Talvez este não seja o melhor momento para voltar ao Admirável mundo novo. Digo isso porque as ciências não parecem estar gozando de um apreço significativo e generalizado nos últimos tempos (ou esse montão de gente por aí dizendo que a Terra é plana, dando de ombros para a emergência climática, consultando astrólogos e duvidando da eficácia da vacinação retrata uma história de sucesso em termos de letramento científico?). Os alertas contidos no livro de Aldous Huxley são melhor apreciados, penso eu, quando as proposições das ciências estão com crédito em alta. Numa época, entretanto, em que pessoas dão atenção (e dinheiro) a coaches "quânticos" (que ofertam, entre outras coisas, "alteração de células corporais através do pensamento, sentimentos, emoções e comportamentos", segundo um instituto voltado para essa "terapia"), a narrativa literária pode já não ter muito a oferecer como crítica aos excessos do cientificismo.
Se não estiver contando errado, essa deve ser a 11ª (ou 12ª?) vez que percorro esse texto. É um dos volumes basilares na minha formação de leitor, mas admito que a satisfação de décadas atrás foi deixando de se repetir nas últimas leituras. Há uma emanação moralista e reacionária naquelas páginas que, hoje, não consigo mais aceitar como um problema menor da composição.
Sendo assim, além da crítica ao cientificismo (e não à ciência, bem entendido), por qual outro motivo valeria a pena retornar mais uma vez ao célebre romance distópico publicado pela primeira vez em 1932?
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Apesar de algumas marcas óbvias - por exemplo, nomes de personagens (Bernard Marx, Helmholtz Watson, etc.) e determinados episódios, como a cerimônia do Orgião-Espadão (Orgy-Porgy, no original, um trocadilho com a cantiga infantil inglesa Georgie Porgie ) -, levei muito tempo para me dar conta do alcance do conteúdo satírico na escrita do Admirável mundo novo (não é à toa que este blog se chama Besta Quadrada...). Huxley quis, deliberadamente, fazer troça com H. G. Wells e o otimismo dele em relação ao futuro da humanidade, manifestado em alguns de seus livros, principalmente Deuses Humanos (soube disso só muito tempo depois das primeiras leituras). Creio que seria proveitoso dispor de algumas informações biográficas para compreender melhor tudo isso (sobretudo porque acho que Huxley deve ter achado graça em alguns momentos durante o processo de elaboração da obra), mas infelizmente não há como obtê-las no momento. Estou querendo dizer que a intenção satírica me leva a especular sobre a possibilidade de o escritor estar apenas se divertindo em algumas passagens. De qualquer forma, trata-se de um romance de ideias, em que o autor certamente quer conduzir seu leitor para determinadas conclusões e, no todo, não estava brincando em serviço.
A amplitude de uma obra de ficção científica depende, em grande parte, do quanto suas "previsões" se mostram corretas. No prefácio ao livro publicado anos depois do lançamento, impactado pelo uso de bombas atômicas na Segunda Guerra Mundial, o romancista admite que não deu atenção suficiente para o poder da fissão nuclear, mas essa não é sua única falha em termos de imaginação do futuro: não há, por exemplo, menção à automação do trabalho, algo que já estava no horizonte de artistas nas primeiras décadas do século passado, além de ser uma conjectura quase inevitável ao ter em mente a linha de montagem fordista. Por outro lado, com acerto, ele intuiu que o controle social conseguiria ser muito eficiente se empregasse técnicas e estratégias direcionadas para a pisque, valendo-se de tecnologia avançada, resultando em indivíduos que "amam a servidão". Mesmo assim, oportuno observar, o controle social em nossos dias ainda depende da violência e da coerção física em inúmeros casos, bem diferente do estável sistema de castas futurista (o Estado Mundial) apresentado no livro, no qual o descontentamento pode ser facilmente suprimido por meio de um fármaco. Nesse aspecto, a crítica que Huxley fez a George Orwell numa carta a respeito de 1984, afirmando que a política de botina na cara não parecia ter muito futuro no longo prazo, não se mostrou acertada, pelo menos até o presente momento histórico.
É fato que Huxley temia o totalitarismo. Por essa razão, muitos identificam no Admirável mundo novo tão somente uma condenação implacável direcionada ao fascismo (que, sabemos, desembocaria na monstruosidade de Hitler), bem como ao regime vigente no chamado socialismo/comunismo real de feitio soviético (o ficcionista britânico talvez preferisse o termo bolchevismo ), tendo Stálin no comando. Creio não ser uma visão equivocada. Uma análise um pouquinho mais atenta, contudo, permite-nos ver que não se trata apenas disso.
Observemos um excerto do capítulo três - uma das falas do Diretor do Centro de Incubação de Londres:
"- É estranho [...], é estranho pensar que, mesmo no tempo de Nosso Ford, a maioria dos jogos não tivesse mais acessórios que uma ou duas bolas, alguns bastões e talvez um pedaço de rede. Imaginem que tolice permitir que as pessoas se dedicassem a jogos complicados que não contribuíam em nada para aumentar o consumo. Atualmente, os Administradores não aprovam nenhum jogo novo, salvo se demonstrar que ele necessita, pelo menos, de tantos acessórios quanto o mais complicado dos jogos existentes".
Aumentar o consumo... Referências à necessidade de consumir aparecem noutros momentos da narrativa. No capítulo onze, por exemplo, Linda - uma pessoa criada no Estado Mundial, mas que foi deixada para trás numa reserva formada por uma população à parte desta organização social -, mesmo após tantos anos de fora, não se livrou do condicionamento para o consumo. Diz ela em determinado momento "Além disso, nunca foi direito remendar roupa. É atirar fora quando estiverem estragadas e comprar novas. 'Quanto mais se remenda, menos se aproveita' [um ensinamento incutido por meio de um processo chamado hipnopedia]. Não é verdade? Remendar é antissocial".
O fenômeno da sociedade de massa inquietava muitos intelectuais na primeira metade do século passado, atraindo pensadores politicamente tão diferentes quanto Ortega Y Gasset e Adorno e Horkheimer. O autor de Admirável mundo novo - até onde sei, alguém que não dá para chamar de revolucionário - também estava refletindo e se questionando a esse respeito. Num mundo cada vez mais populoso, os conflitos serão ainda mais destrutivos? Haverá ocupações e lugar para todos? Como fica a questão da ordem, do exercício da autoridade e do poder? E o risco da anulação do indivíduo, cada vez mais indistinto no mundaréu de gente? Nesse cenário, como atender a liberdade pessoal? Como fica a questão da autonomia de pensamento, da criatividade pessoal e da inspiração artística?
De acordo com a ficção de Huxley, a humanidade do futuro reforçará a segurança e a estabilidade em detrimento da independência e da liberdade individuais. O "detalhe" é que, para a permanência desse estado de coisas, o consumo precisa ser ininterrupto, uma prática contínua, executada por seres humanos infantilizados. É esse ponto - seres humanos infantilizados impelidos ao consumo - um dos poucos tópicos que fazem o livro aqui debatido uma criação ainda relevante nos dias atuais.
Concluo a discussão na próxima postagem.
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¹ HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. 22 ed. São Paulo: Globo, 2014 [Tradução de Lino Vallandro e Vidal Serrano). Todos as citações do livro colocadas nesta postagem foram retiradas dessa edição/tradução.
BG de Hoje
A frase "É pra isso que eu pago internet" não deve ser usada em vão. Dito isso, os Tiny Desk Concerts estão entre aquele monte de iniciativas pelas quais agradecemos a existência da web. É tão bom poder ver artistas que se admira apresentando-se dentro do formato proposto ali, bastando uns poucos cliques e pressionar de teclas! Recentemente, a banda nova-iorquina LIVING COLOUR, uma das minhas prediletas em todos os tempos, apareceu por lá. Sensacional! Entre as canções tocadas, Love Rears Its Ugly Head teve tudo a ver com o espaço, principalmente pela execução ainda mais jazzy do que a gravação original (a partir de 12m5s).