domingo, 27 de julho de 2025

Ano 117 d. F (I)

Talvez este não seja o melhor momento para voltar ao Admirável mundo novo. Digo isso porque as ciências não parecem estar gozando de um apreço significativo e generalizado nos últimos tempos (ou esse montão de gente por aí dizendo que a Terra é plana, dando de ombros para a emergência climática, consultando astrólogos e duvidando da eficácia da vacinação retrata uma história de sucesso em termos de letramento científico?). Os alertas contidos no livro de Aldous Huxley são melhor apreciados, penso eu, quando as proposições das ciências estão com crédito em alta. Numa época, entretanto, em que pessoas dão atenção (e dinheiro) a  coaches  "quânticos" (que ofertam, entre outras coisas, "alteração de células corporais através do pensamento, sentimentos, emoções e comportamentos", segundo um instituto voltado para essa "terapia"), a narrativa literária pode já não ter muito a oferecer como crítica aos excessos do cientificismo. 

Se não estiver contando errado, essa deve ser a 11ª (ou 12ª?) vez que percorro esse texto. É um dos volumes basilares na minha formação de leitor, mas admito que a satisfação de décadas atrás foi deixando de se repetir nas últimas leituras. Há uma emanação moralista e reacionária naquelas páginas que, hoje, não consigo mais aceitar como um problema menor da composição. 

Sendo assim, além da crítica ao cientificismo (e não à ciência, bem entendido), por qual outro motivo valeria a pena retornar mais uma vez ao célebre romance distópico publicado pela primeira vez em 1932?

. . . . . . .  

Apesar de algumas marcas óbvias - por exemplo, nomes de personagens (Bernard Marx, Helmholtz Watson, etc.) e determinados episódios, como a cerimônia do Orgião-Espadão (Orgy-Porgy, no original, um trocadilho com a cantiga infantil inglesa Georgie Porgie ) -, levei muito tempo para me dar conta do alcance do conteúdo satírico na escrita do Admirável mundo novo (não é à toa que este blog se chama Besta Quadrada...). Huxley quis, deliberadamente, fazer troça com H. G. Wells e o otimismo dele em relação ao futuro da humanidade, manifestado em alguns de seus livros, principalmente  Deuses Humanos (soube disso só muito tempo depois das primeiras leituras). Creio que seria proveitoso dispor de algumas informações biográficas para compreender melhor tudo isso (sobretudo porque acho que Huxley deve ter achado graça em alguns momentos durante o processo de elaboração da obra), mas infelizmente não há como obtê-las no momento. Estou querendo dizer que a intenção satírica me leva a especular sobre a possibilidade de o escritor estar apenas se divertindo em algumas passagens.  De qualquer forma, trata-se de um romance de ideias, em que o autor certamente quer conduzir seu leitor para determinadas conclusões e, no todo, não estava brincando em serviço.

A amplitude de uma obra de ficção científica depende, em grande parte, do quanto suas "previsões" se mostram corretas. No prefácio ao livro publicado anos depois do lançamento, impactado pelo uso de bombas atômicas na Segunda Guerra Mundial, o romancista admite que não deu atenção suficiente para o poder da fissão nuclear, mas essa não é sua única falha em termos de imaginação do futuro: não há, por exemplo, menção à automação do trabalho, algo que já estava no horizonte de artistas nas primeiras décadas do século passado, além de ser uma conjectura quase inevitável ao ter em mente a linha de montagem fordista. Por outro lado, com acerto, ele intuiu que o controle social conseguiria ser muito eficiente se empregasse técnicas e estratégias direcionadas para a pisque, valendo-se de tecnologia avançada, resultando em indivíduos que "amam a servidão". Mesmo assim, oportuno observar, o controle social em nossos dias ainda depende da violência e da coerção física em inúmeros casos, bem diferente do estável sistema de castas futurista (o Estado Mundial) apresentado no livro, no qual o descontentamento pode ser facilmente suprimido por meio de um fármaco. Nesse aspecto, a crítica que Huxley fez a George Orwell numa carta a respeito de  1984, afirmando que a política de  botina na cara  não parecia ter muito futuro no longo prazo, não se mostrou acertada, pelo menos até o presente momento histórico.

É fato que Huxley temia o totalitarismo. Por essa razão, muitos identificam no Admirável mundo novo tão somente uma condenação implacável direcionada ao fascismo (que, sabemos, desembocaria na monstruosidade de Hitler), bem como ao regime vigente no chamado  socialismo/comunismo real  de feitio soviético (o ficcionista britânico talvez preferisse o termo bolchevismo ), tendo Stálin no comando. Creio não ser uma visão equivocada. Uma análise um pouquinho mais atenta, contudo, permite-nos ver que não se trata apenas disso.

Observemos um excerto do capítulo três - uma das falas do Diretor do Centro de Incubação de Londres:

"- É estranho [...], é estranho pensar que, mesmo no tempo de Nosso Ford, a maioria dos jogos não tivesse mais acessórios que uma ou duas bolas, alguns bastões e talvez um pedaço de rede. Imaginem que tolice permitir que as pessoas se dedicassem a jogos complicados que não contribuíam em nada para aumentar o consumo. Atualmente, os Administradores não aprovam nenhum jogo novo, salvo se demonstrar que ele necessita, pelo menos, de tantos acessórios quanto o mais complicado dos jogos existentes".

Aumentar o consumo... Referências à necessidade de consumir aparecem noutros momentos da narrativa. No capítulo onze, por exemplo, Linda - uma pessoa criada no Estado Mundial, mas que foi deixada para trás numa reserva formada por uma população à parte desta organização social -, mesmo após tantos anos de fora, não se livrou do condicionamento para o consumo. Diz ela em determinado momento "Além disso, nunca foi direito remendar roupa. É atirar fora quando estiverem estragadas e comprar novas. 'Quanto mais se remenda, menos se aproveita' [um ensinamento incutido por meio de um processo chamado hipnopedia]. Não é verdade? Remendar é antissocial".

O fenômeno da  sociedade de massa  inquietava muitos intelectuais na primeira metade do século passado, atraindo pensadores politicamente tão diferentes quanto Ortega Y Gasset e Adorno e Horkheimer. O autor de  Admirável mundo novo  - até onde sei, alguém que não dá para chamar de revolucionário - também estava refletindo e se questionando a esse respeito. Num mundo cada vez mais populoso, os conflitos serão ainda mais destrutivos? Haverá ocupações e lugar para todos? Como fica a questão da ordem, do exercício da autoridade e do poder? E o risco da anulação do indivíduo, cada vez mais indistinto no mundaréu de gente? Nesse cenário, como atender a liberdade pessoal? Como fica a questão da autonomia de pensamento, da criatividade pessoal e da inspiração artística? 

De acordo com a ficção de Huxley, a humanidade do futuro reforçará a segurança e a estabilidade em detrimento da independência e da liberdade individuais. O "detalhe" é que, para a permanência desse estado de coisas, o consumo precisa ser ininterrupto, uma prática contínua, executada por seres humanos infantilizados. É esse ponto - seres humanos infantilizados impelidos ao consumo - um dos poucos tópicos que fazem o livro aqui debatido uma criação ainda relevante nos dias atuais.

Concluo a discussão na próxima postagem.

 _______________ 

¹ HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. 22 ed. São Paulo: Globo, 2014 [Tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano). Todos as citações do livro colocadas nesta postagem foram retiradas dessa edição/tradução.

BG de Hoje

A frase "É pra isso que eu pago internet" não deve ser usada em vão. Dito isso, os Tiny Desk Concerts estão entre aquele monte de iniciativas pelas quais agradecemos a existência da web. É tão bom poder ver artistas que se admira apresentando-se dentro do formato proposto ali, bastando uns poucos cliques e pressionar de teclas! Recentemente, a banda nova-iorquina LIVING COLOUR, uma das minhas prediletas em todos os tempos, apareceu por lá. Sensacional! Entre as canções tocadas, Love Rears Its Ugly Head  teve tudo a ver com o espaço, principalmente pela execução ainda mais  jazzy  do que a gravação original (a partir de 12m5s). 

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Felicidade, afinal, para quê?


Felicidade, afinal, para quê? Essa pergunta ficou na minha cabeça por muitas horas após terminar a leitura de A trégua.  A história do amor tardio ali contada (tardio pelo menos para uma das personagens) me chacoalhou um pouco, forçoso admitir, embora seu desfecho não fosse difícil de antecipar. Falaria sobre outra obra hoje, mas sinto que preciso me acertar com este livro de Mario Benedetti e com a emoção que senti. 

Publicado originalmente em 1960, o romance é construído a partir do diário de Martín Santomé, ser ficcional que enfeixa as características de um tipo de protagonista bastante frequente na literatura moderna, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, ligado à progressiva urbanização dos espaços: o sujeito sem qualquer excepcionalidade, um funcionário sem destaque, a mediania personificada, apenas mais um na multidão.

De olho na aposentadoria que se aproxima, Santomé, viúvo há bastante tempo, pai de três filhos já adultos, acaba se apaixonando por uma mulher muito mais jovem, Laura Avellaneda, empregada recém-contratada e subordinada a ele no escritório comercial onde ambos trabalham em Montevidéu.

Antes de abrir o livro, eu tinha dois motivos para me indispor com ele. Como já escrevi aqui e noutras postagens, não costumo apreciar histórias de amor. Além disso, acho a forma  diário  um expediente meio preguiçoso dos escritores ao construir uma narrativa literária (sou obrigado a aceitar,  contudo, que um de meus livros mais diletos - A náusea, de Sartre - foi feito nesse formato). A ficção apresentada como  diário,  porém, tem a vantagem de ser conduzida por uma voz narrativa em primeira pessoa propensa à sinceridade (aquela possível dentro uma história inventada, claro) e, em  A trégua,  assim como noutras composições similares, o mecanismo de identificação/afinidade entre narrador e leitor acaba se estabelecendo muito facilmente.

O protagonista é mordaz, mas nunca cruel ou isento de compaixão. Nem por isso deixa de mostrar-se um homem de seu tempo (chegando à meia-idade no intermédio do século passado), incapaz de emergir do machismo e da homofobia - a ironia é que tem um filho gay e, pela primeira vez, está aprendendo o valor do âmbito afetivo e sentimental de uma relação para além da crua atração física pela mulher amada.

Como seria de se esperar, é uma pessoa solitária, com uma vida desinteressante e banal, tendo como única atividade o trabalho - "essa espécie de constante martelar, ou de morfina, ou de gás tóxico" ¹. Antes de Avellaneda e ele começarem seu envolvimento (que o casal passa a chamar de  Assunto ), lê-se no diário a certa altura:

"Quase todos os domingos, almoço e janto sozinho, e inevitavelmente fico melancólico, 'O que fiz da minha vida?' é uma pergunta que soa a Gardel ou a Suplemento Feminino ou a artigo do  Reader's Digest. Hoje, domingo, sinto-me além do irrisório e posso me fazer perguntas desse tipo. Em minha história particular não se operaram mudanças irracionais, guinadas insólitas e repentinas".

Santomé sempre tivera "um leve mal-estar diante do pieguismo", mas não consegue deixar de se perguntar em determinado momento: "Por que será que o verdadeiro é sempre um pouco piegas?". Esse questionamento não é respondido: ele, entretanto, a cada dia, passa a compreender que não há como (e nem há necessidade de) fugir do sentimentalismo frente a essa paixão temporã, cuja verdade aceita: "Estou numa idade em que o tempo parece e é irrecuperável. Tenho  de me agarrar desesperadamente a esta razoável ventura que veio me buscar e me encontrou".

Trata-se, como se vê, de uma época crucial na vida do personagem (e o leitor, quem sabe, pode estar também no mesmo barco):  

"Hoje, em vários momentos do dia, pensei: 'Cinquenta anos', e minha alma despencou até o chão. Fiquei diante do espelho e não pude evitar um pouco de piedade, um pouco de comiseração por este tipo enrugado, de olhos fatigados, que nunca chegou nem chegará a nada. O mais trágico não é ser medíocre, mas inconsciente dessa mediocridade; o mais trágico é ser medíocre e saber que se é assim e não se conformar com esse destino que, por outro lado (isso é o pior), é de rigorosa justiça".

A esse sujeito "meio apagado mas inteligente", sem mais expectativas do que o desencargo da pós-aposentadoria, foi dada nova chance de experimentar a felicidade: 

"Quando um indivíduo permanece muito tempo sozinho, quando se passam anos e anos sem que o diálogo vivificante e investigativo o estimule a levar essa modesta civilização da alma, que se chama lucidez, até as zonas mais intrincadas do instinto, até essas terras realmente virgens, inexploradas, dos desejos, dos sentimentos, das repulsas, quando essa solidão se transforma em rotina, ele vai perdendo inexoravelmente a capacidade de sentir-se sacudido, de sentir-se viver. Mas vem Avellaneda e faz perguntas, e, sobre as perguntas que ela me faz, eu me faço muitas mais, e então sim, agora sim, sinto-me vivo e sacudido".
Nós, os desgostosos desse mundo, porém, estamos fartos de saber que a felicidade é um colossal engodo, quaisquer que sejam os modos como se queira enxergá-la ou defini-la. Não se tem muitas oportunidades de prová-la (no sentido de experenciá-la). A plenitude desse estado emocional, então, é algo ainda mais fortuito. Isso fica bem ilustrado num dos trechos memoráveis do romance:

"Fui até a cozinha, acendi o fogareiro e coloquei água para esquentar. Lá do quarto, ela me chamou. Levantara-se assim mesmo, embrulhada na manta, e estava junto à janela, vendo chover. Eu me aproximei, também olhei como chovia, e por alguns minutos não dissemos nada. De repente, tive consciência de que aquele momento, aquela fatia da cotidianidade, era o grau máximo de bem-estar, era a Ventura. Eu nunca havia sido tão plenamente feliz como naquele momento, mas tinha a aguda sensação de que nunca mais voltaria a sê-lo, pelo menos naquele grau, com aquela intensidade. O ápice é assim, claro que é assim. Além disso, tenho certeza de que o ápice é só um segundo, um breve segundo, um clarão instantâneo, e não há direito a prorrogações".

Aprendemos rapidamente (nós, os desgostosos) a dispensar a felicidade, a não contar com a felicidade. Não é só pelo fato de que ela tende a durar pouquíssimo. É principalmente por que ela pode nos ser tomada a qualquer momento, sem alertas ou avisos prévios. 

Devemos continuar sem mais nada além de nossas rotinas incolores e vazias, às quais estamos tão acostumados. 

_________________ 

¹ Todas as citações de A trégua aqui reproduzidas foram extraídas da edição publicada em 2007 pela Objetiva, com tradução de Joana Angelica D'Avila Melo.

 

BG de Hoje

Repito: histórias de amor não costumam me atrair. Ano retrasado, no entanto, numa das minhas (muitas) noites de insônia, decidi assistir à série Wolf Like Me (disponível no Amazon Prime). Não estava muito interessado, a princípio, mas fui sendo fisgado progressivamente. Resultado: adorei a primeira temporada (não tenho como avaliar a segunda porque ainda estou na metade). Embora o sobrenatural exerça papel essencial na trama, a série trata sobretudo dos laços que podem surgir entre um casal formado por indivíduos angustiados, após sofrerem perdas amorosas pesadas. É um tanto sentimentaloide? Sim. Mas deu certo como entretenimento. Além disso, a produção fez um ótimo trabalho na trilha sonora. O maior exemplo foi o uso de Fortress, uma das melhores canções do QUEENS OF THE STONE AGE em momentos significativos.

sábado, 7 de junho de 2025

Falou e disse...

"Ficar sozinha na corda bamba do desconhecimento da juventude é vivenciar a beleza excruciante da liberdade total e a ameaça de eterna indecisão. Poucos - se é que alguém - sobrevivem à adolescência. A maioria se rende à pressão vaga e assassina da conformidade adulta. Fica mais fácil morrer e evitar conflitos do que travar uma batalha constante com as forças superiores da maturidade.

Até recentemente, cada geração achava mais conveniente alegar culpa da acusação de ser jovem e ignorante, mais fácil aceitar a punição imposta pela geração mais velha (que tinha confessado o mesmo crime poucos anos antes). A ordem para crescer imediatamente era mais suportável do que o horror sem face do propósito oscilante que era a juventude.

As horas alegres em que os jovens se rebelavam contra o sol poente tinham que abrir caminho para os períodos de vinte e quatro horas chamados 'dias', que tinham nome e número.

A mulher negra é agredida nos anos jovens por todas essas forças comuns da natureza ao mesmo tempo em que fica presa no fogo cruzado triplo do preconceito masculino, do ódio branco ilógico e da falta de poder negro.

O fato de que a mulher negra americana adulta surge como uma personagem formidável costuma ser visto com surpresa, aversão e até beligerância. Raramente é aceito como resultado inevitável da luta vencida por sobreviventes que merece respeito, se não aceitação entusiasmada"  *

* ANGELOU, Maya. Eu sei por que o pássaro canta na gaiola. Bauru: Astral Cultural, 2018. p. 311-312 [Tradução de Regiane Winarski]

domingo, 1 de junho de 2025

O alçapão do empreendedorismo (II)

"Essa oposição [entre 'menos direito e mais emprego ou todos os direitos e o desemprego', frase dita pelo ex-presidente Jair Bolsonaro] só existe no ideário selvagem daqueles que querem um mercado de trabalho selvagem. Não é o direito que garante mais ou menos emprego. O emprego maior ou menor depende do movimento da economia. É uma falácia e é uma mentira vergonhosa dizer que, se há menos direito, há emprego. 

O que nós temos que discutir no Brasil hoje é se nós queremos o caminho da dignidade mínima para a população trabalhadora, ou nós queremos o caminho do que eu chamo de privilégio da servidão, da lei da selva, da corrosão completa. Portanto, essa tese que relaciona uma coisa à outra é falaciosa, mentirosa e manipuladora."

Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Unicamp, em entrevista para o UOL (14/09/2019)

O presidente Bolsonaro já declarou que é preciso escolher entre "menos direito e mais emprego ou todos os direitos e o desemprego". Existe essa oposição? Essa oposição só existe no ideário selvagem daqueles que querem um mercado de trabalho selvagem. Não é o direito que garante mais ou menos emprego. O emprego maior ou menor depende do movimento da economia. É uma falácia e é uma mentira vergonhosa dizer que, se há menos direito, há emprego. O que nós temos que discutir no Brasil hoje é se nós queremos o caminho da dignidade mínima para a população trabalhadora, ou nós queremos o caminho do que eu chamo do privilégio da servidão, da lei da selva, da corrosão completa. Portant... - Veja mais em https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2019/09/14/entrevista-sociologo-ricardo-antunes-trabalho-emprego-empreendedorismo.htm?cmpid=copiaecola
O presidente Bolsonaro já declarou que é preciso escolher entre "menos direito e mais emprego ou todos os direitos e o desemprego". Existe essa oposição? Essa oposição só existe no ideário selvagem daqueles que querem um mercado de trabalho selvagem. Não é o direito que garante mais ou menos emprego. O emprego maior ou menor depende do movimento da economia. É uma falácia e é uma mentira vergonhosa dizer que, se há menos direito, há emprego. O que nós temos que discutir no Brasil hoje é se nós queremos o caminho da dignidade mínima para a população trabalhadora, ou nós queremos o caminho do que eu chamo do privilégio da servidão, da lei da selva, da corrosão completa. Portant... - Veja mais em https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2019/09/14/entrevista-sociologo-ricardo-antunes-trabalho-emprego-empreendedorismo.htm?cmpid=copiaecola
O presidente Bolsonaro já declarou que é preciso escolher entre "menos direito e mais emprego ou todos os direitos e o desemprego". Existe essa oposição? Essa oposição só existe no ideário selvagem daqueles que querem um mercado de trabalho selvagem. Não é o direito que garante mais ou menos emprego. O emprego maior ou menor depende do movimento da economia. É uma falácia e é uma mentira vergonhosa dizer que, se há menos direito, há emprego. O que nós temos que discutir no Brasil hoje é se nós queremos o caminho da dignidade mínima para a população trabalhadora, ou nós queremos o caminho do que eu chamo do privilégio da servidão, da lei da selva, da corrosão completa. Portant... - Veja mais em https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2019/09/14/entrevista-sociologo-ricardo-antunes-trabalho-emprego-empreendedorismo.htm?cmpid=copiaecola

 

AVISO: O texto a seguir, para ser melhor compreendido, pressupõe a leitura da primeira postagem anteriormente publicada desta série, disponível aqui.

 

Tenho visto por aí que muitos jovens execram a carteira assinada, uma representação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), também desdenhada por eles e elas. Para essas pessoas, ser CLT  é um atestado de fracasso. É preciso admitir que as condições de trabalho e os salários ofertados em muitas ocupações no país, em geral, são mesmo ruins, sem falar na péssima mobilidade urbana, com transporte público de massa negligenciado e mal planejado (o que torna o deslocamento  domicílio-trabalho-domicilio  um inferno diário). Mas os empregos/ocupações de merda não são culpa da CLT, muito menos dos direitos trabalhistas (não canso de ficar espantado ao verificar que isso não é óbvio para todos). Muitos desses jovens não se dão conta da exploração inerente ao capitalismo, particularmente num pais muito desigual. Pior: acreditam que vão escapar dela e se dar bem financeiramente através do Tik Tok ou do Instagram, monetizando o "conteúdo" que estiverem expondo, uma expectativa irrealista, penso eu, pois embora o Brasil seja um dos países em que os usuários mais passam tempo nas mídias sociais, os indivíduos que conseguem obter uma renda regular e suficiente através destas não são tantos assim.

O desapreço pela carteira assinada - e aquilo que ela em grande parte simboliza: afazeres rotineiros, com horários e remuneração fixos, além da garantia de direitos frente ao poder do capital - nos ajuda a realçar um dos aspectos do empreendedorismo enquanto discurso ideológico.

Desde a postagem anterior, quero suscitar a seguinte reflexão: hoje em dia, o uso do termo empreendedorismo  não se refere apenas a determinadas iniciativas pessoais ou a processos voltados para a inovação: tornou-se uma panaceia para os problemas socioeconômicos. Além disso, para empreender de verdade, dentro do modo de produção vigente, é preciso inicialmente dispor de recursos (isto é, dinheiro), inclusive para se resguardar caso as coisas não saiam como o planejado (essa história de  aceitar os riscos do negócio  só vale mesmo para quem já tem as costas quentes). Assim sendo, tornar-se um empreendedor não está ao alcance de qualquer um, como se quer fazer acreditar.

Antes de prosseguir, percebo que terei necessidade de novamente afirmar algo óbvio para evitar ser mal interpretado: o ímpeto de empreender não é, em si, um ato satânico, não é bater em mãe ou negar água a quem tem sede, nada disso. Várias pessoas são bastante inventivas, têm sonhos ousados; outras desejam criar uma coisa só delas ou ter um equilíbrio saudável entre o tempo do trabalho e o tempo para a vida pessoal. Nada contra, pelo contrário. Se puderem, corram atrás de suas invenções, sonhos, criações e desejos. Empreendam, se tiverem condição! . 

O problema é que, quando penso nos atuais trabalhadores da chamada  Gig Economy,  por exemplo, não consigo deixar de me perguntar se a maioria deles está nessa pelos motivos mencionados acima. Quantos desses motoristas de Uber ou entregadores de iFood estão realizando um desejo, inventando algo original, perseguindo um sonho? Falo deles porque é comum encontrarmos referências a esse segmento como  patrões de si mesmos  e (isso é importante) até como  empreendedores.

Em 2024, a renda média mensal de um entregador do iFood, de acordo com o Cebrap, variou de R$ 807 a R$ 3.309 (esses números foram estabelecidos a partir de duas jornadas de trabalho semanais, 20 ou 40 horas, sendo R$ 23 o valor médio pago pela hora trabalhada). Não se trata de uma remuneração polpuda (naturalmente, esse ganho pode aumentar se o entregador ficar mais tempo rodando na sua moto/bicicleta, incluindo os fins de semana, prática comum entre esses trabalhadores). Não tenho ideia de quanto se recebe na Uber, mas arrisco dizer que não deve ser nada muito espetacular. Eles alegam então que nem tudo é dinheiro. Fala-se da liberdade. "Faço meus próprios horários" , "Não sou controlado pelo governo", muitos dizem. 

Mudando um pouco de assunto, quem também adora falar de liberdade são os partidários da extrema direita (por favor, não estou afirmando que os prestadores de serviço via aplicativo estão necessariamente posicionados nesse campo do espectro político). E a extrema direita, a despeito de propagar aos quatro ventos que o socialismo não passa de uma utopia delirante (e contrário à liberdade, diga-se de passagem), mantém a sua própria utopia, uma utopia capitalista liberal (ou neoliberal). Refiro-me à crença de que a sociedade entrará em harmonia e equilíbrio bastando conceder cada vez mais liberdade ao mercado (afinal, o mercado se autorregula perfeitamente, não?) e assegurando que apenas uns poucos bilionários (esses iluminados semideuses) ditem os rumos da economia, sem restrições ou interferências. Nesse mercado livre até não poder mais, com o Estado totalmente a serviço dos ricaços, vale perguntar : todos poderão ter suas demandas atendidas na hora de fazer um acordo ou a parte com mais grana, patrimônio - enfim, poder econômico - é a que vai impor seu apetite às outras partes, obrigando-as a se sujeitar? Nesse domínio da liberdade plena (para quem tem muito dinheiro, bem entendido), os vencedores mereceram vencer, não importa como o fizeram, e os perdedores... bem, os perdedores que se lasquem.

Dias atrás, assisti a duas entrevistas exibidas no Youtube e trechos das falas dos entrevistados têm muito a ver com a reflexão que venho fazendo. O filósofo Vladimir Safatle, falando com Breno Altman, no Opera Mundi, afirmou (a partir de 29m19s de vídeo), que o fascismo tem sido bem sucedido em sua nova ascensão porque "dá uma resposta racional" aos problemas socioeconômicos. Safatle tem se mostrado contrário às análises que tentam explicar o crescimento do fascismo ancorando-se em termos psicológicos como  regressão  ou  ressentimento.  Segundo ele, "você pode ser racional e fascista ao mesmo tempo". E complementa: "O fascismo traz uma perspectiva brutalmente realista que consiste basicamente em dizer : de fato, não há sociedade para todos e não há espaço para todos dentro dessa sociedade e é necessário lidar com isso, com esse princípio de realidade, e qualquer outra pessoa que vai te dizer o contrário vai mentir pra você". Para corroborar essas afirmações, quem fala a partir de uma perspectiva fascista pode acrescentar e dizer que "a sociedade inclusiva, a sociedade de profunda solidariedade nunca aconteceu, ninguém nunca viu". Noutra conversa, com Chico Pinheiro, no canal do ICL , o historiador e professor de literatura João Cézar de Castro Rocha adverte (a partir de 41m38s de vídeo): é preciso reconhecer que "a extrema direta aprendeu a conquistar corações e mentes, especialmente nas gerações mais jovens."

A que conclusões podemos chegar, diante do que foi exposto (de forma bem desarranjada) nessas duas postagens?

Empreender não é a receitinha, o passe de mágica que vai resolver mais uma das infinitas crises do capitalismo. Muitos (provavelmente a maioria) dos motoristas de Uber, entregadores de iFood, vendedores ambulantes de sol a sol, gente que faz bolo de pote ou quem tem uma banquinha num centro comercial popular, entre outros, não são empreendedores, embora o discurso empreendedorista atual queira nos empurrar essa percepção - essas pessoas partiram para essas atividades porque foram forçadas pela necessidade, tinham que se virar para pagar as contas e não havia vagas no mercado formal de trabalho. Insistir no empreendedorismo como a salvação para a questão da falta de empregos decentes num contexto de supressão de direitos ou como a solução para uma economia cada vez mais concentradora de renda e produtora de desigualdade é um discurso atrelado a ideologias contra as quais me coloco. Ideologias que, quando olhadas bem de perto, defendem nada menos que a lei da selva, o cada um por si. Ideologias que desvalorizam e inviabilizam o exercício da solidariedade e atribuem o fracasso exclusivamente ao indivíduo, livrando de culpa o sistema que se mantém de pé pela exploração. 

Muitos jovens estão sendo seduzidos justamente por esse conjunto de discursos ideológicos aos quais me oponho e que, creio, estão nos levando para um buraco ainda mais fundo. O que fazer?

. . . . . . . 

Como registrei acima, as duas postagens sobre essa temática ficaram desarranjadas, confusas. Mas não queria deixar de abordar esse assunto. Caso o(a) eventual leitor(a) procure um texto de qualidade incomparavelmente melhor, abordando a temática do empreendedorismo de forma crítica, sugiro Crise de identidade ideológica da classe média, de Fernando Nogueira da Costa, professor de economia da Unicamp. Geralmente, não aprecio os artigos escritos por ele, mas achei pontos de concordância neste. Um excerto:

"As barreiras à massificação do empreendedorismo autêntico têm fatores estruturais, mas enfrenta obstáculos. A concentração de capital leva ao acesso desigual a crédito, tecnologia e redes. A baixa mobilidade social conduz ao empreendedorismo de necessidade, não de vocação. O domínio de plataformas monopolistas resulta em uma intermediação assimétrica, onde se captura o valor do trabalho.

Na regulação fiscal e urbana, percebe-se a falta de políticas públicas de apoio ao microempreendedor real, portanto, é uma cultura do risco com individualização da falha e ausência de seguridade social.

A massificação do empreendedorismo individual via plataformas não constitui superação da exploração assalariada por emancipação, mas sim reciclagem da exploração. É uma reorganização pós-fordista da precariedade e uma nova forma de disciplinamento neoliberal pela via do sonho de ascensão individual".

BG de Hoje

Anteontem me peguei cantarolando essa canção enquanto voltava pra casa, depois de mais um dia desagradável de trabalho. Há um tempão que não a escutava: Relampiano,  interpretada pelo Paulinho MOSKA e feita em parceria com LENINE, que também gravou-a (no álbum Na pressão ).

sexta-feira, 23 de maio de 2025

O alçapão do empreendedorismo (I)

 

"O empreendedorismo é uma forma mistificadora que imagina poder eliminar o desemprego, em uma sociedade que é incapaz de preservar trabalho digno com direitos. E, como essas novas modalidades de trabalho são deprimentes, a mistificação torna-se o remédio que só fará alimentar a doença".

Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Unicamp, em entrevista para o UOL (14/09/2019)



No ano passado, quatro acontecimentos, principalmente, serviram para solidificar ainda mais meu pessimismo.

Na esfera internacional, a continuidade do genocídio em Gaza. O massacre cruel dos palestinos sendo testemunhado pelo planeta inteiro e, pelo visto, nada conseguirá interrompê-lo. Seja qual for nosso caminho evolutivo, a humanidade, ao que parece, será sempre bestial.

As outras três ocorrências se deram aqui no Brasil mesmo.

Primeiramente, as acusações de assédio sexual contra o advogado e professor universitário Silvio Almeida. O ex-ministro do governo Lula, naturalmente, tem todo o direito à ampla defesa e, até onde sei, tudo ainda está na fase de inquérito (portanto, bem longe de uma condenação judicial), mas senti esse incidente como se fosse um murro na minha própria cara. Uma liderança negra, de esquerda (e em projeção), tendo, supostamente, conduta tão execrável - tal situação, sendo eu próprio um homem negro e de esquerda, me fez sentir um mal-estar como se tivesse sido pessoalmente ultrajado.  

Depois veio a a publi do Átila Iamarino para a Shell. O irritante termo publi pode dar a entender que se trata de uma coisinha insignificante. E não é. Um cara que se destacou defendendo a ciência no combate à desinformação aceita dinheiro de uma petrolífera para... não informar apropriadamente, pois faz vista grossa para os danos ambientais causados pela indústria do petróleo (sendo a Shell uma das gigantes do setor), danos estes fartamente comprovados por - ora, vejam! - cientistas. Como disse o professor Alexandre Costa, da Universidade Estadual do Ceará, "o prestígio de Atila como divulgador científico — que ganhou projeção na pandemia de covid-19 — foi instrumentalizado pela petroquímica, que tem interesse em chegar a seu público". Tudo mundo tem contas pra pagar: OK, eu entendo isso. Quem está podendo dispensar um dinheiro a mais, não é mesmo? Mas, cáspita, a grana tinha que vir de uma corporação que está se lixando para as condições futuras da vida humana na Terra?

Por fim, a absorção do discurso empreendedorista pelo (então) candidato a prefeito de São Paulo, Guilherme Boulos. Sejamos francos: antes mesmo do início da disputa, quase todo mundo (inclusive colegas de partido e outros membros da coligação) sabia que seria bastante improvável a vitória do deputado do PSOL, mesmo que ele até tivesse chegado a aparecer como líder das intenções de voto em algumas pesquisas. Portanto, era preciso aproveitar a campanha e apresentar um programa que desafiasse os demais, antagônico na real, colocando as cartas na mesa. O que vi da campanha de Boulos foi decepcionante: tentando descolar-se da pecha de radical (algo visto como defeito pela maioria do eleitorado, ainda mais num dos fulcros do conservadorismo brasileiro), apresentou-se insípido e sem fibra, apenas reagindo aos demais candidatos, principalmente o inqualificável Pablo Marçal, um dos propagandistas do empreendedorismo. Ter aceitado participar de uma  live  com Marçal, aliás, após toda a delinquência promovida pelo  ex-coach-atual-não-sei-o-quê,  foi de amargar, demonstrando, a propósito, como parte da esquerda encontra-se perdida no atual momento político, acuada em meio a tal "polarização" (uma assombração que ninguém se esforça em conceituar). A meu ver, a hora é de mais dissenso (portanto, de mais radicalidade na defesa de determinadas pautas e reivindicações) e menos contemporização (neste ponto, estou em concordância com Vladimir Safatle, Glauber Braga e outros). Já que se fala tanto em "polarização", polarizemos de verdade. Porém, o objetivo dessa esquerda avessa a conflitos, ao que parece, passou a ser apenas ocupar cargos nas instituições de Estado, vencendo eleições ocasionalmente, mas abdicando de mobilizar e instrumentalizar a população para melhor compreender e enfrentar a exploração sistêmica do capitalismo.

Como ter ânimo? 

Por ora, falemos do empreendedorismo

. . . . . . .

O(a) eventual leitor(a) pode estar se perguntando:  mas que mal há em começar um negócio por conta própria ou tornar-se um prestador de serviço via aplicativo?

Vou começar a apresentar na postagem de hoje o que a cantilena do empreendedorismo prefere manter abaixo da superfície.

Comecemos com uma definição dada por uma entidade de apoio aos empreendedores. Vou reproduzir aqui o que está no site do SEBRAE de Santa Catarina (encontrei assim que iniciei uma busca no Google):

"Empreendedorismo é a capacidade que uma pessoa tem de identificar problemas e oportunidades, desenvolver soluções e investir recursos na criação de algo positivo para a sociedade. Pode ser um negócio, um projeto ou mesmo um movimento que gere mudanças reais e impacto no cotidiano das pessoas.

Segundo o teórico Joseph Schumpeter, empreendedorismo está diretamente associado à inovação. Para Schumpeter, o empreendedor é o responsável pela realização de novas combinações.

A introdução de um novo bem, a criação de um método de produção ou comercialização e até a abertura de novos mercados, são algumas atividades comuns do empreendedorismo. Isso significa que 'a essência do empreendedorismo está na percepção e no aproveitamento das novas oportunidades no âmbito dos negócios' ".   

Caramba! Isso é uma maravilha, não!?

Bem... Muita calma nessa hora.

A definição acima diz que se trata de uma  capacidade. Depreendo então não ser algo inerente a qualquer indivíduo, pois alguns (ou mesmo muitos) poderiam ser  incapazes  nesse terreno. Quem a tem, ainda de acordo com o trecho acima, "desenvolve soluções e investe recursos em algo positivo para a sociedade". Fico me perguntando se os sujeitos que criaram o cigarro eletrônico, a plataforma Discord, cada uma das centenas de bets ou aqueles famigerados (e altamente poluentes) copos da Starbucks - pessoas com espírito empreendedor, não? - fizeram algo  positivo  para a sociedade, mas, no momento, quero me concentrar no tal investir recursos.

Não creio ser nenhum absurdo dizer que  recursos  (financeiros, sejamos diretos) não estão disponíveis para todos, a qualquer momento e em qualquer lugar. Essa circunstância, penso eu, é uma das que mais depõe contra o empreendedorismo.

Imaginemos duas situações:

➧ O indivíduo 1 decide criar uma loja virtual/tele-entrega de algum produto. Não tem capital próprio suficiente para iniciar o negócio, mas conta com o apoio da mãe, do pai, de um tio rico que decide colocar dinheiro na parada ou, graças às redes de contato (o tal  networking ), nas quais se acham indivíduos endinheirados que ele conheceu devido às relações da família, consegue empréstimos sem muita dificuldade e em ótimas condições. A coisa demora um pouco a engrenar, mas nada que aflija esse indivíduo, pois ele tem uma fonte de renda segura (graças ao emprego na firma de um parente, que não exige pontualidade nem sequer assiduidade) até que o negócio comece a dar lucro. Caso não dê certo, porém, não é o fim do mundo: os prejuízos não resultam em perda de patrimônio e quando "o mercado se reaquecer", tenta-se uma outra ideia e recorrendo-se aos mesmos financiadores.

➧ O indivíduo 2 decide vender compotas artesanais: a esposa é ótima doceira e, como ele está desempregado, pode significar uma nova forma de fazer renda. O primeiro passo, pensa ele, é obter as embalagens. Que tal recolher aqueles vidros de palmito ou de azeitona usados? Não é simples: várias pessoas não fazem separação para reciclagem; além disso, é preciso considerar que os catadores também estão em busca desse tipo de material e são muito mais experientes nessa coleta. Decide então comprar as embalagens; além disso, há o custo do vasilhame para preparação das compotas, a compra das frutas, açúcar, etc. As solicitações de empréstimo nos bancos são recusadas (histórico de crédito ruim, alegam os gerentes). Não há membros da família ou conhecidos com dinheiro guardado a quem possa recorrer. A solução é vender o carro para levantar o capital: as crianças podem caminhar até a escola - é até mais saudável - e a esposa pode voltar a usar o transporte coletivo para chegar ao local onde ela trabalha (de 8h às 17h). À noite, a mulher, numa dupla jornada, adianta o que pode ser adiantado. Durante o dia, o marido finaliza os produtos. Sua tarefa principal, entretanto, é visitar o comércio local e tentar colocar sua produção nas prateleiras, além de procurar vender através do "Zap". Espalha cartazes e capricha no boca a boca. Passado um tempo, as vendas não são nem perto do esperado. Não consegue recuperar a grana do carro vendido. Endividou-se para fazer os cartazes e os rótulos das embalagens. Continua desempregado e sem uma fonte de renda regular.

O(a) eventual leitor(a) deve ter notado, espero, que, nas duas situações hipotéticas, não exemplifiquei com nenhuma invenção espetacular ou uma ideia inovadora pica das galáxias. O motivo? Não são ocorrências comuns: na imensa maioria das vezes, quem decide abrir um novo negócio tenta o mais corriqueiro: comércio/vendas ou prestação de serviço e, sobretudo  no início  da montagem do negócio, ter ou não recursos financeiros suficientes faz toda a diferença no sucesso da empreitada. Espero que os dois exemplos acima tenham ajudado a ilustrar bem esse ponto.

Joseph Schumpeter é citado na definição acima. Nunca li diretamente qualquer coisa escrita pelo autor e seria desonesto criticar só por criticar. Devo confessar, entretanto, que fico bastante tentado a descer a lenha nele, pois, até onde sei, na sua defesa calorosa do capitalismo (e do empreendedorismo), o economista austríaco não levava em conta a voracidade do poder concentrador das corporações e as discrepâncias entre os vários agentes econômicos, inviabilizando a competitividade realmente justa no mercado. Dessa forma, o "aproveitamento das novas oportunidades no âmbito dos negócios" é algo bem mais restritivo do que propagandeiam os arautos do empreendedorismo. 

Penso ser inevitável, nessa altura, empregar a palavra  ideologia  (infelizmente, eventual leitor(a), não vai dar para realizar uma ampla conceituação, nem distinguir os usos do vocábulo - por limitação intelectual do blogueiro, sem dúvida, mas sobretudo para não tornar este texto ainda mais cansativo). É bom deixar claro, contudo, desde já, que não concebo o termo negativamente: ser ideológico não implica necessariamente algo prejudicial ou nocivo. Ideologias circulam pela sociedade, entram em disputa muitas vezes, defendidas ou atacadas, sobrevivem ou desaparecem, são adotadas por um grande número de pessoas ou ficam reduzidas a uns poucos grupos. Sou adepto de determinada(s) ideologia(s) ao mesmo tempo em que me oponho a outra(s).

Pois bem. O modo como o empreendedorismo vem sendo difundido e abordado apresenta, na maioria das ocasiões, características do discurso ideológico. 

E esse discurso empreendedorista, a meu ver, precisa ser rebatido.

Continuarei a fazê-lo na próxima postagem, quando pretendo mostrar que toda essa conversa é pra nos convencer de que a única alternativa é o cada um por si.

                            

BG de Hoje

É embaraçoso que nenhuma canção de BOB DYLAN tenha aparecido nessa seção em mais de 15 anos de blog. Tento me redimir hoje com Maggie's Farm, canção que ganhou uma revitalização com o recente filme Um completo desconhecido. Há, junto à crítica, uma interpretação, bastante plausível, de que a canção foi uma resposta do artista Dylan ao pessoal da indústria da música. Há outra, contudo, mais direta e mais do agrado da maioria dos ouvintes, penso eu, que vê nela um libelo contra a exploração do trabalho (é esse entendimento que tiveram, por exemplo, os caras do Rage Against The Machine ao gravarem aquela versão porrada no álbum Renegades).


quinta-feira, 15 de maio de 2025

Falou e disse...

 "Como num círculo vicioso, havia sempre um momento em que o pensamento civilizatório sucumbia a um processo entrópico, bombardeado em seus pontos mais frágeis, em suas dúvidas e contradições, e já não conseguia reagir às crises. Nesse momento, a violência tomava a dianteira como única resposta possível. E, para defender a fragilidade da nação, passavam a recorrer a expedientes típicos de regimes fascistas. O mesmo raciocínio podia ser aplicado a situações mais simples, circunscritas a universos particulares que serviam de microcosmos. O fundamental,  em todo caso, é que havia sempre um momento em que a razão fraquejava e desmoronava, bombardeada por todos os lados no que tinha de mais acabado: a dúvida, a reflexão, a hesitação. Nesses momentos críticos, a razão deixava de dar conta das contradições que trazia em si e que tinham se tornado cada vez mais visíveis e evidentes conforme ela também  se aprimorava e se afastava da barbárie, até ficar totalmente vulnerável ao oportunismo da brutalidade e às investidas das imposturas, dos sofismas e da burrice, como um corpo indefeso de tão puro. Na barbárie, não há dúvida nem hesitação, segue-se o caminho mais curto". *

* Um dos pontos da tese do Rato, protagonista do romance Simpatia pelo demônio, de Bernardo CARVALHO (Editora Companhia das Letras, 2016 - p. 31-32)

terça-feira, 6 de maio de 2025

Deslocados no mundo

 
 
Em entrevista ao site de notícias Daily Beast, publicada numa versão condensada em 8 de janeiro de 2016, o ator mexicano Gael Garcia Bernal, na época preocupado com a possibilidade de Donald Trump ser eleito presidente dos EUA, deixou sua opinião sobre o impulso que leva seres humanos a buscar outros lugares onde viver:  
 
"Migration is as natural as breathing, as eating, as sleeping. It is part of life, part of nature. So we have to find a way of establishing a proper kind of scenario for modern migration to exist. And when I say 'we,' I mean the world. We need to find ways of making that migration not forced".  [tradução aproximada: "Migração é tão natural quanto respirar, quanto comer, quanto dormir. É parte da vida, parte da natureza. Então nós temos que encontrar um modo de estabelecer um tipo de cenário apropriado para a migração moderna existir. E quando eu digo 'nós', quero dizer o mundo. Nós precisamos encontrar modos de fazer essa migração não forçada"]
 
O entrevistador havia perguntado por que, na opinião do artista, seria importante contar a história retratada no filme Desierto, em campanha de lançamento na ocasião, no qual ele interpreta Moises, um homem que está tentando passar do México ao território de seu poderoso vizinho do norte, junto com outras pessoas.
 
Pobre Bernal! Mal sabia que Trump seria eleito naquele ano. Pior ainda: voltaria a sê-lo em 2024 e, sem dúvida, sua hostilidade aos imigrantes foi um dos motivos que levou uma enormidade de pessoas a apoiar sua candidatura em ambas as ocasiões.

Não deveria ser assim - afinal, migrar faz parte da natureza -, mas, na conformação contemporânea, a maioria dos migrantes (e refiro-me aqui ao tipo predominante, o pobre, que acredita numa vida com menos privações materiais e mais segurança noutro lugar) se verá cercada de adversidades onde quer que tente ir nesse mundo.  

A situação do migrante é exemplar para se pensar a questão dos privilégios. O romance O engate, de Nadine Gordimer, publicado em 2001 ¹, retrata bem essa condição. Numa grande cidade da África do Sul (imagina-se Joanesburgo), Julie Summers leva seu carro com defeito a uma oficina e acaba conhecendo Abdu (o nome que ele usa ao se apresentar). Não poderiam ser mais diferentes uma do outro: moça branca, filha de um homem rico ligado ao mercado financeiro, embora ela procure se distanciar do pai e de seu círculo de abastança, enquanto ele é um estrangeiro, árabe de pele escura, em situação irregular no país, vivendo de favor num quartinho no mesmo local onde trabalha. O futuro do casal é impactado pela deportação de Abdu. Julie decide segui-lo no retorno à terra natal, uma nação cujo nome nunca é citado no livro (é possível imaginar algum lugar nas grandes áreas desérticas do Oriente Médio: o Iêmen, talvez?).
 
O romance trata de deslocamentos - tanto geográficos quanto metafóricos. Fala de cisão e encontro; inadaptação e acolhida. Expõe também a irrefreável ânsia em escapar da sina de penúria que persegue muitos daqueles habitantes situados na periferia da periferia do capitalismo. Em certo momento, já em seu povoado, Abdu (cujo nome na verdade é Ibrahim) constata:
 
"Mundo é o deles. Os donos são eles. Dirigido por computadores, telecomunicações - veja só isto aqui  [aponta a revista  Newsweek  que tem nas mãos] - , o Ocidente, eles são donos de noventa e um por cento. Lá de onde você  [Julie]  vem - a África inteira tem apenas dois por cento e é no seu país que está a maior parte. Este aqui? - nem o suficiente para um dígito. Deserto. Se você quer estar no mundo, a única maneira é conseguir que o que você chama de mundo cristão o deixe entrar".
 
Gordimer não optou pelo caminho mais fácil, tentando forçar um sentimento de empatia irrestrito no leitor, pois decidiu não revestir Abdu/Ibrahim com um manto de magnanimidade (a personagem que mais me interessou na narrativa, contudo, foi Maryam, a cunhada de Julie). O árabe, na volta um tanto melancólica ao país de origem, só consegue pensar em cruzar fronteiras distantes mais uma vez. Entretanto,
 
"O que fora suficiente antes, quando conseguira obter algum tipo de visto dúbio de entrada, talvez não sirva - não serve - agora; os símbolos humanitários nacionais equivalentes à Dama Com a Tocha Erguida, assim como a própria, não dão mais as boas-vindas e usam a Luz para revistar cegamente cada candidato, em busca de possíveis conexões com o terrorismo internacional - gente lutando as próprias batalhas ideológicas em solo alheio ou levando nos fluidos do corpo a doença mortífera mais recente. Este país que o reivindica pelo nascimento, pelas feições e pela cor, pela língua e a Fé que teve que afirmar nos formulários, embora não saiba se o filho ainda tem a Crença da mãe - este país ocupa lugar de destaque entre aqueles de onde saem imigrantes indesejáveis".
 
Sua mulher não teria esse problema: "era o tipo certo de estrangeiro. Alguém que pertencia a uma categoria internacionalmente aceitável de origem".
 
Num dos primeiros capítulos do livro, Julie e Abdu vão a um almoço na residência do pai dela. O principal motivo da festividade é marcar a partida de um casal de amigos para a Austrália.
 
" 'Relocate', dizem eles. O eufemismo atual para levantar âncora e partir para outro canto, seja por coação da pobreza ou da política, seja por ambição e convicção de que há uma vida ainda mais privilegiada, longe dos forcados e das AK-47 dos pobres rebelados, longe das pistolas dos criminosos. Não se trata de desempacotar mobília em novo endereço. Algumas das definições do dicionário revelam o anseio inexprimível que não pode ser explicado por ambição, privilégio nem mesmo pelo temor dos outros".
 [...]
"Uma despedida é também uma celebração da imigração, como solução humana. Ninguém aqui se lembra de que essa não é a primeira vez.  [...]  Gerações enterraram essa sua categoria junto com os avós, mas todos eles são imigrantes por ascendência". 
 
O árabe em situação irregular - nesse momento da história, não imediatamente preocupado com o risco da deportação - fica impressionado com as mostras de acumulação de dinheiro do pai de Julie e seus  parças.  Ela, por seu turno, sente-se desconfortável, refletindo sobre aquele pequeno círculo privilegiado: "O festejado casal está prestes a se tornar um casal de imigrantes. Sentada entre os convidados, Julie os vê como aqueles que - o tipo de gente que circula na roda do pai - podem se mudar pelo mundo afora, bem-vindos em toda parte, o quanto quiserem, ao passo que alguém tem de viver disfarçado de mecânico sem nome"

. . . . . . . 



Antes de encerrar, queria incluir uma observação feita por Nadine Gordimer numa entrevista dada 20 anos atrás (disponível na íntegra aqui). Não está diretamente relacionada ao livro que acabamos de discutir, mas como vai ao encontro de algumas reflexões que constantemente me acompanham, resolvi incluir nesta postagem.

A autora sul-africana era conhecida como uma escritora política (ou seja, alguém que fazia questão de tematizar problemas sociais de nosso tempo; por exemplo, o apartheid  em seu país natal), mas não concordava que sua obra fosse uma espécie de ensaio sociológico travestido de ficção literária (até porque ela própria admitia que nunca foi muito adepta da chamada pesquisa na hora de compor um romance). 
 
Pensando em qual era seu propósito ao escrever, Gordimer diz na entrevista: "Para mim pessoalmente - não sei dos outros -, é explicar realmente o mistério da vida e o mistério da vida inclui, é claro, o pessoal, o político, as forças que nos fazem ser o que somos, enquanto existe uma força que vem de dentro lutando para fazer de nós uma outra coisa". 

E faz questão de complementar logo a seguir: "Devo dizer, nesse assunto, que sou ateia. Talvez se eu tivesse uma religião então eu pensaria que havia resposta para o mistério da vida, mas, como ateia e com toda a humildade, sei que não há religião que consiga me dar essa resposta".
 
Evidentemente, a escritora não está se referindo ao mistério de toda a vida, como uma pergunta a ser respondida, quem sabe um dia, pela biologia ou pela bioquímica: ela refere-se à complexidade da vida humana, que envolve a relação do indivíduo (e sua consciência) com a sociedade e vice-versa, mas também o inconsciente, além de nossas pulsões e nossos instintos enquanto organismos, e de como lidamos com tudo isso, tentando aplicar nexo e estrutura onde é realizável.
 
É plenamente satisfatório e arrebatador, mesmo com a impossibilidade de se chegar a conclusões definitivas. pensar e imaginar a partir desse mistério, tal como ele se apresenta para nós, sem qualquer necessidade de invocar uma explicação religiosa. Aqueles que acreditam em divindades ou poderes sobrenaturais não são os únicos com direito a se maravilhar diante do mistério.
 
__________________

¹ Para essa postagem, estou me valendo da tradução de Beth Vieira (Editora Companhia das Letras, 2004)

 

BG de Hoje

Minha atual obsessão musical é a guitarrista/compositora/cantora SAMANTHA FISH (no vídeo abaixo, interpretando  Can Ya Handle The Heat?,  do recentíssimo álbum Paper Doll )

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Racionais MC's: aprendizado


Em 1998, com 26 anos de idade, eu ainda não entendia (ou não aceitava) que o precipício estava logo ali. Ignorando os indícios ou rejeitando os fatos, achava que certas ações individuais e determinadas peças dessa minha vidinha ordinária  -  o trabalho, um duvidoso percurso acadêmico, o envolvimento afetivo em que me encontrava, o próprio país - ainda podiam dar certo  e, na próxima década ou na seguinte, seria possível partilhar alguma felicidade. Sim, eventual leitor(a), eu conseguia ser ainda mais palerma naquela época.

No início daquele ano, não parava de ouvir dois álbuns bastante diferentes um do outro: OK Computer, do Radiohead, e Sobrevivendo no inferno, dos Racionais MC's. Lembro de ter comprado os dois CDs na mesma loja e a vendedora estranhar um mesmo freguês levando pra casa rock dito "alternativo" e rap nacional.

Fiquei extasiado com Karma Police (o clipe da canção era muito exibido na antiga MTV). No entanto, demorei algum tempo para verdadeiramente apreciar o disco por inteiro. A banda britânica se empenhou em um trabalho não palatável, não radiofônico: a melhor das 12 faixas que o compõem,  Paranoid Android, e a vinheta Fitter Happier são exemplos desse propósito. Não me tornei um fã ardoroso do Radiohead (para ser franco, acho Thom Yorke meio xarope), mas OK Computer  é um dos 30 discos que levaria comigo se fosse forçado a viver em uma ilha deserta (fugindo, sei lá, de um apocalipse zumbi). 

E quanto a Sobrevivendo no inferno 

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Já mencionei aqui no blog que não posso, nem de longe, dizer que sou um ouvinte habitual de rap. No início da idade adulta, eu só conhecia algumas poucas coisas do Public Enemy (embora não compreendesse patavina de inglês naquela época) e, quanto ao cenário nacional, sabia, claro, quem eram Thaíde e DJ Hum, ainda que nunca tivesse escutado nada deles. Hoje, penso ter deixado de ser um peixe totalmente fora d'água (ouço prazerosamente, entre artistas ainda ativos ou não, Câmbio Negro, Black Alien, Missy Elliot, A Tribe Called Quest, Emicida e Little Simz), mas o rap continua não sendo um gênero musical de minha predileção. Devo admitir, contudo, que aprendi a respeitá-lo bastante, após a ebulição provocada pelo álbum lançado pelos Racionais no final de 1997.

Antes, porém, é preciso recuar mais um pouco no tempo. Em 1994, eu ouvira pela primeira vez Fim de semana no parque. Essa faixa integra o Raio X (do)Brasil - disco que permitiu a Ice Blue, Mano Brown, Edi Rock e KL Jay meter o pé na porta do cenário musical brasileiro. Eles tinham certa popularidade em São Paulo, sendo, porém, pouco conhecidos no restante do país: isso passaria a mudar a partir desse álbum - que também apresenta  Mano na porta do bar Homem na estrada. Até então, só era possível ouvir gravações desse tipo na programação de estações como a Rádio Favela ¹ aqui de Belo Horizonte. Com o tempo, algumas outras emissoras locais arriscaram-se a tocá-las (sobretudo Fim de semana no parque ), reconhecendo o valor de Raio X(do) Brasil  e o interesse do público pelas músicas, iniciados no rap ou não.

Quando Sobrevivendo no inferno foi lançado, portanto, a expectativa era muito, muito grande. E creio que não houve motivo para grandes decepções. Pode-se dizer que o CD foi também um sucesso comercial, conseguindo chegar a 500 mil cópias oficiais vendidas alguns meses após o lançamento, um número impressionante, sobretudo quando lembramos que não havia uma major  por trás daqueles (então) quatro jovens negros sediados no Capão Redondo.

O disco é aberto com uma linda versão de  Jorge de Capadócia, de Jorge Ben(jor) - compositor/cantor recorrentemente citado na obra do grupo paulistano. Numa lamentável falha do encarte, contudo, não há informação sobre quem está cantando (seguramente, não é nenhum dos membros dos Racionais). O sample usado foi extraído de Ike's Rap II, de Isaac Hayes (mundialmente conhecido, penso eu, graças a Glory Box, do Portishead). Pouco depois surge a impactante e agressiva  Capítulo 4, versículo 3, aquela em que Mano Brown diz que sua "palavra vale um tiro" e ele "tem muita munição". O caráter de denúncia dos problemas sociais do país, particularmente os que afligem a população preta e pobre, marca indelével dos Racionais, aparece logo no início da faixa:

"60% dos jovens de periferiaSem antecedentes criminais já sofreram violência policialA cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negrasNas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negrosA cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo"
 
( NOTA: Se serve de alento, pelo menos um desses dados mudou significativamente para melhor: hoje, passados 27 anos do lançamento do CD, em torno de 50% dos estudantes em universidades públicas são pretos ou pardos, embora certos cursos ainda não contem com um número expressivo de indivíduos pertencentes a esse segmento

A mensagem dos Racionais, endereçada principalmente para os jovens da periferia, "os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia", os que habitam "de Guaianases ao extremo sul de Santo Amaro", dessa vez estava alcançando ouvidos além da quebrada. O  "mano que trampa debaixo do carro sujo de óleo/ ou que enquadra o carro forte na febre com o sangue nos olhos/ o mano que entrega envelope o dia inteiro no sol/ ou o que vende chocolate de farol em farol/ talvez o cara que defende o pobre no tribunal/ ou o que procura vida nova na condicional/ alguém no quarto de madeira, lendo à luz de vela/ ouvindo um rádio velho no fundo de uma cela"  continuavam a escutá-los, fielmente; havia agora, contudo, um fato novo: as pessoas que costumamos chamar de formadores de opinião  deixaram de lado o preconceito contra a "música de maloqueiro" e começaram a prestar atenção também.
 
Destacaria ainda no álbum outras três faixas: Qual mentira vou acreditar, uma composição que conta com um elemento raríssimo - o humor -, em se tratando de Racionais; Diário de um detento, cujo clipe ganhou muito destaque na MTV; e Tô ouvindo alguém me chamar, outra demonstração de como esses caras são bons em construir uma história (feito similar já tinha ocorrido na memorável  Homem na estrada ). Para não ficar só no enaltecimento, um moralismo meio pueril encarquilhado nalguns versos (algo surpreendente, se pensarmos no teor subversivo da maioria dos outros), além de misoginia e machismo nada disfarçados (afinal, são os mesmos caras que compuseram Júri Racional e, claro, a infame Mulheres vulgares ), são os pontos negativos.
 
Penso que o poeta Tarso de Melo fez uma  análise certeira do significado desse disco, quando escreveu ²:
"[...] Sobrevivendo no inferno é uma pancada – musical, cultural, histórica, política, poética. Para entender a força dessa pancada, a filósofa Djamila Ribeiro usa uma imagem muito precisa: organizar o ódio. Os Racionais se tornaram e se mantiveram e cresceram como Racionais porque souberam organizar o ódio. Não reagiram da forma autodestrutiva como o sistema previa: se armaram de ritmo e poesia e partiram para o ataque – fúria e baile".
 
Em 2002, eles lançariam Nada como um dia após o outro dia, contendo, entre outras, Negro Drama e Vida Loka, mas já sem o efeito avassalador do trabalho precedente. 

Se  OK Computer  serviu para reiterar minha convicção de que a arte é o único lugar restante para a redenção e o reconforto dos "iguais em desgraça", como cantou Cazuza,  Sobrevivendo no inferno, mais do que isso, ajudou a enterrar de vez as ilusões que eu ainda mantinha naquele afastado ano de 1998.
 
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Sem exagero, foi um lance tremendo.

O fato de uma instituição consagrada ao saber formal no seu nível mais elevado (de outra maneira, não chamaríamos de ensino superior) ter concedido tal distinção a um grupo originário da periferia pouco escolarizada, cuja trajetória artístico-profissional passou ao largo dos  campi  universitários, é muito bacana, claro, mas não é isso o que há de mais expressivo nesse acontecimento, em minha opinião. Vou tentar me fazer entender.
 
Todos estamos presenciando o uso maléfico da internet, principalmente nas mídias sociais. Por causa disso, esquece-se, por vezes, o quão revolucionária é essa tecnologia.
 
Questões urgentes, até então evitadas no amplo debate público - relatos de violência policial, evidenciação de práticas/discursos racistas e discriminatórios, crítica da ausência de representatividade de determinados grupos sociais, etc. - conseguiram ganhar repercussão dentro da sociedade graças à web e, forçoso admitir, às mídias sociais (pelo menos na fase inicial), deixando de se restringir apenas ao esforço de uns poucos ativistas espalhados aqui e ali ³.
 
Penso não ser possível separar a consolidação dos Racionais MC's desse contexto. Obviamente, nada aconteceria sem o talento e a agudeza do olhar deles, mas o que estou querendo dizer é: a internet, cujo acesso, no final dos anos 1990, começava a chegar progressivamente a mais indivíduos e entidades, foi de inestimável auxílio para que o recado do grupo alcançasse mais pessoas (até mesmo possibilitando a produção de milhares de cópias piratas de Sobrevivendo no inferno ). Mais manos e manas de diferentes lugares conseguiram construir pontes uns com os outros e, em muitas ocasiões, a música dos Racionais era um dos elementos mais importantes nessa aproximação.
 
A iniciativa de conferir o título de doutor Honoris Causa partiu dos docentes Jaqueline Lima Santos, Daniela Vieira dos Santos e Omar Ribeiro Thomaz, mas creio não ser equivocado dizer que a inserção desses artistas primeiramente nos aparelhos de som das periferias e posteriormente na discussão dos mais intelectualizados, cada vez mais sensibilizados para questões como as que mencionei acima, tudo isso graças a interconexão possibilitada pela web, acabaria tornando uma homenagem deste tipo quase uma questão de tempo. E fico feliz, sendo um cara negro, que a Unicamp realmente tenha dado esse passo.
________________
¹ Vale a pena fazer aqui um breve comentário sobre a Rádio Favela. Nascida em 1981, com equipamentos improvisados e de forma clandestina dentro do Aglomerado da Serra em BH, a Rádio Favela durante décadas teve muita dificuldade para se manter, sobretudo pela ação da polícia. Hoje, legalizada desde o início dos anos 2000, a emissora passou a ser conhecida como Autêntica FM e cada vez mais opta por seguir o padrão de apresentação das outras. Uma pena.
 
² MELO, Tarso de. Sobrevivendo no inferno: ainda e sempre. Cult, São Paulo, n.241, dez. 2018 Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/sobrevivendo-no-inferno-racionais/. Acesso em: 31/03/2025
 
³ Nem tudo são flores, porém. Dessa atuação, originou-se o que eu chamo, tentando fazer piada, de extrema militância, formada por indivíduos cheios de certezas e declarações peremptórias que tornam o debate muitas vezes difícil e infecundo, apesar de se acharem sujeitos de mente aberta.

BG de Hoje

Ao citar os destaques de Sobrevivendo no inferno, dos RACIONAIS MC's , esqueci de incluir   Fórmula mágica da paz. Gosto dela só por causa da batida hipnotizante construída sobre um sample retirado de Attitudes, do grupo de soul  e funk The Bar-Kays. 

sexta-feira, 14 de março de 2025

"Todos nós seremos esquecidos"


Nos Agradecimentos  do volume de contos Felicidade demais (Editora Companhia das Letras, 2010 - tradução de Alexandre Barbosa de Souza), Alice Munro revela, sem embaraço, que "soube sobre Sophia Kovalevsky enquanto pesquisava alguma coisa na  Enciclopédia Britânica". Esclareço logo de cara que também nunca tinha ouvido falar dela até ler o texto de Munro. Mas Sofya Kovalevskaya (ou Sophia Kov(w)alesky) realizou, nos seus 41 anos de vida, feitos notáveis (dos quais eu, ignorante, não tinha notícia).  

Nascida na Rússia, em 1850, Kovalevskaya foi, de acordo com a historiadora da ciência Ann Hibner Koblitz,  "a mais conhecida mulher cientista antes do século XX".  Obteve seu doutorado em 1874, sendo a primeira mulher a conseguir tal titulação num campo - a matemática - ocupado, durante muito tempo, quase que exclusivamente por figuras masculinas. Conquistou o prêmio Bordin, da Academia de Ciências francesa e, posteriormente, um importante cargo de professora na Universidade de Estocolmo. Sua principal contribuição foi na teoria das equações diferenciais parciais - vou fingir que sei do que se trata, eventual leitor(a) -, cuja principal amostra é o teorema de Cauchy-Kowalevsky.

Felicidade demais - o texto que dá nome ao volume de contos - remete-se aos últimos dias de vida de Sophia Kovalevsky, antes do agravamento da pneumonia que a matou. Na primeira vez em que escrevi sobre o livro que contém esse conto, não fiz nenhuma observação sobre essa narrativa por não percebê-la como "aparentada" às demais, talvez pelo fato de ser a única a ter como personagens seres que existiram no mundo real. Manteve-se nela, porém, a melhor característica dos enredos da escritora canadense - as magistrais transições entre o passado e o presente. 

Gostaria de destacar duas passagens do texto de que estamos falando.

Na parte 4, após a obtenção do doutorado, tendo como mentor o alemão Karl Weierstrass, Sophia Kovalevsky decide retornar à sua terra de origem e deixa a matemática de lado por um longo tempo. "O aroma dos campos de feno e dos pinheirais", - escreve Munro - "os dourados dias de verão e as longas noites claras do norte da Rússia a inebriaram". A despeito de sua (até então, inédita) titulação acadêmica:

"Ela estava aprendendo, bastante tarde, o que muitas pessoas ao seu redor sabiam desde a infância - que a vida podia ser perfeitamente satisfatória sem grandes realizações. Podia ser transbordante de ocupações que não a exauriam até os ossos. Adquirindo o que precisava para uma vida confortavelmente plena, e então engajando-se numa vida social e pública cheia de entretenimento, evitaria que se entediasse ou ficasse ociosa, e ao final do dia se sentiria como se tivesse feito exatamente tudo o que agradava a todos. A agonia era desnecessária.

Exceto quanto a ganhar dinheiro".

A depender das circunstâncias, não é raro que a genialidade encontre muitos percalços em seu caminho de afirmação, ainda mais numa época (falo de Kovalevsky) em que o reconhecimento dos intelectos mais proeminentes continuava bastante restrito, principalmente em se tratando de mulheres. Por outro lado, a cômoda mediania é bastante acessível, com a vantagem de gerar satisfação sem exigir desagradáveis privações. 

A busca por grandes realizações tem um quê de obsessivo. Nesse momento, não consigo evitar a lembrança daquele trecho de A ciência como vocação, de Max Weber, em que o pensador alemão defende que, no atual estágio do saber formal, um feito científico só será verdadeiramente significativo se decorrer de um conhecimento altamente especializado. Weber chega a dizer que o  "destino da alma"  do cientista depende da sua capacidade de concentrar-se em fenômenos e objetos cada vez mais específicos. Para tanto, é preciso uma "paixão", "uma estranha embriaguez, ridícula para todos os que a contemplam de fora". E esse empenho pode exaurir até os ossos, como escreve Munro acima. A pergunta que fica é: após ser reconhecido, o indivíduo genial será capaz de se contentar com a mediocridade que cerca a maioria de nós?

Na outra passagem, na parte 2, Sophia encontra-se com Jules Poincaré em Paris. O matemático e físico francês relata uma pequena rusga que teve com Weierstrass a respeito de uma premiação, vencida por Poincaré, cuja mesa julgadora contava com o alemão. Kovalevsky coloca panos quentes e lembra da irrelevância do desentendimento: 

" 'Afinal', ela disse a Jules, 'afinal você recebeu o prêmio e ele é seu para sempre'

Jules concordou, acrescentando que seu nome iria brilhar enquanto o de Weierstrass seria esquecido.

Todos nós seremos esquecidos, pensou Sophia, mas não disse, para não ferir a frágil suscetibilidade humana - especialmente dos jovens - quanto a isso".

Admito que tenho dificuldade para compreender essa sede de muitos por se fazer eterno ou, pelo menos, por ser lembrado muito tempo após a própria morte. O renome desejado por Poincaré de fato aconteceu, mas, afinal, que importância tem isso? Gosto de como Alice Munro revestiu a personagem de Kovalesky com humildade e modéstia.

Na próxima postagem, o assunto será a obra dos Racionais MC's

BG de Hoje

Enquanto a música continuar a ser parte da experiência humana, o tema do amor (ou da relação amorosa) será tema da maioria das canções populares. Fazer o quê? Nessa enxurrada do eu-te-amo, pouca coisa me deixa de ouvido atento. Just The Way You Are,  escrita e lançada pelo BILLY JOEL em 1977-78, é uma das poucas composições, digamos... sentimentais... que ouço com satisfação. Ela tem uns componentes bem bregas (a tentativa de emular uma batida "latina", os trechos e o solo de saxofone...) que a transformam numa faixa saborosamente inofensiva, easy-listening. Também adoro a letra (que representa o tipo de convivência afetiva que boa parte de nós sempre sonhou ter, mas que é improvável de se encontrar no mundo real): [...] "I would not leave you in times of trouble/We never could have come this far,/I took the good times, I'll take the bad times/I'll take you just the way you are [...] "I don't want clever conversation/ I never want to work that hard /I just want someone that I can talk to/I want you just the way you are".  Ah, e não deixa de ser irônico saber que Joel encontra-se atualmente no quarto casamento, com uma companheira 32 anos mais jovem do que ele...