"Essa oposição [entre 'menos direito e mais emprego ou todos os direitos e o desemprego', frase dita pelo ex-presidente Jair Bolsonaro] só existe no ideário selvagem daqueles que querem um mercado de trabalho selvagem. Não é o direito que garante mais ou menos emprego. O emprego maior ou menor depende do movimento da economia. É uma falácia e é uma mentira vergonhosa dizer que, se há menos direito, há emprego.
O que nós temos que discutir no Brasil hoje é se nós queremos o caminho da dignidade mínima para a população trabalhadora, ou nós queremos o caminho do que eu chamo de privilégio da servidão, da lei da selva, da corrosão completa. Portanto, essa tese que relaciona uma coisa à outra é falaciosa, mentirosa e manipuladora."
Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Unicamp, em entrevista para o UOL (14/09/2019)
AVISO: O texto a seguir, para ser melhor compreendido, pressupõe a leitura da primeira postagem anteriormente publicada desta série, disponível aqui.
Tenho visto por aí que muitos jovens execram a carteira assinada, uma representação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), também desdenhada por eles e elas. Para essas pessoas, ser CLT é um atestado de fracasso. É preciso admitir que as condições de trabalho e os salários ofertados em muitas ocupações no país, em geral, são mesmo ruins, sem falar na péssima mobilidade urbana, mal planejada em termos de transporte público de massa (que torna o deslocamento domicílio-trabalho-domicilio um inferno diário). Mas os empregos/ocupações de merda não são culpa da CLT, muito menos dos direitos trabalhistas (não canso de ficar espantado ao verificar que isso não é óbvio para todos). Muitos desses jovens não se dão conta da exploração inerente ao capitalismo, particularmente num dos países mais desiguais do mundo. Pior: acreditam que vão escapar dela e se dar bem financeiramente através do Tik Tok ou do Instagram, monetizando o "conteúdo" que estiverem expondo, uma expectativa irrealista, penso eu, pois embora o Brasil seja um dos países em que os usuários mais passam tempo nas mídias sociais, os indivíduos que conseguem obter uma renda regular e suficiente através destas não são tantos assim.
O desapreço pela carteira assinada - e aquilo que ela em grande parte simboliza: afazeres rotineiros, com horários e remuneração fixos, além da garantia de direitos frente ao poder do capital - nos ajuda a realçar um dos aspectos do empreendedorismo enquanto discurso ideológico.
Desde a postagem anterior, quero suscitar a seguinte reflexão: hoje em dia, o uso do termo empreendedorismo não se refere apenas a determinadas iniciativas pessoais ou a processos voltados para a inovação: tornou-se uma panaceia para os problemas socioeconômicos. Além disso, para empreender de verdade, dentro do modo de produção vigente, é preciso inicialmente dispor de recursos (isto é, dinheiro), inclusive para se resguardar caso as coisas não saiam como o planejado (essa história de aceitar os riscos do negócio só vale mesmo para quem já tem as costas quentes). Assim sendo, tornar-se um empreendedor não está ao alcance de qualquer um, como se quer fazer acreditar.
Antes de prosseguir, percebo que terei necessidade de novamente afirmar algo óbvio para evitar ser mal interpretado: o ímpeto de empreender não é, em si, um ato satânico, não é bater em mãe ou negar água a quem tem sede, nada disso. Várias pessoas são bastante inventivas, têm sonhos ousados; outras desejam criar uma coisa só delas ou ter um equilíbrio saudável entre o tempo do trabalho e o tempo para a vida pessoal. Nada contra, pelo contrário. Se puderem, corram atrás de suas invenções, sonhos, criações e desejos. Empreendam, se tiverem condição! .
O problema é que, quando penso nos atuais trabalhadores da chamada Gig Economy, por exemplo, não consigo deixar de me perguntar se a maioria deles está nessa pelos motivos mencionados acima. Quantos desses motoristas de Uber ou entregadores de iFood estão realizando um desejo, inventando algo original, perseguindo um sonho? Falo deles porque é comum encontrarmos referências a esse segmento como patrões de si mesmos e (isso é importante) até como empreendedores.
Em 2024, a renda média mensal de um entregador do iFood, de acordo com o Cebrap, variou de R$ 807 a R$ 3.309 (esses números foram estabelecidos a partir de duas jornadas de trabalho semanais, 20 ou 40 horas, sendo R$ 23 o valor médio pago pela hora trabalhada). Não se trata de uma remuneração polpuda (naturalmente, esse ganho pode aumentar se o entregador ficar mais tempo rodando na sua moto/bicicleta, incluindo os fins de semana, prática comum entre esses trabalhadores). Não tenho ideia de quanto se recebe na Uber, mas arrisco dizer que não deve ser nada muito espetacular. Eles alegam então que nem tudo é dinheiro. Fala-se da liberdade. "Faço meus próprios horários" , "Não sou controlado pelo governo", muitos dizem.
Mudando um pouco de assunto, quem também adora falar de liberdade são os partidários da extrema direita (por favor, não estou afirmando que os prestadores de serviço via aplicativo estão necessariamente posicionados nesse campo do espectro político). E a extrema direita, a despeito de propagar aos quatro ventos que o socialismo não passa de uma utopia delirante (e contrário à liberdade, diga-se de passagem), mantém a sua própria utopia, uma utopia capitalista liberal (ou neoliberal). Refiro-me à crença de que a sociedade entrará em harmonia e equilíbrio bastando conceder liberdade total ao mercado (afinal, o mercado se autorregula perfeitamente, não?) e assegurar o direto à propriedade privada em quaisquer circunstâncias, sem restrições ou interferências. Nesse mercado livre até não poder mais, vale perguntar : todos poderão ter suas demandas atendidas na hora de fazer um acordo ou a parte com mais grana, patrimônio - enfim, poder econômico - é a que vai impor seu apetite às outras partes, obrigando-as a se sujeitar? Nesse domínio da liberdade plena, os vencedores mereceram vencer, não importa como o fizeram, e os perdedores... bem, os perdedores que se lasquem.
Dias atrás, assisti a duas entrevistas exibidas no Youtube e trechos das falas dos entrevistados têm muito a ver com a reflexão que venho fazendo. O filósofo Vladimir Safatle, falando com Breno Altman, no Opera Mundi, afirmou (a partir de 29m19s de vídeo), que o fascismo tem sido bem sucedido em sua nova ascensão porque "dá uma resposta racional" aos problemas socioeconômicos. Safatle tem se mostrado contrário às análises que tentam explicar o crescimento do fascismo ancorando-se em termos psicológicos como regressão ou ressentimento. Segundo ele, "você pode ser racional e fascista aos mesmo tempo". E complementa: "O fascismo traz uma perspectiva brutalmente realista que consiste basicamente em dizer : de fato, não há sociedade para todos e não há espaço para todos dentro dessa sociedade e é necessário lidar com isso, com esse princípio de realidade, e qualquer outra pessoa que vai te dizer o contrário vai mentir pra você". Para corroborar essas afirmações, quem fala a partir de uma perspectiva fascista pode acrescentar e dizer que "a sociedade inclusiva, a sociedade de profunda solidariedade nunca aconteceu, ninguém nunca viu". Noutra conversa, com Chico Pinheiro, no canal do ICL , o historiador e professor de literatura João Cézar de Castro Rocha adverte (a partir de 41m38s de vídeo): é preciso reconhecer que "a extrema direta aprendeu a conquistar corações e mentes, especialmente nas gerações mais jovens. A arma da extrema direita é a guerra cultural".
A que conclusões podemos chegar, diante do que foi exposto (de forma bem desarranjada) nessas duas postagens?
Empreender não é a receitinha, o passe de mágica que vai resolver mais uma das infinitas crises do capitalismo. Muitos (provavelmente a maioria) dos motoristas de Uber, entregadores de iFood, vendedores ambulantes de sol a sol, gente que faz bolo de pote ou quem tem uma banquinha num centro comercial popular, entre outros, não são empreendedores, embora o discurso empreendedorista atual queira nos empurrar essa percepção - essas pessoas partiram para essas atividades porque foram forçadas pela necessidade, tinham que se virar para pagar as contas e não havia vagas no mercado formal de trabalho. Insistir no empreendedorismo como a salvação para a questão da falta de empregos decentes num contexto de supressão de direitos ou como a solução para uma economia cada vez mais concentradora de renda e produtora de desigualdade é um discurso atrelado a ideologias contra as quais me coloco. Ideologias que, quando olhadas bem de perto, defendem nada menos que a lei da selva, o cada um por si. Ideologias que desvalorizam e inviabilizam o exercício da solidariedade e atribuem o fracasso exclusivamente ao indivíduo, livrando de culpa o sistema que se mantém de pé pela exploração.
Muitos jovens estão sendo seduzidos justamente por esse conjunto de discursos ideológicos aos quais me oponho e que, creio, estão nos levando para um buraco ainda mais fundo. O que fazer?
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Como registrei acima, as duas postagens sobre essa temática ficaram desarranjadas, confusas. Mas não queria deixar de abordar esse assunto. Caso o(a) eventual leitor(a) procure um texto de qualidade incomparavelmente melhor, abordando a temática do empreendedorismo de forma crítica, sugiro Crise de identidade ideológica da classe média, de Fernando Nogueira da Costa, professor de economia da Unicamp. Geralmente, não aprecio os artigos escritos por ele, mas achei pontos de concordância neste. Um excerto:
"As barreiras à massificação do empreendedorismo autêntico têm fatores estruturais, mas enfrenta obstáculos. A concentração de capital leva ao acesso desigual a crédito, tecnologia e redes. A baixa mobilidade social conduz ao empreendedorismo de necessidade, não de vocação. O domínio de plataformas monopolistas resulta em uma intermediação assimétrica, onde se captura o valor do trabalho.Na regulação fiscal e urbana, percebe-se a falta de políticas públicas de apoio ao microempreendedor real, portanto, é uma cultura do risco com individualização da falha e ausência de seguridade social.A massificação do empreendedorismo individual via plataformas não constitui superação da exploração assalariada por emancipação, mas sim reciclagem da exploração. É uma reorganização pós-fordista da precariedade e uma nova forma de disciplinamento neoliberal pela via do sonho de ascensão individual".
BG de Hoje
Anteontem me peguei cantarolando essa canção enquanto voltava pra casa, depois de mais um dia desagradável de trabalho. Há um tempão que não a escutava: Relampiano, interpretada pelo Paulinho MOSKA e feita em parceria com LENINE, que também gravou-a (no álbum Na pressão ).