sexta-feira, 23 de maio de 2025

O alçapão do empreendedorismo (I)

 

"O empreendedorismo é uma forma mistificadora que imagina poder eliminar o desemprego, em uma sociedade que é incapaz de preservar trabalho digno com direitos. E, como essas novas modalidades de trabalho são deprimentes, a mistificação torna-se o remédio que só fará alimentar a doença".

Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Unicamp, em entrevista para o UOL (14/09/2019)



No ano passado, quatro acontecimentos, principalmente, serviram para solidificar ainda mais meu pessimismo.

Na esfera internacional, a continuidade do genocídio em Gaza. O massacre cruel dos palestinos sendo testemunhado pelo planeta inteiro e, pelo visto, nada conseguirá interrompê-lo. Seja qual for nosso caminho evolutivo, a humanidade, ao que parece, será sempre bestial.

As outras três ocorrências se deram aqui no Brasil mesmo.

Primeiramente, as acusações de assédio sexual contra o advogado e professor universitário Silvio Almeida. O ex-ministro do governo Lula, naturalmente, tem todo o direito à ampla defesa e, até onde sei, tudo ainda está na fase de inquérito (portanto, bem longe de uma condenação judicial), mas senti esse incidente como se fosse um murro na minha própria cara. Uma liderança negra, de esquerda (e em projeção), tendo, supostamente, conduta tão execrável - tal situação, sendo eu próprio um homem negro e de esquerda, me fez sentir um mal-estar como se tivesse sido pessoalmente ultrajado.  

Depois veio a a publi do Átila Iamarino para a Shell. O irritante termo publi pode dar a entender que se trata de uma coisinha insignificante. E não é. Um cara que se destacou defendendo a ciência no combate à desinformação aceita dinheiro de uma petrolífera para... não informar apropriadamente, pois faz vista grossa para os danos ambientais causados pela indústria do petróleo (sendo a Shell uma das gigantes do setor), danos estes fartamente comprovados por - ora, vejam! - cientistas. Como disse o professor Alexandre Costa, da Universidade Estadual do Ceará, "o prestígio de Atila como divulgador científico — que ganhou projeção na pandemia de covid-19 — foi instrumentalizado pela petroquímica, que tem interesse em chegar a seu público". Tudo mundo tem contas pra pagar: OK, eu entendo isso. Quem está podendo dispensar um dinheiro a mais, não é mesmo? Mas, cáspita, a grana tinha que vir de uma corporação que está se lixando para as condições futuras da vida humana na Terra?

Por fim, a absorção do discurso empreendedorista pelo (então) candidato a prefeito de São Paulo, Guilherme Boulos. Sejamos francos: antes mesmo do início da disputa, quase todo mundo (inclusive colegas de partido e outros membros da coligação) sabia que seria quase impossível a vitória do deputado do PSOL, mesmo que ele até tivesse chegado a aparecer como líder das intenções de voto em algumas pesquisas. Portanto, era preciso aproveitar a campanha e apresentar um programa que desafiasse os demais, antagônico na real, colocando as cartas na mesa. O que vi da campanha de Boulos foi decepcionante: tentando descolar-se da pecha de radical (algo visto como defeito pela maioria do eleitorado, ainda mais num dos fulcros do conservadorismo brasileiro), apresentou-se insípido e sem fibra, apenas reagindo aos demais candidatos, principalmente o inqualificável Pablo Marçal, um dos propagandistas do empreendedorismo. Ter aceitado participar de uma  live  com Marçal, aliás, após toda a delinquência promovida pelo  ex-coach-atual-não-sei-o-quê,  foi de amargar, demonstrando, a propósito, como parte da esquerda encontra-se perdida no atual momento político, acuada em meio a tal "polarização" (uma assombração que ninguém se esforça em conceituar). A meu ver, a hora é de mais dissenso (portanto, de mais radicalidade na defesa de determinadas pautas e reivindicações) e menos contemporização (neste ponto, estou em concordância com Vladimir Safatle, Glauber Braga e outros). Porém, o objetivo dessa esquerda avessa a conflitos, ao que parece, passou a ser apenas ocupar cargos nas instituições de Estado, vencendo eleições ocasionalmente, mas abdicando de mobilizar e instrumentalizar a população para melhor compreender e enfrentar a exploração sistêmica do capitalismo.

Como ter ânimo? 

Por ora, falemos do empreendedorismo

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O(a) eventual leitor(a) pode estar se perguntando:  mas que mal há em começar um negócio por conta própria ou tornar-se um prestador de serviço via aplicativo?

Vou começar a apresentar na postagem de hoje o que a cantilena do empreendedorismo prefere manter abaixo da superfície.

Comecemos com uma definição dada por uma entidade de apoio aos empreendedores. Vou reproduzir aqui o que está no site do SEBRAE de Santa Catarina (encontrei assim que iniciei uma busca no Google):

"Empreendedorismo é a capacidade que uma pessoa tem de identificar problemas e oportunidades, desenvolver soluções e investir recursos na criação de algo positivo para a sociedade. Pode ser um negócio, um projeto ou mesmo um movimento que gere mudanças reais e impacto no cotidiano das pessoas.

Segundo o teórico Joseph Schumpeter, empreendedorismo está diretamente associado à inovação. Para Schumpeter, o empreendedor é o responsável pela realização de novas combinações.

A introdução de um novo bem, a criação de um método de produção ou comercialização e até a abertura de novos mercados, são algumas atividades comuns do empreendedorismo. Isso significa que 'a essência do empreendedorismo está na percepção e no aproveitamento das novas oportunidades no âmbito dos negócios' ".   

Caramba! Isso é uma maravilha, não!?

Bem... Muita calma nessa hora.

A definição acima diz que se trata de uma  capacidade - depreendo então não ser algo inerente a qualquer indivíduo, pois alguns - ou muitos - poderiam ser incapazes nesse terreno. Quem a tem, ainda de acordo com o trecho acima, desenvolve soluções e investe recursos em algo positivo para a sociedade. Fico me perguntando se os sujeitos que criaram o cigarro eletrônico, a plataforma Discord, cada uma das centenas de bets ou aqueles famigerados (e altamente poluentes) copos da Starbucks fizeram algo  positivo  para a sociedade, mas, no momento, quero me concentrar no tal investir recursos.

Não creio ser nenhum absurdo dizer que  recursos  (financeiros, sejamos diretos) não estão disponíveis para todos, a qualquer momento e em qualquer lugar. Essa circunstância, penso eu, é uma das que mais depõe contra o empreendedorismo.

Imaginemos duas situações:

➧ O indivíduo 1 decide criar uma loja virtual/tele-entrega de algum produto. Não tem capital próprio suficiente para iniciar o negócio, mas conta com o apoio da mãe, do pai, de um tio rico que decide colocar dinheiro na parada ou, graças às redes de contato (o tal  networking ), nas quais se acham indivíduos endinheirados que ele conheceu devido às relações da família, consegue empréstimos sem muita dificuldade e em ótimas condições. A coisa demora um pouco a engrenar, mas nada que aflija esse indivíduo, pois ele tem uma fonte de renda segura (graças ao emprego na firma de um parente, que não exige pontualidade nem sequer assiduidade) até que o negócio comece a dar lucro. Caso não dê certo, porém, não é o fim do mundo: os prejuízos não resultam em perda de patrimônio e quando "o mercado se reaquecer", tenta-se uma outra ideia e recorrendo-se aos mesmos financiadores.

➧ O indivíduo 2 decide vender compotas artesanais: a esposa é ótima doceira e, como ele está desempregado, pode significar uma renda extra. O primeiro passo, pensa ele, é obter as embalagens. Que tal recolher aqueles vidros de palmito ou de azeitona usados? Não é simples: várias pessoas não fazem separação para reciclagem; além disso, é preciso considerar que os catadores também estão em busca desse tipo de material e são muito mais experientes nessa coleta. Decide então comprar as embalagens; além disso, há o custo do vasilhame para preparação, além das frutas, açúcar, etc. As solicitações de empréstimo nos bancos são recusadas (histórico de crédito ruim, alegam os gerentes). Não há membros da família ou conhecidos com dinheiro guardado a quem possa recorrer. A solução é vender o carro para levantar o capital: as crianças podem caminhar até a escola - é até mais saudável - e a esposa pode voltar a usar o transporte coletivo para chegar ao local onde ela trabalha (de 8h às 17h). À noite, a mulher, numa dupla jornada, adianta o que pode ser adiantado. Durante o dia, o marido finaliza as compotas. Sua tarefa principal, entretanto, é visitar o comércio local e tentar colocar seu produto nas prateleiras, além de procurar vender através do "Zap". Espalha cartazes e capricha no boca a boca. Passado um tempo, as vendas não são nem perto do esperado. Não consegue recuperar a grana do carro vendido. Endividou-se para fazer os cartazes e os rótulos das embalagens. Continua desempregado e sem uma fonte de renda regular.

O(a) eventual leitor(a) deve ter notado, espero, que, nas duas situações hipotéticas, não exemplifiquei com nenhuma invenção espetacular ou uma ideia inovadora pica das galáxias. O motivo? Não são ocorrências comuns: na imensa maioria das vezes, quem decide abrir um novo negócio tenta o mais corriqueiro: comércio/vendas ou prestação de serviço e, sobretudo  no início  da montagem do negócio, ter ou não recursos financeiros suficientes faz toda a diferença no sucesso da empreitada. Espero que os dois exemplos acima tenham ajudado a ilustrar bem esse ponto.

Joseph Schumpeter é citado na definição acima. Nunca li diretamente qualquer coisa escrita pelo autor e seria desonesto criticar só por criticar. Devo confessar, entretanto, que fico bastante tentado a descer a lenha nele, pois, até onde sei, na sua defesa calorosa do capitalismo (e do empreendedorismo), o economista austríaco não levava em conta a voracidade do poder concentrador das corporações e o aumento da desigualdade entre os vários agentes econômicos, inviabilizando qualquer competitividade justa no mercado (um cenário familiar a qualquer um de nós). Dessa forma, o "aproveitamento das novas oportunidades no âmbito dos negócios" é algo bem mais restritivo do que propagandeiam os arautos do empreendedorismo. 

Penso ser inevitável, nessa altura, empregar a palavra  ideologia  (infelizmente, eventual leitor(a), não vai dar para realizar uma ampla conceituação, nem distinguir os usos do vocábulo - por limitação intelectual do blogueiro, sem dúvida, mas sobretudo para não tornar este texto ainda mais cansativo). É bom deixar claro, contudo, desde já, que não concebo o termo negativamente: ser ideológico não implica necessariamente algo prejudicial ou nocivo. Ideologias circulam pela sociedade, entram em disputa muitas vezes, defendidas ou atacadas, sobrevivem ou desaparecem, são adotadas por um grande número de pessoas ou ficam reduzidas a uns poucos grupos. Sou adepto de determinada(s) ideologia(s) ao mesmo tempo em que me oponho a outra(s).

Pois bem. O modo como o empreendedorismo vem sendo difundido e abordado apresenta, na maioria das ocasiões, características do discurso ideológico. 

E esse discurso empreendedorista, a meu ver, precisa ser rebatido.

Continuarei a fazê-lo na próxima postagem, quando pretendo mostrar que toda essa conversa é pra nos convencer de que a única alternativa é o cada um por si.

                            

BG de Hoje

É embaraçoso que nenhuma canção de BOB DYLAN tenha aparecido nessa seção em mais de 15 anos de blog. Tento me redimir hoje com Maggie's Farm, canção que ganhou uma revitalização com o recente filme Um completo desconhecido. Há, junto à crítica, uma interpretação, bastante plausível, de que a canção foi uma resposta do artista Dylan ao pessoal da indústria da música. Há outra, contudo, mais direta e mais do agrado da maioria dos ouvintes, penso eu, que vê nela um libelo contra a exploração do trabalho (é esse entendimento que tiveram, por exemplo, os caras do Rage Against The Machine ao gravarem aquela versão porrada no álbum Renegades).


quinta-feira, 15 de maio de 2025

Falou e disse...

 "Como num círculo vicioso, havia sempre um momento em que o pensamento civilizatório sucumbia a um processo entrópico, bombardeado em seus pontos mais frágeis, em suas dúvidas e contradições, e já não conseguia reagir às crises. Nesse momento, a violência tomava a dianteira como única resposta possível. E, para defender a fragilidade da nação, passavam a recorrer a expedientes típicos de regimes fascistas. O mesmo raciocínio podia ser aplicado a situações mais simples, circunscritas a universos particulares que serviam de microcosmos. O fundamental,  em todo caso, é que havia sempre um momento em que a razão fraquejava e desmoronava, bombardeada por todos os lados no que tinha de mais acabado: a dúvida, a reflexão, a hesitação. Nesses momentos críticos, a razão deixava de dar conta das contradições que trazia em si e que tinham se tornado cada vez mais visíveis e evidentes conforme ela também  se aprimorava e se afastava da barbárie, até ficar totalmente vulnerável ao oportunismo da brutalidade e às investidas das imposturas, dos sofismas e da burrice, como um corpo indefeso de tão puro. Na barbárie, não há dúvida nem hesitação, segue-se o caminho mais curto". *

* Um dos pontos da tese do Rato, protagonista do romance Simpatia pelo demônio, de Bernardo CARVALHO (Editora Companhia das Letras, 2016 - p. 31-32)

terça-feira, 6 de maio de 2025

Deslocados no mundo

 
 
Em entrevista ao site de notícias Daily Beast, publicada numa versão condensada em 8 de janeiro de 2016, o ator mexicano Gael Garcia Bernal, na época preocupado com a possibilidade de Donald Trump ser eleito presidente dos EUA, deixou sua opinião sobre o impulso que leva seres humanos a buscar outros lugares onde viver:  
 
"Migration is as natural as breathing, as eating, as sleeping. It is part of life, part of nature. So we have to find a way of establishing a proper kind of scenario for modern migration to exist. And when I say 'we,' I mean the world. We need to find ways of making that migration not forced".  [tradução aproximada: "Migração é tão natural quanto respirar, quanto comer, quanto dormir. É parte da vida, parte da natureza. Então nós temos que encontrar um modo de estabelecer um tipo de cenário apropriado para a migração moderna existir. E quando eu digo 'nós', quero dizer o mundo. Nós precisamos encontrar modos de fazer essa migração não forçada"]
 
O entrevistador havia perguntado por que, na opinião do artista, seria importante contar a história retratada no filme Desierto, em campanha de lançamento na ocasião, no qual ele interpreta Moises, um homem que está tentando passar do México ao território de seu poderoso vizinho do norte, junto com outras pessoas.
 
Pobre Bernal! Mal sabia que Trump seria eleito naquele ano. Pior ainda: voltaria a sê-lo em 2024 e, sem dúvida, sua hostilidade aos imigrantes foi um dos motivos que levou uma enormidade de pessoas a apoiar sua candidatura em ambas as ocasiões.

Não deveria ser assim - afinal, migrar faz parte da natureza -, mas, na conformação contemporânea, a maioria dos migrantes (e refiro-me aqui ao tipo predominante, o pobre, que acredita numa vida com menos privações materiais e mais segurança noutro lugar) se verá cercada de adversidades onde quer que tente ir nesse mundo.  

A situação do migrante é exemplar para se pensar a questão dos privilégios. O romance O engate, de Nadine Gordimer, publicado em 2001 ¹, retrata bem essa condição. Numa grande cidade da África do Sul (imagina-se Joanesburgo), Julie Summers leva seu carro com defeito a uma oficina e acaba conhecendo Abdu (o nome que ele usa ao se apresentar). Não poderiam ser mais diferentes uma do outro: moça branca, filha de um homem rico ligado ao mercado financeiro, embora ela procure se distanciar do pai e de seu círculo de abastança, enquanto ele é um estrangeiro, árabe de pele escura, em situação irregular no país, vivendo de favor num quartinho no mesmo local onde trabalha. O futuro do casal é impactado pela deportação de Abdu. Julie decide segui-lo no retorno à terra natal, uma nação cujo nome nunca é citado no livro (é possível imaginar algum lugar nas grandes áreas desérticas do Oriente Médio: o Iêmen, talvez?).
 
O romance trata de deslocamentos - tanto geográficos quanto metafóricos. Fala de cisão e encontro; inadaptação e acolhida. Expõe também a irrefreável ânsia em escapar da sina de penúria que persegue muitos daqueles habitantes situados na periferia da periferia do capitalismo. Em certo momento, já em seu povoado, Abdu (cujo nome na verdade é Ibrahim) constata:
 
"Mundo é o deles. Os donos são eles. Dirigido por computadores, telecomunicações - veja só isto aqui  [aponta a revista  Newsweek  que tem nas mãos] - , o Ocidente, eles são donos de noventa e um por cento. Lá de onde você  [Julie]  vem - a África inteira tem apenas dois por cento e é no seu país que está a maior parte. Este aqui? - nem o suficiente para um dígito. Deserto. Se você quer estar no mundo, a única maneira é conseguir que o que você chama de mundo cristão o deixe entrar".
 
Gordimer não optou pelo caminho mais fácil, tentando forçar um sentimento de empatia irrestrito no leitor, pois decidiu não revestir Abdu/Ibrahim com um manto de magnanimidade (a personagem que mais me interessou na narrativa, contudo, foi Maryam, a cunhada de Julie). O árabe, na volta um tanto melancólica ao país de origem, só consegue pensar em cruzar fronteiras distantes mais uma vez. Entretanto,
 
"O que fora suficiente antes, quando conseguira obter algum tipo de visto dúbio de entrada, talvez não sirva - não serve - agora; os símbolos humanitários nacionais equivalentes à Dama Com a Tocha Erguida, assim como a própria, não dão mais as boas-vindas e usam a Luz para revistar cegamente cada candidato, em busca de possíveis conexões com o terrorismo internacional - gente lutando as próprias batalhas ideológicas em solo alheio ou levando nos fluidos do corpo a doença mortífera mais recente. Este país que o reivindica pelo nascimento, pelas feições e pela cor, pela língua e a Fé que teve que afirmar nos formulários, embora não saiba se o filho ainda tem a Crença da mãe - este país ocupa lugar de destaque entre aqueles de onde saem imigrantes indesejáveis".
 
Sua mulher não teria esse problema: "era o tipo certo de estrangeiro. Alguém que pertencia a uma categoria internacionalmente aceitável de origem".
 
Num dos primeiros capítulos do livro, Julie e Abdu vão a um almoço na residência do pai dela. O principal motivo da festividade é marcar a partida de um casal de amigos para a Austrália.
 
" 'Relocate', dizem eles. O eufemismo atual para levantar âncora e partir para outro canto, seja por coação da pobreza ou da política, seja por ambição e convicção de que há uma vida ainda mais privilegiada, longe dos forcados e das AK-47 dos pobres rebelados, longe das pistolas dos criminosos. Não se trata de desempacotar mobília em novo endereço. Algumas das definições do dicionário revelam o anseio inexprimível que não pode ser explicado por ambição, privilégio nem mesmo pelo temor dos outros".
 [...]
"Uma despedida é também uma celebração da imigração, como solução humana. Ninguém aqui se lembra de que essa não é a primeira vez.  [...]  Gerações enterraram essa sua categoria junto com os avós, mas todos eles são imigrantes por ascendência". 
 
O árabe em situação irregular - nesse momento da história, não imediatamente preocupado com o risco da deportação - fica impressionado com as mostras de acumulação de dinheiro do pai de Julie e seus  parças.  Ela, por seu turno, sente-se desconfortável, refletindo sobre aquele pequeno círculo privilegiado: "O festejado casal está prestes a se tornar um casal de imigrantes. Sentada entre os convidados, Julie os vê como aqueles que - o tipo de gente que circula na roda do pai - podem se mudar pelo mundo afora, bem-vindos em toda parte, o quanto quiserem, ao passo que alguém tem de viver disfarçado de mecânico sem nome"

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Antes de encerrar, queria incluir uma observação feita por Nadine Gordimer numa entrevista dada 20 anos atrás (disponível na íntegra aqui). Não está diretamente relacionada ao livro que acabamos de discutir, mas como vai ao encontro de algumas reflexões que constantemente me acompanham, resolvi incluir nesta postagem.

A autora sul-africana era conhecida como uma escritora política (ou seja, alguém que fazia questão de tematizar problemas sociais de nosso tempo; por exemplo, o apartheid  em seu país natal), mas não concordava que sua obra fosse uma espécie de ensaio sociológico travestido de ficção literária (até porque ela própria admitia que nunca foi muito adepta da chamada pesquisa na hora de compor um romance). 
 
Pensando em qual era seu propósito ao escrever, Gordimer diz na entrevista: "Para mim pessoalmente - não sei dos outros -, é explicar realmente o mistério da vida e o mistério da vida inclui, é claro, o pessoal, o político, as forças que nos fazem ser o que somos, enquanto existe uma força que vem de dentro lutando para fazer de nós uma outra coisa". 

E faz questão de complementar logo a seguir: "Devo dizer, nesse assunto, que sou ateia. Talvez se eu tivesse uma religião então eu pensaria que havia resposta para o mistério da vida, mas, como ateia e com toda a humildade, sei que não há religião que consiga me dar essa resposta".
 
Evidentemente, a escritora não está se referindo ao mistério de toda a vida, como uma pergunta a ser respondida, quem sabe um dia, pela biologia ou pela bioquímica: ela refere-se à complexidade da vida humana, que envolve a relação do indivíduo (e sua consciência) com a sociedade e vice-versa, mas também o inconsciente, além de nossas pulsões e nossos instintos enquanto organismos, e de como lidamos com tudo isso, tentando aplicar nexo e estrutura onde é realizável.
 
É plenamente satisfatório e arrebatador, mesmo com a impossibilidade de se chegar a conclusões definitivas. pensar e imaginar a partir desse mistério, tal como ele se apresenta para nós, sem qualquer necessidade de invocar uma explicação religiosa. Aqueles que acreditam em divindades ou poderes sobrenaturais não são os únicos com direito a se maravilhar diante do mistério.
 
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¹ Para essa postagem, estou me valendo da tradução de Beth Vieira (Editora Companhia das Letras, 2004)

 

BG de Hoje

Minha atual obsessão musical é a guitarrista/compositora/cantora SAMANTHA FISH (no vídeo abaixo, interpretando  Can Ya Handle The Heat?,  do recentíssimo álbum Paper Doll )

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Racionais MC's: aprendizado


Em 1998, com 26 anos de idade, eu ainda não entendia (ou não aceitava) que o precipício estava logo ali. Ignorando os indícios ou rejeitando os fatos, achava que certas ações individuais e determinadas peças dessa minha vidinha ordinária  -  o trabalho, um duvidoso percurso acadêmico, o envolvimento afetivo em que me encontrava, o próprio país - ainda podiam dar certo  e, na próxima década ou na seguinte, seria possível partilhar alguma felicidade. Sim, eventual leitor(a), eu conseguia ser ainda mais palerma naquela época.

No início daquele ano, não parava de ouvir dois álbuns bastante diferentes um do outro: OK Computer, do Radiohead, e Sobrevivendo no inferno, dos Racionais MC's. Lembro de ter comprado os dois CDs na mesma loja e a vendedora estranhar um mesmo freguês levando pra casa rock dito "alternativo" e rap nacional.

Fiquei extasiado com Karma Police (o clipe da canção era muito exibido na antiga MTV). No entanto, demorei algum tempo para verdadeiramente apreciar o disco por inteiro. A banda britânica se empenhou em um trabalho não palatável, não radiofônico: a melhor das 12 faixas que o compõem,  Paranoid Android, e a vinheta Fitter Happier são exemplos desse propósito. Não me tornei um fã ardoroso do Radiohead (para ser franco, acho Thom Yorke meio xarope), mas OK Computer  é um dos 30 discos que levaria comigo se fosse forçado a viver em uma ilha deserta (fugindo, sei lá, de um apocalipse zumbi). 

E quanto a Sobrevivendo no inferno 

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Já mencionei aqui no blog que não posso, nem de longe, dizer que sou um ouvinte habitual de rap. No início da idade adulta, eu só conhecia algumas poucas coisas do Public Enemy (embora não compreendesse patavina de inglês naquela época) e, quanto ao cenário nacional, sabia, claro, quem eram Thaíde e DJ Hum, ainda que nunca tivesse escutado nada deles. Hoje, penso ter deixado de ser um peixe totalmente fora d'água (ouço prazerosamente, entre artistas ainda ativos ou não, Câmbio Negro, Black Alien, Missy Elliot, A Tribe Called Quest, Emicida e Little Simz), mas o rap continua não sendo um gênero musical de minha predileção. Devo admitir, contudo, que aprendi a respeitá-lo bastante, após a ebulição provocada pelo álbum lançado pelos Racionais no final de 1997.

Antes, porém, é preciso recuar mais um pouco no tempo. Em 1994, eu ouvira pela primeira vez Fim de semana no parque. Essa faixa integra o Raio X (do)Brasil - disco que permitiu a Ice Blue, Mano Brown, Edi Rock e KL Jay meter o pé na porta do cenário musical brasileiro. Eles tinham certa popularidade em São Paulo, sendo, porém, pouco conhecidos no restante do país: isso passaria a mudar a partir desse álbum - que também apresenta  Mano na porta do bar Homem na estrada. Até então, só era possível ouvir gravações desse tipo na programação de estações como a Rádio Favela ¹ aqui de Belo Horizonte. Com o tempo, algumas outras emissoras locais arriscaram-se a tocá-las (sobretudo Fim de semana no parque ), reconhecendo o valor de Raio X(do) Brasil  e o interesse do público pelas músicas, iniciados no rap ou não.

Quando Sobrevivendo no inferno foi lançado, portanto, a expectativa era muito, muito grande. E creio que não houve motivo para grandes decepções. Pode-se dizer que o CD foi também um sucesso comercial, conseguindo chegar a 500 mil cópias oficiais vendidas alguns meses após o lançamento, um número impressionante, sobretudo quando lembramos que não havia uma major  por trás daqueles (então) quatro jovens negros sediados no Capão Redondo.

O disco é aberto com uma linda versão de  Jorge de Capadócia, de Jorge Ben(jor) - compositor/cantor recorrentemente citado na obra do grupo paulistano. Numa lamentável falha do encarte, contudo, não há informação sobre quem está cantando (seguramente, não é nenhum dos membros dos Racionais). O sample usado foi extraído de Ike's Rap II, de Isaac Hayes (mundialmente conhecido, penso eu, graças a Glory Box, do Portishead). Pouco depois surge a impactante e agressiva  Capítulo 4, versículo 3, aquela em que Mano Brown diz que sua "palavra vale um tiro" e ele "tem muita munição". O caráter de denúncia dos problemas sociais do país, particularmente os que afligem a população preta e pobre, marca indelével dos Racionais, aparece logo no início da faixa:

"60% dos jovens de periferiaSem antecedentes criminais já sofreram violência policialA cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negrasNas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negrosA cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo"
 
( NOTA: Se serve de alento, pelo menos um desses dados mudou significativamente para melhor: hoje, passados 27 anos do lançamento do CD, em torno de 50% dos estudantes em universidades públicas são negros ou pardos, embora certos cursos ainda não contem com um número expressivo de indivíduos pertencentes a esse segmento

A mensagem dos Racionais, endereçada principalmente para os jovens da periferia, "os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia", os que habitam "de Guaianases ao extremo sul de Santo Amaro", dessa vez estava alcançando ouvidos além da quebrada. O  "mano que trampa debaixo do carro sujo de óleo/ ou que enquadra o carro forte na febre com o sangue nos olhos/ o mano que entrega envelope o dia inteiro no sol/ ou o que vende chocolate de farol em farol/ talvez o cara que defende o pobre no tribunal/ ou o que procura vida nova na condicional/ alguém no quarto de madeira, lendo à luz de vela/ ouvindo um rádio velho no fundo de uma cela"  continuavam a escutá-los, fielmente; havia agora, contudo, um fato novo: as pessoas que costumamos chamar de formadores de opinião  deixaram de lado o preconceito contra a "música de maloqueiro" e começaram a prestar atenção também.
 
Destacaria ainda no álbum outras três faixas: Qual mentira vou acreditar, uma composição que conta com um elemento raríssimo - o humor -, em se tratando de Racionais; Diário de um detento, cujo clipe ganhou muito destaque na MTV; e Tô ouvindo alguém me chamar, outra demonstração de como esses caras são bons em construir uma história (feito similar já tinha ocorrido na memorável  Homem na estrada ). Para não ficar só no enaltecimento, um moralismo meio pueril encarquilhado nalguns versos (algo surpreendente, se pensarmos no teor subversivo da maioria dos outros), além de misoginia e machismo nada disfarçados (afinal, são os mesmos caras que compuseram Júri Racional e, claro, a infame Mulheres vulgares ), são os pontos negativos.
 
Penso que o poeta Tarso de Melo fez uma  análise certeira do significado desse disco, quando escreveu ²:
"[...] Sobrevivendo no inferno é uma pancada – musical, cultural, histórica, política, poética. Para entender a força dessa pancada, a filósofa Djamila Ribeiro usa uma imagem muito precisa: organizar o ódio. Os Racionais se tornaram e se mantiveram e cresceram como Racionais porque souberam organizar o ódio. Não reagiram da forma autodestrutiva como o sistema previa: se armaram de ritmo e poesia e partiram para o ataque – fúria e baile".
 
Em 2002, eles lançariam Nada como um dia após o outro dia, contendo, entre outras, Negro Drama e Vida Loka, mas já sem o efeito avassalador do trabalho precedente. 

Se  OK Computer  serviu para reiterar minha convicção de que a arte é o único lugar restante para a redenção e o reconforto dos "iguais em desgraça", como cantou Cazuza,  Sobrevivendo no inferno, mais do que isso, ajudou a enterrar de vez as ilusões que eu ainda mantinha naquele afastado ano de 1998.
 
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Sem exagero, foi um lance tremendo.

O fato de uma instituição consagrada ao saber formal no seu nível mais elevado (de outra maneira, não chamaríamos de ensino superior) ter concedido tal distinção a um grupo originário da periferia pouco escolarizada, cuja trajetória artístico-profissional passou ao largo dos  campi  universitários, é muito bacana, claro, mas não é isso o que há de mais expressivo nesse acontecimento, em minha opinião. Vou tentar me fazer entender.
 
Todos estamos presenciando o uso maléfico da internet, principalmente nas mídias sociais. Por causa disso, esquece-se, por vezes, o quão revolucionária é essa tecnologia.
 
Questões urgentes, até então evitadas no amplo debate público - relatos de violência policial, evidenciação de práticas/discursos racistas e discriminatórios, crítica da ausência de representatividade de determinados grupos sociais, etc. - conseguiram ganhar repercussão dentro da sociedade graças à web e, forçoso admitir, às mídias sociais (pelo menos na fase inicial), deixando de se restringir apenas ao esforço de uns poucos ativistas espalhados aqui e ali ³.
 
Penso não ser possível separar a consolidação dos Racionais MC's desse contexto. Obviamente, nada aconteceria sem o talento e a agudeza do olhar deles, mas o que estou querendo dizer é: a internet, cujo acesso, no final dos anos 1990, começava a chegar progressivamente a mais indivíduos e entidades, foi de inestimável auxílio para que o recado do grupo alcançasse mais pessoas (até mesmo possibilitando a produção de milhares de cópias piratas de Sobrevivendo no inferno ). Mais manos e manas de diferentes lugares conseguiram construir pontes uns com os outros e, em muitas ocasiões, a música dos Racionais era um dos elementos mais importantes nessa aproximação.
 
A iniciativa de conferir o título de doutor Honoris Causa partiu dos docentes Jaqueline Lima Santos, Daniela Vieira dos Santos e Omar Ribeiro Thomaz, mas creio não ser equivocado dizer que a inserção desses artistas primeiramente nos aparelhos de som das periferias e posteriormente na discussão dos mais intelectualizados, cada vez mais sensibilizados para questões como as que mencionei acima, tudo isso graças a interconexão possibilitada pela web, acabaria tornando uma homenagem deste tipo quase uma questão de tempo. E fico feliz, sendo um cara negro, que a Unicamp realmente tenha dado esse passo.
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¹ Vale a pena fazer aqui um breve comentário sobre a Rádio Favela. Nascida em 1981, com equipamentos improvisados e de forma clandestina dentro do Aglomerado da Serra em BH, a Rádio Favela durante décadas teve muita dificuldade para se manter, sobretudo pela ação da polícia. Hoje, legalizada desde o início dos anos 2000, a emissora passou a ser conhecida como Autêntica FM e cada vez mais opta por seguir o padrão de apresentação das outras. Uma pena.
 
² MELO, Tarso de. Sobrevivendo no inferno: ainda e sempre. Cult, São Paulo, n.241, dez. 2018 Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/sobrevivendo-no-inferno-racionais/. Acesso em: 31/03/2025
 
³ Nem tudo são flores, porém. Dessa atuação, originou-se o que eu chamo, tentando fazer piada, de extrema militância, formada por indivíduos cheios de certezas e declarações peremptórias que tornam o debate muitas vezes difícil e infecundo, apesar de se acharem sujeitos de mente aberta.

BG de Hoje

Ao citar os destaques de Sobrevivendo no inferno, dos RACIONAIS MC's , esqueci de incluir   Fórmula mágica da paz. Gosto dela só por causa da batida hipnotizante construída sobre um sample retirado de Attitudes, do grupo de soul  e funk The Bar-Kays. 

sexta-feira, 14 de março de 2025

"Todos nós seremos esquecidos"


Nos Agradecimentos  do volume de contos Felicidade demais (Editora Companhia das Letras, 2010 - tradução de Alexandre Barbosa de Souza), Alice Munro revela, sem embaraço, que "soube sobre Sophia Kovalevsky enquanto pesquisava alguma coisa na  Enciclopédia Britânica". Esclareço logo de cara que também nunca tinha ouvido falar dela até ler o texto de Munro. Mas Sofya Kovalevskaya (ou Sophia Kov(w)alesky) realizou, nos seus 41 anos de vida, feitos notáveis (dos quais eu, ignorante, não tinha notícia).  

Nascida na Rússia, em 1850, Kovalevskaya foi, de acordo com a historiadora da ciência Ann Hibner Koblitz,  "a mais conhecida mulher cientista antes do século XX".  Obteve seu doutorado em 1874, sendo a primeira mulher a conseguir tal titulação num campo - a matemática - ocupado, durante muito tempo, quase que exclusivamente por figuras masculinas. Conquistou o prêmio Bordin, da Academia de Ciências francesa e, posteriormente, um importante cargo de professora na Universidade de Estocolmo. Sua principal contribuição foi na teoria das equações diferenciais parciais - vou fingir que sei do que se trata, eventual leitor(a) -, cuja principal amostra é o teorema de Cauchy-Kowalevsky.

Felicidade demais - o texto que dá nome ao volume de contos - remete-se aos últimos dias de vida de Sophia Kovalevsky, antes do agravamento da pneumonia que a matou. Na primeira vez em que escrevi sobre o livro que contém esse conto, não fiz nenhuma observação sobre essa narrativa por não percebê-la como "aparentada" às demais, talvez pelo fato de ser a única a ter como personagens seres que existiram no mundo real. Manteve-se nela, porém, a melhor característica dos enredos da escritora canadense - as magistrais transições entre o passado e o presente. 

Gostaria de destacar duas passagens do texto de que estamos falando.

Na parte 4, após a obtenção do doutorado, tendo como mentor o alemão Karl Weierstrass, Sophia Kovalevsky decide retornar à sua terra de origem e deixa a matemática de lado por um longo tempo. "O aroma dos campos de feno e dos pinheirais", - escreve Munro - "os dourados dias de verão e as longas noites claras do norte da Rússia a inebriaram". A despeito de sua (até então, inédita) titulação acadêmica:

"Ela estava aprendendo, bastante tarde, o que muitas pessoas ao seu redor sabiam desde a infância - que a vida podia ser perfeitamente satisfatória sem grandes realizações. Podia ser transbordante de ocupações que não a exauriam até os ossos. Adquirindo o que precisava para uma vida confortavelmente plena, e então engajando-se numa vida social e pública cheia de entretenimento, evitaria que se entediasse ou ficasse ociosa, e ao final do dia se sentiria como se tivesse feito exatamente tudo o que agradava a todos. A agonia era desnecessária.

Exceto quanto a ganhar dinheiro".

A depender das circunstâncias, não é raro que a genialidade encontre muitos percalços em seu caminho de afirmação, ainda mais numa época (falo de Kovalevsky) em que o reconhecimento dos intelectos mais proeminentes continuava bastante restrito, principalmente em se tratando de mulheres. Por outro lado, a cômoda mediania é bastante acessível, com a vantagem de gerar satisfação sem exigir desagradáveis privações. 

A busca por grandes realizações tem um quê de obsessivo. Nesse momento, não consigo evitar a lembrança daquele trecho de A ciência como vocação, de Max Weber, em que o pensador alemão defende que, no atual estágio do saber formal, um feito científico só será verdadeiramente significativo se decorrer de um conhecimento altamente especializado. Weber chega a dizer que o  "destino da alma"  do cientista depende da sua capacidade de concentrar-se em fenômenos e objetos cada vez mais específicos. Para tanto, é preciso uma "paixão", "uma estranha embriaguez, ridícula para todos os que a contemplam de fora". E esse empenho pode exaurir até os ossos, como escreve Munro acima. A pergunta que fica é: após ser reconhecido, o indivíduo genial será capaz de se contentar com a mediocridade que cerca a maioria de nós?

Na outra passagem, na parte 2, Sophia encontra-se com Jules Poincaré em Paris. O matemático e físico francês relata uma pequena rusga que teve com Weierstrass a respeito de uma premiação, vencida por Poincaré, cuja mesa julgadora contava com o alemão. Kovalevsky coloca panos quentes e lembra da irrelevância do desentendimento: 

" 'Afinal', ela disse a Jules, 'afinal você recebeu o prêmio e ele é seu para sempre'

Jules concordou, acrescentando que seu nome iria brilhar enquanto o de Weierstrass seria esquecido.

Todos nós seremos esquecidos, pensou Sophia, mas não disse, para não ferir a frágil suscetibilidade humana - especialmente dos jovens - quanto a isso".

Admito que tenho dificuldade para compreender essa sede de muitos por se fazer eterno ou, pelo menos, por ser lembrado muito tempo após a própria morte. O renome desejado por Poincaré de fato aconteceu, mas, afinal, que importância tem isso? Gosto de como Alice Munro revestiu a personagem de Kovalesky com humildade e modéstia.

Na próxima postagem, o assunto será a obra dos Racionais MC's

BG de Hoje

Enquanto a música continuar a ser parte da experiência humana, o tema do amor (ou da relação amorosa) será tema da maioria das canções populares. Fazer o quê? Nessa enxurrada do eu-te-amo, pouca coisa me deixa de ouvido atento. Just The Way You Are,  escrita e lançada pelo BILLY JOEL em 1977-78, é uma das poucas composições, digamos... sentimentais... que ouço com satisfação. Ela tem uns componentes bem bregas (a tentativa de emular uma batida "latina", os trechos e o solo de saxofone...) que a transformam numa faixa saborosamente inofensiva, easy-listening. Também adoro a letra (que representa o tipo de convivência afetiva que boa parte de nós sempre sonhou ter, mas que é improvável de se encontrar no mundo real): [...] "I would not leave you in times of trouble/We never could have come this far,/I took the good times, I'll take the bad times/I'll take you just the way you are [...] "I don't want clever conversation/ I never want to work that hard /I just want someone that I can talk to/I want you just the way you are".  Ah, e não deixa de ser irônico saber que Joel encontra-se atualmente no quarto casamento, com uma companheira 32 anos mais jovem do que ele...

 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

"O otimismo domina, o pessimismo pode ajudar a libertar os dominados"

 
 
 
Mais de uma vez fiz referência, em postagens anteriores, a meu  pessimismo crônico.
 
Não sei precisar quando comecei a dar mais atenção ao pior das coisas; só posso dizer que, desde então, não consigo mais frear esse pendor "psico-existencial". De vez em quando me pergunto se a minha vida poderia ser um pouquinho menos fodida se eu fosse pelo menos um pouquinho mais otimista, mas isso é assunto para outro chope.

Dias atrás li um texto de Vilmar Debona, professor de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos, discorrendo sobre o pessimismo como uma postura anticonformista. Portanto, dá pra dizer, um pessimismo esperançoso, remetendo-me àquele dístico gramsciano, muito citado por aí - pessimismo da razão/otimismo da vontade -, embora o autor esteja ancorado noutros pensadores (Schopenhauer e Horkheimer).
 
Meu pessimismo é o da resignação, o da desesperança e, forçoso admitir, o da covardia. Ainda assim, concordo com muito do que escreve Debona neste pequeno artigo, reproduzido na íntegra abaixo:

                                                                                           
 
O OTIMISMO ATROZ DE ELON MUSK *
 
                                                                                Vilmar Debona
 
 

“Otimismo” é substantivo do latim optimum, “o melhor”. “Pessimismo”, como substantivo de  pessimus, “o pior”, nasceu na condição de mero neologismo, mas bem poderia ser assumido como um neologismo de resistência.

Na seara filosófica ou sob as mais diversas camadas culturais que acabaram por dinamizá-lo, o pessimismo resiste à afirmação do que se pretende maravilhoso, sumo, Absoluto. Foi criado para contestar as teses do “melhor dos mundos”, com o que, de partida, denuncia quem fica para trás ou não cabe nesse suposto tão atrativo mundo. Não foi cunhado para registrar lamúrias e desesperanças. Pessimismo contesta a absolutização da razão, do saber, da ciência e da técnica, ao tempo em que aponta para as vítimas que o bem permite. Em termos críticos, não tem muito a dizer do futuro, mas pode ajudar a desentranhar o mal do presente, ao tempo em que atesta a impossibilidade de compensar o mal do passado.

Em meio a tantos crápulas com superpoderes, autoafirmados como absolutos, hoje, está Elon Musk com suas máquinas. Por acaso ou não, consciente ou não sobre a etimologia, sabem como se chama o robô humanoide de Musk? Optimus! Se o mundo humano revela o  pessimus, é certo que parte disso se deve a humanos autoproclamados sem limites, como Elon Musk, agora secretário da “eficiência trumpista”.

Antes de se reduzir a “metade cheia do copo”, o otimismo afirma; antes de se reduzir a “metade vazia do copo”, o pessimismo nega. O otimismo afirma e positiva; o pessimismo nega e resiste ao positivado e aos positivadores. O otimismo domina, o pessimismo pode ajudar a libertar os dominados. Nesse sentido, Donald Trump, Elon Musk, Steve Bannon e Mark Zuckerberg são exemplos flagrantes de quem encarna o otimismo opressor. Suas vítimas não são apenas imigrantes, refugiados, clandestinos deportados acorrentados, LGBTQIA+, trabalhadores empobrecidos em geral. São todos os manipulados por suas máquinas de poderes mil, realizadoras do mais avançado progresso positivo. Todas essas vítimas, crentes de serem beneficiárias, encarnam e atualizam o  pessimus  como peças manipuláveis.

O otimismo, em especial o de Elon Musk, supõe a liberdade como positiva e irrestrita, e oprime em nome dela; o pessimismo assume a liberdade como negativa: só existe na medida em que nega a opressão. O novo-velho otimismo oficial domina o globo desde sempre, mas acabou de assumir o poder da nação – supostamente ainda – mais poderosa. Ele busca cegamente “a justiça”, tem certeza prévia do que é justiça, de quem é digno dela, e faz triagem para aplicá-la. O pessimismo é afeito às lutas por menos injustiças.

O otimismo sorri e faz um gesto nazista. O pessimismo não se afasta para fora da possibilidade do alcance do braço em gesto nazista, não lamenta nem chora. O pessimismo denuncia o motivo do gesto, o alcance do braço e a perversidade do riso.

O otimismo justifica a dor em nome de um “futuro melhor”; o pessimismo é especialista em dores do mundo, individuais ou sociais, e gostaria de garantir que nenhuma fosse justificada. O otimismo, não por acaso, faz par perfeito com o capitalismo – em suas mais variadas formas e fases. O pessimismo, se pudesse tanto, sufocaria a sanha incontrolável dos – velhos e novos – donos do capital. Secaria seus quereres insaciáveis, esgotaria suas inesgotáveis energias positivas, privatistas e acumuladoras; gostaria de derrotá-los em praça pública.

O otimismo, grandiloquente e falsamente incondicionado, coloniza Marte e instala Starlink na Floresta Amazônica. O pessimismo, esse pessimismo anticonformista, espelha a canção de Caetano Veloso, em que  “um índio descerá de uma estrela colorida”, e  “pousará no coração do Hemisfério Sul, na América”. O otimismo multibilionário de Elon Musk e Jeff Bezos garantirá o futuro uniforme, liso e plano, embrulhado em plástico bolha, controlado por Big Techs. O pessimismo da resistência, esperançoso sem pretender a vitória histórica, garantirá o passado da diversidade, com  “a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”.

Elon Musk, com seu otimismo infalível e como membro do governo de Donald Trump, será um ótimo secretário de Eficiência Governamental. A ineficiência, comumente identificada com o pessimismo do common sense, associada à derrota, teria de ser, hoje, a mais desejada das incapacidades. A eficiência de Elon Musk e Donald Trump impõe a liberdade estratosférica de alguns indivíduos – a deles próprios. O pessimismo dos sufocados, voz do negativo da história, continuará acusando a farsa insana ao falar em nome dos inimigos, dos perseguidos e da morte coletiva em potencial.

Foi pensando a negatividade histórica que Max Horkheimer, o fundador da Teoria Crítica, afirmou algo em uma nota de 1956 que nos choca por sua atualidade:  “Os espíritos negativos, negativistas, que veem e dizem apenas o que é horrível, apenas o que não deve ser, que têm medo de nominar Deus, o que esses espíritos, afinal, desejam? Que as coisas melhorem! Os positivistas agem em Seu nome, dizem sim ao mundo e ao Criador. Unem-se – não são contra os sacros valores. Os têm sempre na ponta da língua. Assim Hitler uniu os alemães, fazendo dos judeus a vítima designada; Nasser os árabes, designando Israel ao papel de vítima” (Notizen, 1956).

O que poderemos diante dos neonazis que se unem hoje e, com seus robôs absolutamente Optimus, unem a humanidade?

O otimismo de Elon Musk e dos multipoderosos das Big Techs é atroz. O pessimismo existe para denunciar, inclusive, suas atrocidades. Atenta a essa resistência pessimista, nos anos 1980 a filósofa brasileira Olgária Matos sintetizava a ideia ao investigar o Arthur Schopenhauer de Max Horkheimer: “O que une os homens é o desconsolo e o desamparo; o que os separa são os fanatismos e as divisões políticas”.

Pessimistas de todo o mundo, uni-vos!

 
* Texto publicado em 18/02/2025 no (ótimo) site A terra é redonda. Acesso feito na mesma data.
 
 
BG de Hoje

Até onde sei, John Cameron Fogerty é reputado, nos EUA, como um dos grandes  songwriters  daquele país, em todos os tempos. Concordo plenamente. Proud Mary, Who'll Stop the Rain, Fortunate Son, Have You Ever Seen The Rain, entre outras, tem um peso importante no cancioneiro norte-americano (e mundial) e serão lembradas por anos e anos como exemplos de música popular/pop/não erudita bem feita. Aprecio todas elas, claro. Há, entretanto, uma faixa do CREEDENCE CLEARWATER REVIVAL pela qual tenho grande apreço - Lodi, com sua atmosfera triste e o refrão de um verso só: "Oh, Lord, (I'm) stuck in Lodi again".
 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Falou e disse...

 "I eventually chose freedom over unrealisable justice, after being detained for years and facing 175-year sentence with no effective remedy (...) I am not free today because the system worked. I am free today after years of incarceration because I pled guilty to journalism". *  **

* [Tradução aproximada] "Acabei por escolher a liberdade em vez de uma irrealizável justiça, depois de ficar detido por anos e encarar [a possibilidade de] uma sentença  de 175 anos sem um recurso efetivo (...) Não estou livre hoje porque o sistema funcionou. Estou livre hoje depois de anos de encarceramento porque me declarei culpado por fazer jornalismo"

** Fala de Julian ASSANGE em seu primeiro pronunciamento público após sair da prisão, reproduzida em matéria do jornal The Guardian, publicada em 01/10/2024. Ainda fico pasmado com a quantidade de pessoas que não consegue ver o quão tirânicas são muitas das ações dos EUA pelo mundo afora, independentemente das alternâncias entre os chefes da Casa Branca. E é horripilante saber que o processo contra o fundador do WikiLeaks não está entre as piores.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Cem anos de solidão : a série e o livro (I)

Registrei uma vez aqui no blog - não estou bem certo onde - que só escrevo sobre livros dos quais gosto ou sobre aqueles que tiveram papel determinante na minha trajetória de leitor. Bem, pelo menos na maioria dos casos. Um critério bem mixuruca, obviamente, mas é assim que a banda toca no  Besta Quadrada , o único lugar em que posso experimentar uma sensaçãozinha de autonomia. Há uma imensidão de textos a serem lidos, o tempo de que disponho não é infinito e, ano após ano, o meu entusiasmo pelas coisas em geral vem decrescendo. É preciso, pois, fazer escolhas.

Assim sendo, como foi difícil escrever a postagem atual!

A chegada de uma adaptação do  Cem anos de solidão  na Netflix me fez relê-lo algumas semanas atrás: não me lembrava da última vez que o fiz. Foi difícil, simplesmente, porque não gosto desse romance. Além disso, Gabriel García Márquez não é um escritor de minha particular estima; com exceção de Relato de um náufrago  e, por razões diferentes, Crônica de uma morte anunciada, sua obra me interessa bem pouco.

Acontece, porém, que estamos falando do Cem anos de solidão , um livro não só amado por um montão de gente mundo afora, particularmente na América Latina e Caribe, mas também reputado como uma grandiosa façanha literária: Pablo Neruda, por exemplo, considerava-o a maior revelação em língua espanhola desde o  Dom Quixote. Então, às favas com meu critério ordinário.

Para começar a conversa, devo dizer que achei a adaptação da Netflix muito boa e isso me surpreendeu. Parte das produções da empresa sempre me pareceram pasteurizadas demais e não foi o caso dessa, embora os roteiristas tenham recorrido aqui e ali a alguns recursos um tanto gastos da teledramaturgia - afinal, uma companhia de streaming tão grande nunca deixará a preocupação com os índices de audiência de lado e precisa atrair o maior número possível de espectadores.

Os principais méritos, a meu ver, estão nas movimentações de câmera e na concepção cenográfica tanto de Macondo quanto a da casa da família Buendía (acompanhar, a cada episódio, as mudanças na arquitetura do imaginário povoado/município e, sobretudo, na residência foi muito prazeroso). O trabalho dos atores também merece ser destacado: Susana Morales Cañas (que interpreta Úrsula Iguarán,  enquanto jovem) e Janer Villarreal (que interpreta o Arcadio adulto, o filho de José Arcadio e Pilar Ternera) são meus preferidos. A narração em  off  - recurso geralmente não muito apreciado em trabalhos audiovisuais - ficou na medida certa.

Cem anos de solidão, como se sabe, é daqueles romances profusos, conjugando diversas historietas ramificadas, casando muito bem com o formato seriado (se fizessem um filme a partir da narrativa literária, é bastante provável que não daria certo, mesmo que tivesse, sei lá, quatro horas de duração). Entretanto, concordo com Rodrigo García Barcha, cineasta e um dos filhos de García Márquez, que a série "é uma experiência diferente e deve ser apreciada pelo que é, sem comparar constantemente com o livro. Para mim, são projetos-irmãos que se complementam"

Às vezes, porém, a comparação é incontornável. Penso, por exemplo, num dos momentos mais marcantes (pelo menos para mim) : a morte de José Arcadio - não o patriarca, mas seu filho primogênito de mesmo nome - e como a fatídica notícia chegou à sua mãe. Reproduzo o trecho abaixo ¹:

"Uma tarde de setembro, diante da ameaça de uma tempestade, [José Arcadio] voltou para casa mais cedo que de costume. Cumprimentou Rebeca na copa, amarrou os cachorros no quintal, pendurou os coelhos na cozinha, para salgá-los mais tarde, e foi para o quarto trocar de roupa. Rebeca declarou depois que quando o marido entrou no quarto, ela se fechou no banheiro e não percebeu nada. Era uma versão difícil de acreditar, mas não havia outra mais verossímil, e ninguém pôde conceber um motivo para que Rebeca assassinasse o homem que a tinha feito feliz. Este foi talvez o único mistério que nunca se esclareceu em Macondo. Logo que José Arcadio fechou a porta do quarto, o estampido de um tiro retumbou na casa. Um fio de sangue passou por debaixo da porta, atravessou a sala, saiu para a rua, seguiu reto pelas calçadas irregulares, desceu degraus e subiu pequenos muros, passou de largo pela Rua dos Turcos, dobrou uma esquina à direita e outra à esquerda, virou em ângulo reto diante da casa dos Buendía, passou por debaixo da porta fechada, atravessou a sala de visitas colado às paredes para não manchar os tapetes, continuou pela outra sala, evitou em curva aberta a mesa da copa, avançou pela varanda das begônias e passou sem ser visto por debaixo da cadeira de Amaranta, que dava uma aula de Aritmética a Aureliano José, e se meteu pela despensa e apareceu na cozinha onde Úrsula se dispunha a partir trinta e seis ovos para o pão. 
- Ave Maria Puríssima! - gritou Úrsula.

Seguiu o fio de sangue em sentido contrário, e em busca da sua origem atravessou a despensa, passou pela varanda das begônias onde Aureliano José cantava que três e três são seis mais três são nove, e atravessou a copa e as salas e seguiu em linha reta pela rua, e em seguida dobrou à direita e depois à esquerda até a Rua dos Turcos, sem se lembrar que ainda trazia vestidos o avental de cozinha e as chinelas caseiras, e saiu para a praça e se meteu pela porta de uma casa onde não havia estado nunca, e empurrou a porta do quarto e quase se sufocou com o cheiro de pólvora queimada e encontrou José Arcadio caído de bruços no chão, sobre as polainas que acabava de tirar, e viu a fonte original do fio de sangue que já havia deixado de fluir do seu ouvido direito. Não encontraram nenhuma ferida no seu corpo nem puderam localizar a arma"

Estou convencido de que o percurso do fio de sangue não se tornará, visualmente falando, uma das sequências memoráveis da série; isso me desagradou um pouco, para ser sincero. Penso também que a pungência do relato escrito foi perdida, ainda que a voz em off  tenha repetido quase textualmente essas frases do livro: "Era uma versão difícil de acreditar, mas não havia outra mais verossímil, e ninguém pôde conceber um motivo para que Rebeca assassinasse o homem que a tinha feito feliz. Este foi talvez o único mistério que nunca se esclareceu em Macondo".  No episódio televisivo, Úrsula não gritou  "Ave Maria Puríssima!"  e, ao chegar à  "a casa onde não havia estado nunca", encontrou o filho caído de costas e não de bruços.

OK, OK, pode ser apenas um descabido excesso de rigor ou um purismo artístico bobo da minha parte, mas, ao cabo, o que estou querendo ressaltar nada mais é do que um fenômeno conhecido por todos nós: a impossibilidade de um trabalho audiovisual reproduzir fielmente um trabalho literário.

A primeira temporada encerrou-se com a morte do fundador de Macondo (a chuva de flores amarelas ficou muito bonita) e o avanço da tropa de Aureliano para recuperar o controle da localidade. A segunda temporada provavelmente mostrará o crescimento e a queda da cidade, após a passagem da Companhia Bananeira (não dá para esquecer aquela célebre frase do Coronel Buendía:    "Olhem a  confusão  em que  nos metemos só por termos convidado um americano para comer banana" ). Curioso para ver como será o retrato da alucinada e insuportável carola Fernanda del Carpio e como mostrarão o paulatino crescimento da amargura e do rancor inesgotáveis de Amaranta.

Nada mais a fazer senão aguardar.

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¹ MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003 [Tradução de Eliane Zagury]. Essa é, atualmente, a única edição do livro que tenho em casa, para acesso rápido e direto.

BG de Hoje

ZIZI POSSI nunca fez uma aparição nesta seção do blog. Um vacilo sem tamanho da minha parte, pois é das minhas intérpretes favoritas. A cantora tem uma sólida formação musical: é pianista e cursou regência e composição na UFBA. Mas, besta quadrada que sou, só fui saber disso há poucos anos, assistindo sua participação no célebre Ensaio (TV Cultura) e no bom programa do Charles Gavin no Canal Brasil,  O Som do Vinil  (tudo disponível no Youtube). Poderia ter se tornado concertista ou seguido carreira acadêmica. Felizmente, preferiu não nos privar de sua lindíssima voz. Escolho  É a vida que diz, do disco Asa Morena, o álbum que a fez conhecida nacionalmente. Gosto demais dessa canção, uma das muitas resultantes da parceria entre os irmãos Marina Lima e Antonio Cicero, falecido recentemente (um terceiro autor - Pisca - também assina a composição). A própria Marina a gravou, mas a versão de Zizi Possi é excelente.