A filósofa Hannah Arendt, num de seus livros *, valeu-se de uma narrativa de Franz Kafka para ilustrar metaforicamente o posicionamento dos seres humanos em meio à "disputa de forças" entre o passado e o futuro. Sobre o escritor ela diz:
"Não se decifrou ainda o enigma de Kafka [...] que consiste, basicamente, em uma espécie de espantosa inversão da relação estabelecida entre experiência e pensamento. Ao passo que consideramos como imediatamente evidente associar riqueza de detalhes e ação dramática à experiência de uma dada realidade, atribuindo assim certa palidez abstrata aos processos mentais como tributo a ser pago por sua ordem e precisão, Kafka, graças à pura força de inteligência e imaginação espiritual, criou a partir de um mínimo de experiência despojado e 'abstrato', uma espécie de paisagem-pensamento que, sem perda de precisão, abriga todas as características da vida 'real' . Sendo o pensar para ele a parte mais vital e vívida da realidade, desenvolveu esse fantástico dom antecipatório que ainda hoje [...] não cessa de nos atordoar".
Atordoamento. Sem dúvida, essa é a sensação quando leio qualquer escrito de Kafka.
Noutra perspectiva, Maurice Blanchot (citado por John Lechte**) afirma: "por isso que só compreendemos [a obra de Kafka] ao traí-la; nossa leitura gira ansiosamente ao redor de um mal-entendido".
Como, então, interpretar a obra desse autor?
Há, em seus contos e romances, um componente alegórico - o que motiva muitos leitores a tentar buscar sentidos ocultos, a mensagem por trás do texto. Mas esse esforço não nos levaria apenas a "girar ansiosamente ao redor de um mal-entendido" ? Além disso, por não ser referir diretamente a nenhuma extensão espaço-temporal imediatamente reconhecível na vida "real", a maioria dos escritos de Kafka não nos deixa confortável dentro da "paisagem-pensamento" por ele criada.
Essa obra atordoante é também um testemunho sobre o ofício do escritor a partir do início do século passado. Como observou John Lechte:
De fato, em vida, o escritor não conheceu nenhuma popularidade e mesmo depois que o amigo Max Brod contrariou o pedido recebido e publicou os manuscritos inéditos, Franz Kafka é provavelmente um autor mais comentado pelos estudiosos do que efetivamente lido pelo público leitor em geral (exceção, talvez, d'A metamorfose, bastante difundido). Daí Lechte falar em "energia sem retorno" : energia gasta pelo escritor mas que não retorna a ele na forma de recepção popular, e, ao mesmo tempo, energia gasta pelo leitor que não tem garantia de retorno na forma de compreensão do texto proposto pelo autor.
Para concluir nossa discussão, falemos de uma narrativa kafkiana conhecida: Na colônia penal*** (que considero uma angustiante história de horror).
São quatro personagens: um oficial, um explorador-visitante, um soldado e um condenado. A meu ver, o texto - pensando nos componentes alegóricos dos escritos de Kafka - tematiza a ritualização da violência, exercida metodicamente pelas autoridades (o oficial, na narrativa, parece não perceber o quão é injusto e brutal o uso do aparelho de tortura e morte mantido por ele na aplicação das punições e parece também não se dar conta do sadismo inerente à contemplação do sofrimento alheio).
Atentemos para este trecho, em que o oficial explica ao explorador o funcionamento da máquina de tortura e execução:
A escrita refere-se à ação dos componentes do aparelho, que desenham e escrevem no corpo do condenado a sentença proferida contra ele. Essa violência ritualizada e metódica acabará por vitimar a todos - é o que a novela nos indica. Tratar-se-ia da "banalização do mal" (citando um conceito discutido, aliás, por Hannah Arendt)?
Os enigmas de Kafka ainda não foram decifrados
Para ampliar a compreensão da obra de Franz Kafka sugiro também a leitura de História: onde empatia e distanciamento se encontram (parte 1) e História: onde... (parte 2), publicados no blog da professora Rachel Nunes (um dos recomendados aqui da casa)
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Noutra perspectiva, Maurice Blanchot (citado por John Lechte**) afirma: "por isso que só compreendemos [a obra de Kafka] ao traí-la; nossa leitura gira ansiosamente ao redor de um mal-entendido".
Como, então, interpretar a obra desse autor?
Há, em seus contos e romances, um componente alegórico - o que motiva muitos leitores a tentar buscar sentidos ocultos, a mensagem por trás do texto. Mas esse esforço não nos levaria apenas a "girar ansiosamente ao redor de um mal-entendido" ? Além disso, por não ser referir diretamente a nenhuma extensão espaço-temporal imediatamente reconhecível na vida "real", a maioria dos escritos de Kafka não nos deixa confortável dentro da "paisagem-pensamento" por ele criada.
Essa obra atordoante é também um testemunho sobre o ofício do escritor a partir do início do século passado. Como observou John Lechte:
"No caso de Kafka, isso acarreta a consagração de sua experiência interior mais íntima. Essa consagração, ou o tornar-se literário da escrita, arma uma profunda tensão. Pois depois que o escritor armou seu jogo, queimou suas pontes, colocou seu próprio ser em risco e montou o cenário de seu desafio às mais profundas convenções da arte de sua época, ele pode não ser reconhecido; tudo pode ter sido em vão. A possibilidade do fracasso mais profundo tem de ser considerada. As apostas foram muito altas, e a tentação de se comprometer é extremamente forte".
De fato, em vida, o escritor não conheceu nenhuma popularidade e mesmo depois que o amigo Max Brod contrariou o pedido recebido e publicou os manuscritos inéditos, Franz Kafka é provavelmente um autor mais comentado pelos estudiosos do que efetivamente lido pelo público leitor em geral (exceção, talvez, d'A metamorfose, bastante difundido). Daí Lechte falar em "energia sem retorno" : energia gasta pelo escritor mas que não retorna a ele na forma de recepção popular, e, ao mesmo tempo, energia gasta pelo leitor que não tem garantia de retorno na forma de compreensão do texto proposto pelo autor.
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Para concluir nossa discussão, falemos de uma narrativa kafkiana conhecida: Na colônia penal*** (que considero uma angustiante história de horror).
São quatro personagens: um oficial, um explorador-visitante, um soldado e um condenado. A meu ver, o texto - pensando nos componentes alegóricos dos escritos de Kafka - tematiza a ritualização da violência, exercida metodicamente pelas autoridades (o oficial, na narrativa, parece não perceber o quão é injusto e brutal o uso do aparelho de tortura e morte mantido por ele na aplicação das punições e parece também não se dar conta do sadismo inerente à contemplação do sofrimento alheio).
Atentemos para este trecho, em que o oficial explica ao explorador o funcionamento da máquina de tortura e execução:
"[...] o objetivo não é matar de imediato, mas em média num intervalo de doze horas ; a transição está calculada para a sexta-hora. Muitos, muitos floreios rodeiam a escrita ; a escrita propriamente dita envolve o corpo apenas em um filete estreito ; todo o resto do corpo fica reservado aos ornamentos. Será que agora o senhor será capaz de apreciar o trabalho do rastelo e de todo o aparelho?"
A escrita refere-se à ação dos componentes do aparelho, que desenham e escrevem no corpo do condenado a sentença proferida contra ele. Essa violência ritualizada e metódica acabará por vitimar a todos - é o que a novela nos indica. Tratar-se-ia da "banalização do mal" (citando um conceito discutido, aliás, por Hannah Arendt)?
Os enigmas de Kafka ainda não foram decifrados
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Para ampliar a compreensão da obra de Franz Kafka sugiro também a leitura de História: onde empatia e distanciamento se encontram (parte 1) e História: onde... (parte 2), publicados no blog da professora Rachel Nunes (um dos recomendados aqui da casa)
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* ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7 ed. São Paulo: Perspectiva: 2011 [ tradução de Mauro W. Barbosa ]
** LECHTE, John. Franz Kafka. In: ________. Cinquenta pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-modernidade. 4 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006. p. 268-272 [ tradução de Fábio Fernandes ]
** LECHTE, John. Franz Kafka. In: ________. Cinquenta pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-modernidade. 4 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006. p. 268-272 [ tradução de Fábio Fernandes ]
*** KAFKA, Franz. Na colônia penal. In: _____________.Um artista da fome seguido de Na colônia Penal e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 77-124 [ tradução de Guilherme da Silva Braga ]
BG de Hoje
Já que falei em horror, preste atenção a estes versos: "Modulistic terror/ a vast sadistic feast/ the only way to exit/ is going piece by piece" [tradução aproximada: "Terror modulístico ( ? )/ um vasto banquete sádico/ o único modo de sair/ será em pecaços"]. É a primeira estrofe de Piece By Piece, faixa do disco Reign in Blood (1986) do SLAYER, grupo seminal para o trash metal. Justificando o nome da banda, Piece By Piece é uma espécie de recado macabro dado por um serial killer. No fundo, a letra é uma bobagem que pretende causar espanto e repulsa. Hoje, acho apenas divertido. Mas tinha tudo a ver com o espírito adolescente existente em mim naquela época. De todo modo, ainda curto o som do SLAYER.