terça-feira, 21 de agosto de 2012

Neuromancer (III)


Havia dito na segunda postagem desta série que o tema circulação de dados e informações como setor vital da economia e da vida sociocultural seria tratado no fechamento da análise de   Neuromancer *. Mas preferi agora abordar outra questão que surge no capítulo 21.

Nesse capítulo (provavelmente o mais curto do livro, em que se explica o título da obra), Case, o protagonista, está retido, mentalmente, numa espécie de limbo virtual, criado por uma IA ( Inteligência Artificial) . E enquanto permanece lá, o corpo de Case no "mundo real" indica que ele está morto, pois o eletrencefalógrafo ao qual está ligado exibe uma linha plana durante 5 minutos. Escapa desse confinamento graças a um expediente simples: fones são colocados no seu ouvido orgânico e o som da música - o dub habitual de Zion - penetra no limbo virtual, orientando o personagem.

E por que falar desse capítulo em particular? Porque nele está condensado uma das principais questões de Neuromancer (e também uma das principais do gênero ficção científica): o que é a realidade?

A IA que retém Case - e que aparece a ele na forma de um menino brasileiro de 13 anos - diz em determinado momento: "Para invocar um demônio é preciso saber  o nome dele. Os homens já sonharam isso, mas agora é real, em outro sentido. Um sentido que conhece bem, Case. O seu negócio é saber os nomes dos programas longos e formais, aqueles nomes que seus donos tentam esconder. Os nomes reais".

Por ser um hacker (ou cracker, como queiram), cabe ao herói do livro tentar controlar esses novos "demônios", agora encarnados em códigos informáticos. "Demônios" que a cada dia definem momentos de nossas vidas, desde o terminal eletrônico no banco da esquina aos incríveis simuladores empregados em áreas tão distintas quanto as hard sciences e o entretenimento. Nesses tempos de hiperconectividade já não conseguimos definir o termo realidade rápida, inequívoca e peremptoriamente. E olha que - para usar uma expressão do Carlos Heitor Cony -  ainda estamos na era da "Internet lascada"...

Por fim, destaco outra fala da IA no mesmo capítulo. Tentando convencer Case a permanecer definitivamente naquela "realidade virtual", o menino diz: "Fique. Se a sua mulher [referindo-se à personagem Linda Lee, morta no "mundo real"] é um fantasma, ela não sabe disso. E você também não saberá". Essa passagem me remete ao traidor Cypher, no filme Matrix (discutido aqui), que escolheu a ilusão da mega-simulação virtual ao desagradável  e cruento plano da realidade.

Poderia também escrever a respeito da relação corpo-mente (a ideia de mente flerta, há milênios, com a - problemática - noção de alma), algo muito interessante em Neuromancer, mas fica para outra oportunidade.

Na próxima atualização, falo de um poema de Ferreira Gullar.
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* GIBSON, William. Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2003

BG de Hoje

Ando sentindo uma tremenda dor-de-cotovelo. Para ajudar a dissipar essa sensação desagradável, tenho ouvido os bons e velhos SMITHS. E eu acho simplesmente fenomenais estes versos de There is a light that never goes out" And if a double-decker bus / crashes into us / to die by your side / such a heavenly way to die / And if a ten-ton truck / kills the both of us / to die by your side / well, the pleasure and the privilege is mine" [tradução aproximada: "E se um ônibus de dois andares / batesse em nós / morrer a seu lado / que jeito celestial de morrer / E se um caminhão de dez toneladas / matasse a ambos / morrer a seu lado / bem, o prazer e o privilégio seriam meus"].