Em O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual *,
como dissemos anteriormente, o filósofo Jacques Rancière realiza
acurada reflexão - a partir da história do pedagogo Joseph Jacotot -
sobre as instituições escolares, suas práticas e pressupostos
pedagógicos e ideológicos.
Rancière ouve na "voz solitária" de Jacotot uma "dissonância inaudita", que nos dá "a consciência dos paradoxos que fornecem sentido" ao ato de ensinar.
Jacotot deu a seu "projeto" educacional (na falta de melhor termo) o nome de Ensino Universal. Ele está baseado na seginte convicção: existe uma igualdade de inteligências a ser comprovada. Rancière observa:
"No alvorecer da marcha triunfal do progresso para a instrução do povo, Jacotot fez ouvir essa declaração estarrecedora: esse progresso e essa instrução são a eternização da desigualdade. Os amigos da igualdade não têm que instruir o povo, para aproximá-lo da igualdade, eles têm que emancipar as inteligências, têm que obrigar a quem quer que seja a verificar a igualdade das inteligências".
Uma situação fortuita levou a essa tomada de posição. Tendo alunos dos Países Baixos que desconheciam o francês por completo (do mesmo modo, nada sabia ele do holandês), Jacotot recomenda então a leitura de uma edição bilingue do Telêmaco. Seria um modo de aprender o francês por meio da tradução. Passado algum tempo, foi solicitado aos estudantes que escrevessem, em francês, suas impressões sobre o livro. E o resultado foi extraordinário. Eles conseguiram se expressar muito bem no idioma até então desconhecido e o qual não havia sido previamente ensinado.
Jacotot enxergou a brecha significativa que existe num dos mais sólidos pilares dos sistemas de ensino: a necessidade de explicações. E aceitou a grande força do acaso no aprendizado dos indivíduos.
Para reforçar sua nova "descoberta", o pedagogo francês vai investigar o que acontece na aquisição do idioma materno.
"No rendimento desigual das diversas aprendizagens intelectuais, o que todos os filhos dos homens aprendem melhor é o que nenhum mestre lhes pode explicar - a língua materna. Fala-se a eles, e fala-se em torno deles. Eles escutam e retêm, imitam e repetem, erram e se corrigem, acertam por acaso e recomeçam por método, e, em idade muito tenra para que os explicadores possam realizar sua instrução, são capazes, quase todos - qualquer que seja seu sexo, condição social e cor de pele - de compreender e falar a língua de seus pais".
Esse "método do acaso", para "funcionar", precisa fazer coincidir a vontade de aprender com uma inteligência desejosa de se emancipar.
"Este é, no entanto, o salto mais difícil. Quando necessário, todos praticam esse método, mas ninguém está pronto a reconhecê-lo, ninguém quer enfrentar a revolução intelectual que ele implica. O círculo social, a ordem das coisas, proíbe que ele seja reconhecido pelo que é: o verdadeiro método pelo qual cada um aprende e pelo qual cada um descobre a medida de sua capacidade", escreve Jaques Rancière.
Continuo na próxima postagem.
* RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002 [ tradução de Lílian do Valle ]
Rancière ouve na "voz solitária" de Jacotot uma "dissonância inaudita", que nos dá "a consciência dos paradoxos que fornecem sentido" ao ato de ensinar.
Jacotot deu a seu "projeto" educacional (na falta de melhor termo) o nome de Ensino Universal. Ele está baseado na seginte convicção: existe uma igualdade de inteligências a ser comprovada. Rancière observa:
"No alvorecer da marcha triunfal do progresso para a instrução do povo, Jacotot fez ouvir essa declaração estarrecedora: esse progresso e essa instrução são a eternização da desigualdade. Os amigos da igualdade não têm que instruir o povo, para aproximá-lo da igualdade, eles têm que emancipar as inteligências, têm que obrigar a quem quer que seja a verificar a igualdade das inteligências".
Uma situação fortuita levou a essa tomada de posição. Tendo alunos dos Países Baixos que desconheciam o francês por completo (do mesmo modo, nada sabia ele do holandês), Jacotot recomenda então a leitura de uma edição bilingue do Telêmaco. Seria um modo de aprender o francês por meio da tradução. Passado algum tempo, foi solicitado aos estudantes que escrevessem, em francês, suas impressões sobre o livro. E o resultado foi extraordinário. Eles conseguiram se expressar muito bem no idioma até então desconhecido e o qual não havia sido previamente ensinado.
Jacotot enxergou a brecha significativa que existe num dos mais sólidos pilares dos sistemas de ensino: a necessidade de explicações. E aceitou a grande força do acaso no aprendizado dos indivíduos.
Para reforçar sua nova "descoberta", o pedagogo francês vai investigar o que acontece na aquisição do idioma materno.
"No rendimento desigual das diversas aprendizagens intelectuais, o que todos os filhos dos homens aprendem melhor é o que nenhum mestre lhes pode explicar - a língua materna. Fala-se a eles, e fala-se em torno deles. Eles escutam e retêm, imitam e repetem, erram e se corrigem, acertam por acaso e recomeçam por método, e, em idade muito tenra para que os explicadores possam realizar sua instrução, são capazes, quase todos - qualquer que seja seu sexo, condição social e cor de pele - de compreender e falar a língua de seus pais".
Esse "método do acaso", para "funcionar", precisa fazer coincidir a vontade de aprender com uma inteligência desejosa de se emancipar.
"Este é, no entanto, o salto mais difícil. Quando necessário, todos praticam esse método, mas ninguém está pronto a reconhecê-lo, ninguém quer enfrentar a revolução intelectual que ele implica. O círculo social, a ordem das coisas, proíbe que ele seja reconhecido pelo que é: o verdadeiro método pelo qual cada um aprende e pelo qual cada um descobre a medida de sua capacidade", escreve Jaques Rancière.
Continuo na próxima postagem.
* RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002 [ tradução de Lílian do Valle ]