sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

"O otimismo domina, o pessimismo pode ajudar a libertar os dominados"

 
 
 
Mais de uma vez fiz referência, em postagens anteriores, a meu  pessimismo crônico.
 
Não sei precisar quando comecei a dar mais atenção ao pior das coisas; só posso dizer que, desde então, não consigo mais frear esse pendor "psico-existencial". De vez em quando me pergunto se a minha vida poderia ser um pouquinho menos fodida se eu fosse pelo menos um pouquinho mais otimista, mas isso é assunto para outro chope.

Dias atrás li um texto de Vilmar Debona, professor de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos, discorrendo sobre o pessimismo como uma postura anticonformista. Portanto, dá pra dizer, um pessimismo esperançoso, remetendo-me àquele dístico gramsciano, muito citado por aí - pessimismo da razão/otimismo da vontade -, embora o autor esteja ancorado noutros pensadores (Schopenhauer e Horkheimer).
 
Meu pessimismo é o da resignação, o da desesperança e, forçoso admitir, o da covardia. Ainda assim, concordo com muito do que escreve Debona neste pequeno artigo, reproduzido na íntegra abaixo:

                                                                                           
 
O OTIMISMO ATROZ DE ELON MUSK *
 
                                                                                Vilmar Debona
 
 

“Otimismo” é substantivo do latim optimum, “o melhor”. “Pessimismo”, como substantivo de  pessimus, “o pior”, nasceu na condição de mero neologismo, mas bem poderia ser assumido como um neologismo de resistência.

Na seara filosófica ou sob as mais diversas camadas culturais que acabaram por dinamizá-lo, o pessimismo resiste à afirmação do que se pretende maravilhoso, sumo, Absoluto. Foi criado para contestar as teses do “melhor dos mundos”, com o que, de partida, denuncia quem fica para trás ou não cabe nesse suposto tão atrativo mundo. Não foi cunhado para registrar lamúrias e desesperanças. Pessimismo contesta a absolutização da razão, do saber, da ciência e da técnica, ao tempo em que aponta para as vítimas que o bem permite. Em termos críticos, não tem muito a dizer do futuro, mas pode ajudar a desentranhar o mal do presente, ao tempo em que atesta a impossibilidade de compensar o mal do passado.

Em meio a tantos crápulas com superpoderes, autoafirmados como absolutos, hoje, está Elon Musk com suas máquinas. Por acaso ou não, consciente ou não sobre a etimologia, sabem como se chama o robô humanoide de Musk? Optimus! Se o mundo humano revela o  pessimus, é certo que parte disso se deve a humanos autoproclamados sem limites, como Elon Musk, agora secretário da “eficiência trumpista”.

Antes de se reduzir a “metade cheia do copo”, o otimismo afirma; antes de se reduzir a “metade vazia do copo”, o pessimismo nega. O otimismo afirma e positiva; o pessimismo nega e resiste ao positivado e aos positivadores. O otimismo domina, o pessimismo pode ajudar a libertar os dominados. Nesse sentido, Donald Trump, Elon Musk, Steve Bannon e Mark Zuckerberg são exemplos flagrantes de quem encarna o otimismo opressor. Suas vítimas não são apenas imigrantes, refugiados, clandestinos deportados acorrentados, LGBTQIA+, trabalhadores empobrecidos em geral. São todos os manipulados por suas máquinas de poderes mil, realizadoras do mais avançado progresso positivo. Todas essas vítimas, crentes de serem beneficiárias, encarnam e atualizam o  pessimus  como peças manipuláveis.

O otimismo, em especial o de Elon Musk, supõe a liberdade como positiva e irrestrita, e oprime em nome dela; o pessimismo assume a liberdade como negativa: só existe na medida em que nega a opressão. O novo-velho otimismo oficial domina o globo desde sempre, mas acabou de assumir o poder da nação – supostamente ainda – mais poderosa. Ele busca cegamente “a justiça”, tem certeza prévia do que é justiça, de quem é digno dela, e faz triagem para aplicá-la. O pessimismo é afeito às lutas por menos injustiças.

O otimismo sorri e faz um gesto nazista. O pessimismo não se afasta para fora da possibilidade do alcance do braço em gesto nazista, não lamenta nem chora. O pessimismo denuncia o motivo do gesto, o alcance do braço e a perversidade do riso.

O otimismo justifica a dor em nome de um “futuro melhor”; o pessimismo é especialista em dores do mundo, individuais ou sociais, e gostaria de garantir que nenhuma fosse justificada. O otimismo, não por acaso, faz par perfeito com o capitalismo – em suas mais variadas formas e fases. O pessimismo, se pudesse tanto, sufocaria a sanha incontrolável dos – velhos e novos – donos do capital. Secaria seus quereres insaciáveis, esgotaria suas inesgotáveis energias positivas, privatistas e acumuladoras; gostaria de derrotá-los em praça pública.

O otimismo, grandiloquente e falsamente incondicionado, coloniza Marte e instala Starlink na Floresta Amazônica. O pessimismo, esse pessimismo anticonformista, espelha a canção de Caetano Veloso, em que  “um índio descerá de uma estrela colorida”, e  “pousará no coração do Hemisfério Sul, na América”. O otimismo multibilionário de Elon Musk e Jeff Bezos garantirá o futuro uniforme, liso e plano, embrulhado em plástico bolha, controlado por Big Techs. O pessimismo da resistência, esperançoso sem pretender a vitória histórica, garantirá o passado da diversidade, com  “a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”.

Elon Musk, com seu otimismo infalível e como membro do governo de Donald Trump, será um ótimo secretário de Eficiência Governamental. A ineficiência, comumente identificada com o pessimismo do common sense, associada à derrota, teria de ser, hoje, a mais desejada das incapacidades. A eficiência de Elon Musk e Donald Trump impõe a liberdade estratosférica de alguns indivíduos – a deles próprios. O pessimismo dos sufocados, voz do negativo da história, continuará acusando a farsa insana ao falar em nome dos inimigos, dos perseguidos e da morte coletiva em potencial.

Foi pensando a negatividade histórica que Max Horkheimer, o fundador da Teoria Crítica, afirmou algo em uma nota de 1956 que nos choca por sua atualidade:  “Os espíritos negativos, negativistas, que veem e dizem apenas o que é horrível, apenas o que não deve ser, que têm medo de nominar Deus, o que esses espíritos, afinal, desejam? Que as coisas melhorem! Os positivistas agem em Seu nome, dizem sim ao mundo e ao Criador. Unem-se – não são contra os sacros valores. Os têm sempre na ponta da língua. Assim Hitler uniu os alemães, fazendo dos judeus a vítima designada; Nasser os árabes, designando Israel ao papel de vítima” (Notizen, 1956).

O que poderemos diante dos neonazis que se unem hoje e, com seus robôs absolutamente Optimus, unem a humanidade?

O otimismo de Elon Musk e dos multipoderosos das Big Techs é atroz. O pessimismo existe para denunciar, inclusive, suas atrocidades. Atenta a essa resistência pessimista, nos anos 1980 a filósofa brasileira Olgária Matos sintetizava a ideia ao investigar o Arthur Schopenhauer de Max Horkheimer: “O que une os homens é o desconsolo e o desamparo; o que os separa são os fanatismos e as divisões políticas”.

Pessimistas de todo o mundo, uni-vos!

 
* Texto publicado em 18/02/2025 no (ótimo) site A terra é redonda. Acesso feito na mesma data.
 
 
BG de Hoje

Até onde sei, John Cameron Fogerty é reputado, nos EUA, como um dos grandes  songwriters  daquele país, em todos os tempos. Concordo plenamente. Proud Mary, Who'll Stop the Rain, Fortunate Son, Have You Ever Seen The Rain, entre outras, tem um peso importante no cancioneiro norte-americano (e mundial) e serão lembradas por anos e anos como exemplos de música popular/pop/não erudita bem feita. Aprecio todas elas, claro. Há, entretanto, uma faixa do CREEDENCE CLEARWATER REVIVAL pela qual tenho grande apreço - Lodi, com sua atmosfera triste e o refrão de um verso só: "Oh, Lord, (I'm) stuck in Lodi again".
 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Falou e disse...

 "I eventually chose freedom over unrealisable justice, after being detained for years and facing 175-year sentence with no effective remedy (...) I am not free today because the system worked. I am free today after years of incarceration because I pled guilty to journalism". *  **

* [Tradução aproximada] "Acabei por escolher a liberdade em vez de uma irrealizável justiça, depois de ficar detido por anos e encarar [a possibilidade de] uma sentença  de 175 anos sem um recurso efetivo (...) Não estou livre hoje porque o sistema funcionou. Estou livre hoje depois de anos de encarceramento porque me declarei culpado por fazer jornalismo"

** Fala de Julian ASSANGE em seu primeiro pronunciamento público após sair da prisão, reproduzida em matéria do jornal The Guardian, publicada em 01/10/2024. Ainda fico pasmado com a quantidade de pessoas que não consegue ver o quão tirânicas são muitas das ações dos EUA pelo mundo afora, independentemente das alternâncias entre os chefes da Casa Branca. E é horripilante saber que o processo contra o fundador do WikiLeaks não está entre as piores.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Cem anos de solidão : a série e o livro (I)

Registrei uma vez aqui no blog - não estou bem certo onde - que só escrevo sobre livros dos quais gosto ou sobre aqueles que tiveram papel determinante na minha trajetória de leitor. Bem, pelo menos na maioria dos casos. Um critério bem mixuruca, obviamente, mas é assim que a banda toca no  Besta Quadrada , o único lugar em que posso experimentar uma sensaçãozinha de autonomia. Há uma imensidão de textos a serem lidos, o tempo de que disponho não é infinito e, ano após ano, o meu entusiasmo pelas coisas em geral vem decrescendo. É preciso, pois, fazer escolhas.

Assim sendo, como foi difícil escrever a postagem atual!

A chegada de uma adaptação do  Cem anos de solidão  na Netflix me fez relê-lo algumas semanas atrás: não me lembrava da última vez que o fiz. Foi difícil, simplesmente, porque não gosto desse romance. Além disso, Gabriel García Márquez não é um escritor de minha particular estima; com exceção de Relato de um náufrago  e, por razões diferentes, Crônica de uma morte anunciada, sua obra me interessa bem pouco.

Acontece, porém, que estamos falando do Cem anos de solidão , um livro não só amado por um montão de gente mundo afora, particularmente na América Latina e Caribe, mas também reputado como uma grandiosa façanha literária: Pablo Neruda, por exemplo, considerava-o a maior revelação em língua espanhola desde o  Dom Quixote. Então, às favas com meu critério ordinário.

Para começar a conversa, devo dizer que achei a adaptação da Netflix muito boa e isso me surpreendeu. Parte das produções da empresa sempre me pareceram pasteurizadas demais e não foi o caso dessa, embora os roteiristas tenham recorrido aqui e ali a alguns recursos um tanto gastos da teledramaturgia - afinal, uma companhia de streaming tão grande nunca deixará a preocupação com os índices de audiência de lado e precisa atrair o maior número possível de espectadores.

Os principais méritos, a meu ver, estão nas movimentações de câmera e na concepção cenográfica tanto de Macondo quanto a da casa da família Buendía (acompanhar, a cada episódio, as mudanças na arquitetura do imaginário povoado/município e, sobretudo, na residência foi muito prazeroso). O trabalho dos atores também merece ser destacado: Susana Morales Cañas (que interpreta Úrsula Iguarán,  enquanto jovem) e Janer Villarreal (que interpreta o Arcadio adulto, o filho de José Arcadio e Pilar Ternera) são meus preferidos. A narração em  off  - recurso geralmente não muito apreciado em trabalhos audiovisuais - ficou na medida certa.

Cem anos de solidão, como se sabe, é daqueles romances profusos, conjugando diversas historietas ramificadas, casando muito bem com o formato seriado (se fizessem um filme a partir da narrativa literária, é bastante provável que não daria certo, mesmo que tivesse, sei lá, quatro horas de duração). Entretanto, concordo com Rodrigo García Barcha, cineasta e um dos filhos de García Márquez, que a série "é uma experiência diferente e deve ser apreciada pelo que é, sem comparar constantemente com o livro. Para mim, são projetos-irmãos que se complementam"

Às vezes, porém, a comparação é incontornável. Penso, por exemplo, num dos momentos mais marcantes (pelo menos para mim) : a morte de José Arcadio - não o patriarca, mas seu filho primogênito de mesmo nome - e como a fatídica notícia chegou à sua mãe. Reproduzo o trecho abaixo ¹:

"Uma tarde de setembro, diante da ameaça de uma tempestade, [José Arcadio] voltou para casa mais cedo que de costume. Cumprimentou Rebeca na copa, amarrou os cachorros no quintal, pendurou os coelhos na cozinha, para salgá-los mais tarde, e foi para o quarto trocar de roupa. Rebeca declarou depois que quando o marido entrou no quarto, ela se fechou no banheiro e não percebeu nada. Era uma versão difícil de acreditar, mas não havia outra mais verossímil, e ninguém pôde conceber um motivo para que Rebeca assassinasse o homem que a tinha feito feliz. Este foi talvez o único mistério que nunca se esclareceu em Macondo. Logo que José Arcadio fechou a porta do quarto, o estampido de um tiro retumbou na casa. Um fio de sangue passou por debaixo da porta, atravessou a sala, saiu para a rua, seguiu reto pelas calçadas irregulares, desceu degraus e subiu pequenos muros, passou de largo pela Rua dos Turcos, dobrou uma esquina à direita e outra à esquerda, virou em ângulo reto diante da casa dos Buendía, passou por debaixo da porta fechada, atravessou a sala de visitas colado às paredes para não manchar os tapetes, continuou pela outra sala, evitou em curva aberta a mesa da copa, avançou pela varanda das begônias e passou sem ser visto por debaixo da cadeira de Amaranta, que dava uma aula de Aritmética a Aureliano José, e se meteu pela despensa e apareceu na cozinha onde Úrsula se dispunha a partir trinta e seis ovos para o pão. 
- Ave Maria Puríssima! - gritou Úrsula.

Seguiu o fio de sangue em sentido contrário, e em busca da sua origem atravessou a despensa, passou pela varanda das begônias onde Aureliano José cantava que três e três são seis mais três são nove, e atravessou a copa e as salas e seguiu em linha reta pela rua, e em seguida dobrou à direita e depois à esquerda até a Rua dos Turcos, sem se lembrar que ainda trazia vestidos o avental de cozinha e as chinelas caseiras, e saiu para a praça e se meteu pela porta de uma casa onde não havia estado nunca, e empurrou a porta do quarto e quase se sufocou com o cheiro de pólvora queimada e encontrou José Arcadio caído de bruços no chão, sobre as polainas que acabava de tirar, e viu a fonte original do fio de sangue que já havia deixado de fluir do seu ouvido direito. Não encontraram nenhuma ferida no seu corpo nem puderam localizar a arma"

Estou convencido de que o percurso do fio de sangue não se tornará, visualmente falando, uma das sequências memoráveis da série; isso me desagradou um pouco, para ser sincero. Penso também que a pungência do relato escrito foi perdida, ainda que a voz em off  tenha repetido quase textualmente essas frases do livro: "Era uma versão difícil de acreditar, mas não havia outra mais verossímil, e ninguém pôde conceber um motivo para que Rebeca assassinasse o homem que a tinha feito feliz. Este foi talvez o único mistério que nunca se esclareceu em Macondo".  No episódio televisivo, Úrsula não gritou  "Ave Maria Puríssima!"  e, ao chegar à  "a casa onde não havia estado nunca", encontrou o filho caído de costas e não de bruços.

OK, OK, pode ser apenas um descabido excesso de rigor ou um purismo artístico bobo da minha parte, mas, ao cabo, o que estou querendo ressaltar nada mais é do que um fenômeno conhecido por todos nós: a impossibilidade de um trabalho audiovisual reproduzir fielmente um trabalho literário.

A primeira temporada encerrou-se com a morte do fundador de Macondo (a chuva de flores amarelas ficou muito bonita) e o avanço da tropa de Aureliano para recuperar o controle da localidade. A segunda temporada provavelmente mostrará o crescimento e a queda da cidade, após a passagem da Companhia Bananeira (não dá para esquecer aquela célebre frase do Coronel Buendía:    "Olhem a  confusão  em que  nos metemos só por termos convidado um americano para comer banana" ). Curioso para ver como será o retrato da alucinada e insuportável carola Fernanda del Carpio e como mostrarão o paulatino crescimento da amargura e do rancor inesgotáveis de Amaranta.

Nada mais a fazer senão aguardar.

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¹ MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003 [Tradução de Eliane Zagury]. Essa é, atualmente, a única edição do livro que tenho em casa, para acesso rápido e direto.

BG de Hoje

ZIZI POSSI nunca fez uma aparição nesta seção do blog. Um vacilo sem tamanho da minha parte, pois é das minhas intérpretes favoritas. A cantora tem uma sólida formação musical: é pianista e cursou regência e composição na UFBA. Mas, besta quadrada que sou, só fui saber disso há poucos anos, assistindo sua participação no célebre Ensaio (TV Cultura) e no bom programa do Charles Gavin no Canal Brasil,  O Som do Vinil  (tudo disponível no Youtube). Poderia ter se tornado concertista ou seguido carreira acadêmica. Felizmente, preferiu não nos privar de sua lindíssima voz. Escolho  É a vida que diz, do disco Asa Morena, o álbum que a fez conhecida nacionalmente. Gosto demais dessa canção, uma das muitas resultantes da parceria entre os irmãos Marina Lima e Antonio Cicero, falecido recentemente (um terceiro autor - Pisca - também assina a composição). A própria Marina a gravou, mas a versão de Zizi Possi é excelente.