá-la. Você herda os dispositivos, e para modificar um pouquinho esses dispositivos é preciso saber muito bem como funcionam. Penso que a única forma de intervenção é a descrição da escola. Se você é capaz de descrever bem o que acontece na escola, o que é a escola, você é capaz de mudá-la um pouquinho. Essa capacidade de descrição é fundamental, porque a coisa mais importante na vida da escola é a repetição, a repetição permanente".

"São poucos os dispositivos [explicarei o termo noutra postagem] que podem funcionar na escola numa situação na qual você tem um sujeito em frente a quarenta, cinquenta alunos, em um tempo organizado com um ritmo particular, com a restrição do desenvolvimento mental do aluno, da idade do aluno... São poucos os dispositivos capazes de funcionar dentro desse modelo, dentro dessa quantidade de restrições".

Aqui Hébrard faz suas observações a partir das pesquisas do sociólogo François Dubet:

"Seu trabalho revela que os adolescentes estão na escola não para aprender, mas para viver a cultura deles [...] Para eles, a cultura escolar é um preço a pagar para viver, juntos, essa realidade, essa sociabilidade que é da juventude".

Sobre o fracasso da escola:

"O fracasso da escola é a sua incapacidade de trabalhar, de uma maneira escolar, a cultura 'selvagem'. Para Labov a cultura 'selvagem' era a cultura dos guetos, dos negros dos Estados Unidos. Para nós, era a cultura da periferia urbana. A questão era como trabalhar e, talvez, se possível, escolarizar essa cultura estranha [...] Porque essa cultura é a vida deles. Não é um sistema estético-ético, é a vida mesma. A vida não é um objeto para a escola. O objeto da escola é a cultura, não é a vida. Você não pode trabalhar com a vida, a vida viva. A vida não serve para trabalhar. Na escola, é preciso haver um objeto fixo, que não mude demais. Não é a vida. A vida é impossível.

"A questão é como fazer da transmissão do patrimônio algo que possa interessar a essa cultura 'selvagem'. Como fazer? O grande desafio de hoje é reiventar uma escola que seja capaz de assumir uma posição adulta. Porque toda a geração dos professores dos anos 70 e 80 foi uma geração de professores crianças, que não aceitava mais assumir a posição da antiga geração. Cada vez mais concordo com a posição de Hannah Arendt, na Crise da cultura [sobre a qual escreverei mais adiante, partindo de outra obra dessa filósofa]; a função da escola é assumir a posição do passado, não a posição do futuro, porque o futuro é a invenção da nova geração. Não pode ser a invenção da geração precedente. Para que a nova geração possa inventar o futuro é preciso que a antiga geração - nós, os professores - assuma a posição do passado".

"O problema educativo que temos na França, e imagino que seja semelhante no Brasil, em todas as classes sociais, é que os adultos são incapazes de assumir a posição de adultos diante das crianças. As crianças não são capazes de aceitar a disciplina da escola. O que é a disciplina da escola? É preciso um trabalho muito, muito grande no presente. E isso só é possível quando, na educação familiar, os adultos não são crianças. Eu penso que, hoje, é mais difícil usar a escola do que foi no século passado. Poderíamos pensar que a escola do século XXI não seja mais uma escola, que seja preciso inventar um outro dispositivo para transmitir o patrimônio cultural. Para construir os equipamentos intelectuais dos alunos, a escola não é a única possibilidade, são muitas as possibilidades".

Quando instado a pensar sobre uma utopia escolar, Hébrard diz:

"Penso que a escola do futuro poderia ser um sistema muito diferente, muito restrito, com poucos anos. Uma formação imediata: ler, escrever, contar, falar. Depois, trabalho. Para todos. É preciso inventar uma sociedade que seja capaz de fazer os adolescentes trabalharem - o caso francês é bem diferente do brasileiro - introduzindo-os na vida da cidade. Depois, a escola seria um sistema permanente de educação, até o fim da vida, e nós, professores, seríamos capazes de ensinar a essas pessoas na condição de adultos e não mais de alunos. E com adultos até o fim da vida. Por quê? Porque o que é importante na escola não é a formação. Bom, onde se dá a formação? No trabalho".

E falando sobre o papel atual da escola:

"Hoje, a escola continua essencialmente como um sistema de guarda. E a função de guarda se confunde com a função de formação. Aliás, a função de guarda é bem mais importante do que a função de formação. Para nós, na França, é bem evidente que quando uma escola está fechada por causa de uma greve de professores, o importante não é que haja alguns dias de aulas a menos, o importante é o que fazer das crianças. A sociedade não tem lugares próprios para as crianças. O problema central hoje é: como fazer com que as crianças tenham uma vida que não seja perigosa, ociosa, e, ao mesmo tempo, que não seja essa vida escolar absurda, em que se confunde a segurança da criança e a instrução. Eu penso que o grande problema da escola hoje é a confusão desses dois papéis, ou melhor, três: educação, porque a família não é mais capaz de educar; instrução, que é a função normal da escola; e guarda, porque a cidade não é mais um local adequado para uma infância livre. O que é mais importante na escola não é a instrução, é a vigilância. É um problema muito grande para nós essa confusão das funções da escola. A formação de um professor é uma formação muito longa, para fazer o quê? Guardar?

* O objetivo da escola é a cultura, não a vida mesma. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 6, n. 33, mai./jun. 2000, p. 5-17

BG de Hoje

Para "desestressar": "Então desencana/não generaliza/isso não vale a pena/não vai deixar isso te abalar /Deixa pra lá /Esquece e abstrai/Releva e põe uma pedra em cima disso aí e vai".Os ótimos, diretos e econômicos AUTORAMAS, em Abstrai, ironizando todos os conselhos idiotas que as pessoas costumam dar. Do último disco da banda, Música crocante.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Marginalidade e crime: dois autores em destaque (II)


"A violência é tão fascinante
E nossas vidas são tão normais"
 
Renato Russo/Legião Urbana, em Baader-Meinhof Blues

 
 
Os primeiros livros de Rubem Fonseca provocaram forte impressão no público, nos anos 1960-70, pela violência que retratavam, mas - observa Boris Schnaiderman* "de lá para cá, a vida brasileira, em seu conjunto, tornou-se mais brutal e implacável, fatos como os narrados ali passaram a fazer parte de nossa vivência diária e acabamos mais acostumados com eles".

Poderia     escolher    vários  de     seus    contos     para     discutir  a  representação  literária  da  marginalidade  e  do  crime;  vou  me  concentrar,  contudo , em  O jogo do morto **.

Quatro comerciantes de São João de Meriti decidem, de modo macabro, apostar dinheiro adivinhando o número de vítimas do esquadrão da morte a cada mês. Com o passar do tempo os apostadores  "ampliaram as regras do jogo. Além da quantidade, da idade e da cor dos mortos, foi acrescentada a naturalidade, o estado civil e a profissão. O jogo tornara-se complexo". O popularesco jornal O Dia   servia para "validar " os palpites. A prática regular de assassinato divulgada pela imprensa sensacionalista: nada muito diferente do que testemunhamos hoje.

O mais azarado dos apostadores, Anísio, decide trapacear no jogo para recuperar o dinheiro  perdido. Numa passagem do conto ele diz :

"Aposto que o esquadrão este mês mata uma menina e um comerciante. Duzentas mil pratas.   Que loucura, disse Gonçalves [outro dos apostadores], pensando no seu dinheiro e no fato de que o esquadrão jamais matava meninas e comerciantes".

Nas áreas urbanas grupos sociais criam subculturas e a criminalidade também tem a sua, além de um código não escrito, conhecido até por quem não é do métier  - como, por exemplo, saber do fato do esquadrão da morte poupar meninas e comerciantes - dada a penetração do crime nas demais esferas da vida das cidades. O assustador é que estamos cada vez mais familiarizados com essa subcultura e com esse código.

Nunca viveremos em sociedades sem crime, obviamente. Mas o que o conto O jogo do morto parece sugerir é que os assassinatos do crime organizado, mesmo que atinjam números astronômicos, deixaram de nos chocar há bastante tempo.
__________
* SCHNAIDERMAN, Boris. Vozes de barbárie, vozes de cultura : uma leitura dos contos de Rubem Fonseca  [esse ensaio foi publicado como posfácio da 1ª edição dos  Contos reunidos,  de Rubem Fonseca, pela Companhia das Letras]

** FONSECA, Rubem. O jogo do morto. In: __________. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 585-590 [esse conto integra o livro O cobrador, publicado originalmente em 1979]

BG de Hoje

Crianças não são essas gracinhas que muita gente imbecil vive dizendo adorar. Trabalho com elas há bastante tempo pra não me iludir. A letra da canção Sweet Sour, da ótima BAND OF SKULLS é meio maluca, mas o clipe demonstra bem a agressividade infantil.


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Falou e disse...



" Mais enérgico e mais radical é um outro procedimento, que enxerga na realidade o único inimigo, a fonte de todo sofrimento, com a qual é impossível viver e com a qual, portanto, devem-se romper todos os laços, para ser feliz em algum sentido. O eremita dá as costas a este mundo, nada quer saber dele. Mas pode-se fazer mais, pode-se tentar refazê-lo, construir outro em seu lugar, no qual os aspectos mais intoleráveis sejam eliminados e substituídos por outros conformes aos próprios desejos. O indivíduo que, em desesperada revolta, encetar este caminho para a felicidade, normalmente nada alcançará; a realidade é forte demais para ele. Torna-se um louco, que em geral não encontra quem o ajude na execução de seu delírio. Mas diz-se que cada um de nós, em algum ponto, age de modo semelhante ao paranoico, corrigindo algum traço inaceitável do mundo de acordo com seu desejo e inscrevendo esse delírio na realidade. É de particular importância o caso em que grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento através de uma delirante modificação da realidade. Devemos caracterizar como tal delírio de massa também as religiões da humanidade. Naturalmente, quem partilha o delírio jamais o percebe "*.



* FREUD, Sigmund.  O mal-estar na civilização.  São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2011. p. 25-26  [ tradução de Paulo César de Souza ]. Os grifos na citação são meus.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Marginalidade e crime: dois autores em destaque (I)


"Deve ser horrível, pensei, envelhecer e continuar acreditando que, no fim, as coisas podem acabar, de alguma maneira, dando certo"

De um personagem
do conto Na serra, fora dela, de Marçal Aquino



Estar na marginalidade não quer dizer, necessariamente, estar na criminalidade. Nosso linguajar do dia-a-dia, porém, não faz mais essa apropriada distinção e marginal tornou-se sinônimo de criminoso. Algo bastante revelador do modo de olhar, preconceituoso e discriminatório, dirigido por nossa sociedade ao pobre (ou seja, aquele colocado à margem pela voracidade do mercado e pela ineficiência das políticas públicas): aos despossuídos desta terra só restaria, como alternativa para mudar a sua condição, a delinquência. Um modo de olhar perverso, que leva a conclusões rasteiras e errôneas.

Enveredamos, assim, para o terreno da discussão sociológica: esta ficará, entretanto, para outra ocasião. Minha intenção agora é apenas observar como dois ficcionistas brasileiros - Marçal Aquino e Rubem Fonseca - tratam dessas questões em suas narrativas.

O trabalho de Marçal Aquino começou a me interessar desde quando  assisti ao ótimo filme O invasor (direção de Beto Brant, 2001), do qual Aquino é roteirista. Só depois fui atrás de seus livros, gostando principalmente de Faroestes *.

As 11 narrativas reunidas nessa publicação são denominadas pelo autor "prosa de confronto". De fato, este não falta. Menos brutal em Trincheiras - a primeira história, de um casal de velhos a cultivar um ódio mútuo - e mais violento e cru na maioria das outras: tiroteio da bandidagem num boteco; policiais em trabalho nada exemplar; lutadores fazendo bico como espancadores pagos; um ricaço estuprador de menores, vendidas pela própria família miserável.

Penso, contudo, que Dez maneiras infalíveis de arranjar um inimigo (para facilitar o trabalho do legista) seja o melhor texto do livro. Aquino conseguiu dar leves pinceladas de humor nalguns trechos, mesmo dentro de temática tão barra-pesada. Como no caso da "sexta maneira", em que um cansado vendedor de sapatos decide reagir à conversão tramada por sua esposa e pelo bispo da igreja evangélica da redondeza.

Mas é a "quinta maneira" que interessa mais de perto à discussão proposta nessa postagem. Dentro de uma "casa doente", onde "as palavras são duras e mesmo as gargalhadas soam ásperas", o narrador  reúne-se com alguns "chegados", um deles amigo de infância, de quem se recorda por ter sido "craque em matemática" e "bom em desenho" nos tempos da escola e hoje "é louco por remédio, qualquer um. Já tomou até comprimido do irmão epilético misturado com cachaça". Na "casa doente" combina-se a morte de um outro, por dívida de droga. O narrador recusa participar. Ao final da ação, um dos executores "diz que não é nada pessoal".

Sou um pessimista crônico: mesmo assim acredito que sempre existe a possibilidade de escolha. Isso não quer dizer, de modo algum, que há sempre uma boa alternativa disponível; na maioria das vezes, aliás, opta-se apenas pela desgraça menor. É o que acontece com quem vive na marginalidade. Por isso, recuperando a epígrafe colocada neste texto, não dá para "continuar acreditando que, no fim, as coisas podem acabar, de alguma maneira, dando certo". Para quem vive à margem, crer que vai dar certo não é só ingenuidade; é oferecer-se de bandeja ao inimigo.

Na próxima, escrevo sobre Rubem Fonseca.
___________
* AQUINO, Marçal. Faroestes. São Paulo: Ciência do Acidente, 2001

BG de Hoje

Tenho que dar o braço a torcer quando alguém critica a duração excessiva de algumas canções de rock pesado, do qual sou fã. O punk rock foi uma saudável reação a essa mania de grandeza. Mas anteriormente à revolução promovida por Ramones, Sex Pistols e companhia, os KINKS já interpretavam cada cacetada com pouco mais de 2 minutos... Por exemplo: Till the end of the day.


terça-feira, 4 de setembro de 2012

Biela (II)



Visando compreender como um personagem literário adquire sua feição mais reconhecível, aquela que permanecerá na mente do leitor, Mikhail Bakhtin* fala em "diretriz axiológica". Qual seria a de Biela, de Uma vida em segredo **? Tentaremos apontá-la analisando o penúltimo capítulo da narrativa, quando a personagem encontra um cachorro abandonado ao voltar para casa.

Biela, envelhecida, andava "achacada de tosse e reumatismo". E"diziam que ela espichava os achaques, de pura ranhetice, pelo prazer que lhe dava falar de suas mazelas com as comadres. Mas na verdade ela se sentia doente, minguava, era miúda e magrinha, feito menininha, desaparecia".

Ao caracterizá-la miúda e magrinha, alguém que está desaparecendo, o narrador ressalta a aparente insignificância e desimportância de Biela, sugeridas ao longo de todo o texto. Sendo assim, como pôde a novela sustentar-se a partir de uma personagem  talvez medíocre? Mais: como pôde resultar em um livro tão bom de ler?

Observemos outro trecho do capítulo 5. Biela, ouvindo um barulho, imagina estar sendo seguida na rua. Para e verifica:

"Ara, disse, é ocê, e olhou para um cachorro magro escaveirado que se sentou sobre as patas traseiras feito aquele outro cachorro do gramofone. O focinho para cima, a boca aberta, a língua comprida de fora, os olhos relumiando fixos nela, o cachorro esperava alguma coisa. Chípite, disse assustando o cachorro. O cachorro fez que ia, mas não ia, rodou em si mesmo, ficou ali ganindo, o focinho farejando o chão. O ganido do cachorro, os olhos reluzentes, a maneira como ele tentava se aproximar, como retrocedia assustado quando ela fazia chípite, como voltava sondando o terreno tudo lhe deu um pouco de pena. Um cachorro abandonado numa noite tão fria. Cachorro sem dono, ramugento. Devia ter fome ou estar doente, pelos ganidos, pelo ar escorraçado".

Estabelecer um paralelo entre a situação do animal e a situação de Biela é praticamente inevitável. Entretanto, cabe ressaltar as precauções tomadas por Autran Dourado ao compor a personagem. Biela é roceira, simples e envergonhada, vive na residência dos primos - que a consideram "pancada da cabeça" - e demora a ser considerada "da casa". Seria fácil para o escritor fazer dela uma pobre coitada. Biela, porém, é rica, herdeira do pai falecido (Conrado, o primo em cuja casa vive, é o administrador dos bens). Só que a personagem não dá importância e não tem noção da quantidade de dinheiro que possui. E este é um dos meios encontrados pelo autor para traçar a "diretriz axiológica" de Biela.

Não é uma personagem elementar, contudo. Se ela é vista pelos outros como "boazinha", sabe que dentro de si há muito ódio guardado; se preferia o "mundo da cozinha" ao convívio com a nova família, sabia muito bem as razões de sua escolha.

Biela "ficou ausente de carinho" após o casamento de Mazília, a única "ponte [...] que a ligava ao continente da família". É quando surge Vismundo, nome dado ao cachorro achado na rua, vindo da roça, como ela, e, no momento do encontro, adoecido e fragilizado como ela:

"Sem querer começava a se afeiçoar àquele cachorro do mato, como ela do mato, ela que em matéria de afeição não queria mais ninguém além de Joviana [a cozinheira da casa em que vivia com os primos], e de suas comadres, que não eram um amor assim tão de perto, dentro de casa, morando no coração. Depois um dia ele vai se embora. Cachorro vai simbora de uma vez. Cachorro, pra quê? Garra que a porta está aberta, vai agorinha mesmo, disse querendo por toda sorte que ele ficasse".

A primeira vez que li Uma vida em segredo não tive, nas primeiras páginas, empatia alguma por Biela. É a escrita de Autran Dourado que faz com que a personagem vá aos poucos nos conquistando. E, afinal de contas, é disto que também se trata a Literatura: construir um todo significativo, que nos emocione e cative, usando, para tanto, " apenas " uma organização de linguagem específica.

Na próxima postagem, começo a falar da criminalidade/marginalidade como tema na ficção brasileira.
__________
* BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: _________. Estética da criação verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 3-20 [tradução de Paulo Bezerra]

** DOURADO, Autran. Uma vida em segredo. 25 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995


BG de Hoje

Mês passado, fui a um ótimo show da cantora/compositora Céu. Mas a "abertura", a cargo do instrumentista, cantor e compositor CURUMIN, não deixou nada a desejar. Uma das canções que sacudiu os espectadores foi  Afoxoque


sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Biela (I)

Mikhail Bakhtin, teorizando a relação do autor com a personagem *, defende que

" [...]  o autor acentua cada particularidade da sua personagem, cada traço seu, cada acontecimento e cada ato de sua vida, os seus pensamentos e sentimentos, da mesma forma como na vida nós respondemos axiologicamente a cada manifestação daqueles que nos rodeiam ; na vida, porém, essas respostas são de natureza dispersa, são precisamente respostas a manifestações particulares e não ao todo do homem, a ele inteiro [...]".

Ou seja, na vida comportamo-nos em relação ao outro sempre levando em consideração os contextos específicos de convivência, que variam no tempo histórico. Não é possível (ainda que se deseje fazê-lo) enfeixar o  outro num único invólucro imediatamente reconhecível - mesmo que, provisória e precariamente, qualifiquemos alguém como sendo irritadiço, compreensivo,  esnobe, etc. "Já na obra de arte" - escreve Bakhtin - " a resposta do autor às manifestações isoladas da personagem se baseiam numa resposta única ao todo da personagem, cujas manifestações particulares são todas importantes para caracterizar esse todo como elemento da obra".

Segundo o pensador russo, "a luta do artista por uma imagem definida da personagem é, em um grau considerável, uma luta dele consigo mesmo".

Julgo importante fazer essas considerações preliminares porque tenciono discutir a composição de uma personagem criada por Autran Dourado, na novela  Uma vida em segredo. Biela, protagonista da narrativa, é o único eixo que sustenta todo esse extraordinário livro.
Dourado conseguiu criar personagens memoráveis em outros de seus trabalhos - como, por exemplo, os membros da família Honório Cota, no romance Ópera dos mortos, do qual falarei noutra oportunidade - mas a Biela de  Uma vida em segredo demonstra um  acabamento  (no sentido estético, literário) notável dentro da Literatura Brasileira.

Trato disso na próxima semana.
___________
* BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: ____________. Estética da criação verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 3-20 [ tradução de Paulo Bezerra ]


BG de Hoje

Na minha opinião,  Little Wing  é a mais bela composição de JIMI HENDRIX, considerado, com acerto, o melhor guitarrista de todos os tempos. Mas STEVIE RAY VAUGHAN toca essa canção maravilhosamente, quase tão bem como a lenda Hendrix.


terça-feira, 28 de agosto de 2012

A escrita atordoante de Kafka: a "energia sem retorno"





A filósofa Hannah Arendt, num de seus livros *, valeu-se de uma narrativa de Franz Kafka para ilustrar metaforicamente o posicionamento dos seres humanos em meio à "disputa de forças" entre o passado e o futuro. Sobre o escritor ela diz:

"Não se decifrou ainda o enigma de Kafka [...] que consiste, basicamente, em uma espécie de espantosa inversão da relação estabelecida entre experiência e pensamento. Ao passo que consideramos como imediatamente evidente associar riqueza de detalhes e ação dramática à experiência de uma dada realidade, atribuindo assim certa palidez abstrata aos processos mentais como tributo a ser pago por sua ordem e precisão, Kafka, graças à pura força de inteligência e imaginação espiritual, criou a partir de um mínimo de experiência despojado e 'abstrato', uma espécie de paisagem-pensamento que, sem perda de precisão, abriga todas as características da vida 'real' . Sendo o pensar para ele a parte mais vital e vívida da realidade, desenvolveu esse fantástico dom antecipatório que ainda hoje [...] não cessa de nos atordoar". 

Atordoamento. Sem dúvida, essa é a sensação quando leio qualquer escrito de Kafka.

Noutra perspectiva, Maurice Blanchot  (citado por John Lechte**) afirma: "por isso que só compreendemos [a obra de Kafka] ao traí-la; nossa leitura gira ansiosamente ao redor de um mal-entendido".

Como, então, interpretar a obra desse autor?

Há, em seus contos e romances, um componente alegórico - o que motiva muitos leitores a tentar buscar sentidos ocultos, a mensagem por trás do texto. Mas esse esforço não nos levaria apenas a "girar ansiosamente ao redor de um mal-entendido" ?  Além disso, por não ser referir diretamente a nenhuma extensão espaço-temporal imediatamente reconhecível na vida "real", a maioria dos escritos de Kafka não nos deixa confortável dentro da "paisagem-pensamento"  por ele criada.

Essa obra atordoante é também um testemunho sobre o ofício do escritor a partir do início do século passado. Como observou John Lechte:

"No caso de Kafka, isso acarreta a consagração de sua experiência interior mais íntima. Essa consagração, ou o tornar-se literário da escrita, arma uma profunda tensão. Pois depois que o escritor armou seu jogo, queimou suas pontes, colocou seu próprio ser em risco e montou o cenário de seu desafio às mais profundas convenções da arte de sua época, ele pode não ser reconhecido; tudo pode ter sido em vão. A possibilidade do fracasso mais profundo tem de ser considerada. As apostas foram muito altas, e a tentação de se comprometer é extremamente forte".

De fato, em vida, o escritor não conheceu nenhuma popularidade e mesmo depois que o amigo Max Brod contrariou o pedido recebido e publicou os manuscritos inéditos, Franz Kafka é provavelmente um autor mais comentado pelos  estudiosos  do que efetivamente lido pelo público leitor  em geral   (exceção, talvez, d'A metamorfose, bastante difundido). Daí Lechte falar em "energia sem retorno" : energia gasta pelo escritor mas que não retorna a ele na forma de recepção popular, e, ao mesmo tempo, energia gasta pelo leitor que não tem garantia de retorno na forma de compreensão do texto proposto pelo autor.

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Para concluir nossa discussão, falemos de uma narrativa kafkiana conhecida: Na colônia penal*** (que considero uma angustiante história de horror).

São quatro personagens: um oficial, um explorador-visitante, um soldado e um condenado. A meu ver, o texto - pensando nos componentes alegóricos dos escritos de Kafka - tematiza a ritualização da violência, exercida metodicamente pelas autoridades (o oficial, na narrativa, parece não perceber o quão é injusto e brutal o uso do aparelho de tortura e morte mantido por ele na aplicação das punições e parece também não se dar conta do sadismo inerente à contemplação do sofrimento alheio).

Atentemos para este trecho, em que o oficial explica ao explorador o funcionamento da máquina de tortura e execução:

"[...] o objetivo não é matar de imediato, mas em média num intervalo de doze horas ; a transição está calculada para a sexta-hora. Muitos, muitos floreios rodeiam a escrita ; a escrita propriamente dita envolve o corpo apenas em um filete estreito ; todo o resto do corpo fica reservado aos ornamentos. Será que agora o senhor será capaz de apreciar o trabalho do rastelo e de todo o aparelho?"

A escrita refere-se à ação dos componentes do aparelho, que desenham e escrevem no corpo do condenado a sentença proferida contra ele. Essa violência ritualizada e metódica acabará por vitimar a todos - é o que a novela nos indica. Tratar-se-ia da "banalização do mal"  (citando um conceito discutido, aliás, por Hannah Arendt)?

Os enigmas de Kafka ainda não foram decifrados

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Para ampliar a compreensão da obra de Franz Kafka sugiro também a leitura de História: onde empatia e distanciamento se encontram (parte 1) e História: onde... (parte 2), publicados no blog da professora Rachel Nunes (um dos recomendados aqui da casa)
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* ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7 ed. São Paulo: Perspectiva: 2011 [ tradução de Mauro W. Barbosa ]

** LECHTE, John. Franz Kafka. In: ________. Cinquenta pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-modernidade. 4 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006. p. 268-272 [ tradução de Fábio Fernandes ]

*** KAFKA, Franz. Na colônia penal. In: _____________.Um artista da fome seguido de Na colônia Penal e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 77-124 [ tradução de Guilherme da Silva Braga ]

 
BG de Hoje

Já que falei em horror, preste atenção a estes versos: "Modulistic terror/ a vast sadistic feast/ the only way to exit/ is going piece by piece" [tradução aproximada: "Terror modulístico ( ? )/ um vasto banquete sádico/ o único modo de sair/ será em pecaços"]. É a primeira estrofe de Piece By Piece, faixa do disco Reign in Blood (1986) do SLAYER, grupo seminal para o trash metal. Justificando o nome da banda, Piece By Piece   é uma espécie de recado macabro dado por um serial killer. No fundo, a letra é uma bobagem que pretende causar espanto e repulsa. Hoje, acho apenas divertido. Mas tinha tudo a ver com o espírito adolescente existente em mim naquela época. De todo modo, ainda curto o som do SLAYER.