terça-feira, 4 de setembro de 2012

Biela (II)



Visando compreender como um personagem literário adquire sua feição mais reconhecível, aquela que permanecerá na mente do leitor, Mikhail Bakhtin* fala em "diretriz axiológica". Qual seria a de Biela, de Uma vida em segredo **? Tentaremos apontá-la analisando o penúltimo capítulo da narrativa, quando a personagem encontra um cachorro abandonado ao voltar para casa.

Biela, envelhecida, andava "achacada de tosse e reumatismo". E"diziam que ela espichava os achaques, de pura ranhetice, pelo prazer que lhe dava falar de suas mazelas com as comadres. Mas na verdade ela se sentia doente, minguava, era miúda e magrinha, feito menininha, desaparecia".

Ao caracterizá-la miúda e magrinha, alguém que está desaparecendo, o narrador ressalta a aparente insignificância e desimportância de Biela, sugeridas ao longo de todo o texto. Sendo assim, como pôde a novela sustentar-se a partir de uma personagem  talvez medíocre? Mais: como pôde resultar em um livro tão bom de ler?

Observemos outro trecho do capítulo 5. Biela, ouvindo um barulho, imagina estar sendo seguida na rua. Para e verifica:

"Ara, disse, é ocê, e olhou para um cachorro magro escaveirado que se sentou sobre as patas traseiras feito aquele outro cachorro do gramofone. O focinho para cima, a boca aberta, a língua comprida de fora, os olhos relumiando fixos nela, o cachorro esperava alguma coisa. Chípite, disse assustando o cachorro. O cachorro fez que ia, mas não ia, rodou em si mesmo, ficou ali ganindo, o focinho farejando o chão. O ganido do cachorro, os olhos reluzentes, a maneira como ele tentava se aproximar, como retrocedia assustado quando ela fazia chípite, como voltava sondando o terreno tudo lhe deu um pouco de pena. Um cachorro abandonado numa noite tão fria. Cachorro sem dono, ramugento. Devia ter fome ou estar doente, pelos ganidos, pelo ar escorraçado".

Estabelecer um paralelo entre a situação do animal e a situação de Biela é praticamente inevitável. Entretanto, cabe ressaltar as precauções tomadas por Autran Dourado ao compor a personagem. Biela é roceira, simples e envergonhada, vive na residência dos primos - que a consideram "pancada da cabeça" - e demora a ser considerada "da casa". Seria fácil para o escritor fazer dela uma pobre coitada. Biela, porém, é rica, herdeira do pai falecido (Conrado, o primo em cuja casa vive, é o administrador dos bens). Só que a personagem não dá importância e não tem noção da quantidade de dinheiro que possui. E este é um dos meios encontrados pelo autor para traçar a "diretriz axiológica" de Biela.

Não é uma personagem elementar, contudo. Se ela é vista pelos outros como "boazinha", sabe que dentro de si há muito ódio guardado; se preferia o "mundo da cozinha" ao convívio com a nova família, sabia muito bem as razões de sua escolha.

Biela "ficou ausente de carinho" após o casamento de Mazília, a única "ponte [...] que a ligava ao continente da família". É quando surge Vismundo, nome dado ao cachorro achado na rua, vindo da roça, como ela, e, no momento do encontro, adoecido e fragilizado como ela:

"Sem querer começava a se afeiçoar àquele cachorro do mato, como ela do mato, ela que em matéria de afeição não queria mais ninguém além de Joviana [a cozinheira da casa em que vivia com os primos], e de suas comadres, que não eram um amor assim tão de perto, dentro de casa, morando no coração. Depois um dia ele vai se embora. Cachorro vai simbora de uma vez. Cachorro, pra quê? Garra que a porta está aberta, vai agorinha mesmo, disse querendo por toda sorte que ele ficasse".

A primeira vez que li Uma vida em segredo não tive, nas primeiras páginas, empatia alguma por Biela. É a escrita de Autran Dourado que faz com que a personagem vá aos poucos nos conquistando. E, afinal de contas, é disto que também se trata a Literatura: construir um todo significativo, que nos emocione e cative, usando, para tanto, " apenas " uma organização de linguagem específica.

Na próxima postagem, começo a falar da criminalidade/marginalidade como tema na ficção brasileira.
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* BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: _________. Estética da criação verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 3-20 [tradução de Paulo Bezerra]

** DOURADO, Autran. Uma vida em segredo. 25 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1995


BG de Hoje

Mês passado, fui a um ótimo show da cantora/compositora Céu. Mas a "abertura", a cargo do instrumentista, cantor e compositor CURUMIN, não deixou nada a desejar. Uma das canções que sacudiu os espectadores foi  Afoxoque