sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Sobre o jornalismo denominado progressista


 
Não sendo nada criativo, vou citar aqui uma frase famosa de Malcom X, muito lembrada quando o tema é a crítica ao jornalismo mainstream : “If you're not careful, the newspapers will have you hating the people who are being oppressed, and loving the people who are doing the oppressing.” [ "Se você não for cuidadoso, os jornais vão fazer você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas e amar as que estão oprimindo" ]
 
Cada vez menos pessoas no mundo de hoje, claro, adquirem e leem jornais de papel, mas a declaração do ativista norte-americano ainda é válida se entendermos que sua reprovação é direcionada às grandes organizações de imprensa, aquelas com maior alcance entre a população.
 
É necessário, para assentarmos bem a discussão de hoje, ter sempre em mente que a ComCast (dona da NBC, Telemundo e vários canais por assinatura), a Disney (proprietária, por exemplo, da ESPN e da rede de televisão ABC), a Warner Bros (que detém a CNN norte-americana), os canais e órgãos de imprensa controlados pelo Rupert Murdoch (por exemplo, The Wall Street Journal, The New York Post e Fox News), todas essas e outras empresas do tipo continuam nesse ramo de atividade não porque tenham como missão prestar um serviço de veiculação de notícias e fornecimento de informação ao público: sua real disposição é influenciar a esfera pública e moldar percepções, domesticando a audiência, "limitando o espectro da opinião considerada aceitável", como diz Noam Chomsky, além de promover tópicos e discussões favoráveis aos seus interesses comerciais e, sobretudo, aos de seus parceiros de negócios. Ainda que já saibamos disso, é preciso enfatizar sempre.
 
Mencionei acima corporações dos EUA (de alcance planetário, contudo), mas o mesmo vale para suas congêneres brasileiras, guardadas as devidas proporções. Grupo Globo e Grupo Folha à frente, seguidos por Bandeirantes, Record, Estadão, etc. ainda conseguem intervir fortemente no debate público para garantir que parte dos consumidores de notícias e informação adote posicionamentos favoráveis àquilo que é preconizado pelos proprietários dessas organizações e pelos figurões à frente dos mercados para onde a grana grossa sempre flui ¹
 
Noutras palavras: quem detém o maior poder econômico dita o conteúdo e o direcionamento da mídia mainstream.  Não poderia ser diferente dentro do capitalismo. A mídia a serviço do capital - ou seja, um aparelho ideológico, se quisermos fazer um exibicionismo intelectual e sapecar um termo althusseriano - ainda tem a audácia de proclamar que o seu modo de fazer jornalismo reflete fielmente a realidade do mundo, pois é aquele feito com mais profissionalismo, sobriedade e isenção (segundo a palavra dessas mesmas empresas, claro), sendo o único confiável. NOTA: Não seria sensato afirmar que a mídia dominante propaga, sistematicamente, na cara de pau, mentiras deslavadas (bem, deixemos de fora a Fox News...), mesmo que apresente falhas de apuração e de checagem eventualmente e possa, sim, agir de má-fé vez ou outra. Dá pra dizer, com a devida reserva, que essa mídia procura certificar-se da autenticidade dos fatos antes de produzir as notícias e, no geral, com maior ou menor adesão, o público aceita-a como um dos  explicadores  válidos dos acontecimentos. A questão problemática, no entanto, é a seguinte: grandes empresas de mídia não são instituições assépticas onde reinam a neutralidade e a imparcialidade (até porque tais "virtudes" jornalísticas são cada vez mais entendidas, inclusive academicamente, como mitos). Quando se presta a devida atenção, vê-se que a própria seleção das situações convenientes para o seu noticiário e a maneira como estas são apresentadas à audiência (ou seja, segundo a interpretação que essas empresas fazem da conjuntura) revelam ao lado de quem a mídia  mainstream  está. E ela não costuma inclinar-se na direção de quem é explorado e oprimido no capitalismo. 
 
Mais uma vez, não estou dizendo nada novo: boa parte de nós sabe que é assim que as coisas sempre foram. E, para piorar, durante muito tempo, não havia opções de iniciativas jornalísticas que apresentassem algo diverso para um público mais amplo.
 

Atualmente, entretanto, pode-se acessar, sem muita dificuldade, sites ou canais na web comumente chamados de  progressistas  - algumas vezes de  alternativos,  noutras de  independentes  - que servem de contraponto à mídia dominante, embora exerçam muitíssimo menos influência do que estaApesar de muitos deles não se apresentarem formalmente como  de esquerda, sabemos que sua linha editorial vai ao encontro de vários princípios ideológicos desse campo político. Pessoalmente, prefiro chamar esses projetos de  não hegemônicos  ou  não corporativos.  Para facilitar nossa exposição, contudo, no restante desta postagem, vou usar na maior parte das vezes o termo  progressista  (apesar de não ser o ideal) quando me referir a quem pratica esse tipo de jornalismo.

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De todas as áreas de atuação diretamente impactadas pela chegada da internet (e são inúmeras), o jornalismo está entre aquelas que mais sentiram o baque, com enorme dificuldade para se manter de pé enquanto tarefa passível de remuneração.

Indo direto ao ponto: são poucas as pessoas hoje em dia dispostas a pagar pelo trabalho do jornalista (seja o texto escrito, a gravação de áudio ou vídeo, fotografia ou filmagem exibidos ao público, seja a preparação desse material: pesquisa, apuração, produção, revisão, edição, etc.). A facilitação do acesso como uma das forças motrizes da web massacrou as redações: por que pagar para obter o conteúdo de jornais e outros veículos se, com uns poucos cliques, as notícias estão ali, de graça? Além disso, qualquer pessoa com o equipamento certo (e nem precisa ser muito sofisticado) consegue se  passar por  jornalista e divulgar o que faz nas diversas plataformas disponíveis: ser um profissional da área é dispensável, o que nos remete ao volume incomensurável de desinformação, mentiras e balelas (convencionalmente chamadas de  fake news ) circulando pra baixo e pra cima com aparência de comunicação jornalística legítima. Numa era em que a informação (indispensável ou acessória) encontra-se dispersa por todo lugar, estabelecimentos profissionais voltados para o jornalismo não têm mais qualquer primazia. Só para exemplificar: no momento, além do Rascunho (especializado em Literatura), sou assinante apenas do Nexo, que decidiu tentar se manter sem anúncios publicitários, contando somente com os valores pagos por leitores como eu. Entretanto, temo muito pelo futuro do jornal porque apenas 2,5% de seu público contribui financeiramente.

Essa atividade, outrora prestigiada, vem perdendo relevância social. As consequências disso são bem, bem ruins. 

O(a) eventual leitor(a) talvez esteja se perguntando: mas esse blogueiro miserável não disse acima que as grandes organizações de mídia têm forte influência na sociedade? Como é que o jornalismo está em dificuldades financeiras e perdendo valor?

Respondo observando que a GRANDE mídia - sustentada por gente muito rica, cujos ganhos astronômicos provém de outras áreas -, de fato, não sofre com essa situação. Repito o que escrevi anteriormente: a real disposição dessas empresas de mídia é influenciar a esfera pública e moldar percepções, domesticando a audiência, além de promover tópicos e discussões favoráveis aos seus interesses comerciais e, sobretudo, aos de seus parceiros de negócios. Se já não há mais tantas pessoas comuns dispostas a financiar o trabalho jornalístico, pouco importa para essas corporações: elas conseguem se sustentar graças a recursos oriundos de outras fontes. Veja o caso da  Folha de S. Paulo.  Seu número de assinantes não deve ser grande coisa hoje em dia, se comparado com o de algumas décadas atrás. A receita com anúncios pagos também não deve mais ser essa maravilha toda. Sem problema, porque o PagSeguro (ou PagBank), empresa do UOL que, por sua vez, está dentro do Grupo Folha, é bastante lucrativo, permitindo a manutenção do jornal. E mesmo que o número de leitores efetivos da  Folha  não seja significativo, o que se publica lá ainda consegue gerar burburinho, dados o tamanho e a relevância que o jornal já teve (e ainda tem, de certa forma). Veja o caso da Globo. O  Jornal Nacional  já não bate a audiência desfrutada nos anos 1980; o  Fantástico  é muito pouco visto; a  GloboNews  não tem tantos espectadores diretos assim. Pouco importa: pode-se manter tudo isso no ar porque o Grupo Globo continua lucrando muito com o entretenimento que produz, aliado à publicidade (e, não raro, mistura entretenimento e publicidade com jornalismo - infotainment -, uma tendência mundialmente disseminada, aliás). Ano passado, para completar, fechou parceria com uma gigantesca casa de apostas. Quem pode dizer que a Globo, inclusive seus programas de notícias, deixou de ser influente na sociedade?

Assim, não estou falando da mídia dominante quando me refiro a perda de relevância social do jornalismo. Para ela, o jornalismo nada mais é do que uma parte da estratégia comercial/empresarial; embora não assuma abertamente na maior parte dos casos, o compromisso dessa mídia é com aqueles que detêm o grande capital, como afirmei acima. Os projetos não hegemônicos (ditos  progressistas ), estes sim vivem na periclitância e tal situação é danosa sobretudo para todos nós que estamos à mercê do poder econômico.

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Mas o que o jornalismo progressista tem oferecido, particularmente em nosso país?

Encontro exemplos de muito boa qualidade em alguns projetos que acompanho, bem como falhas e defeitos difíceis de contornar noutros deles. 

Começo destacando o De olho nos ruralistas. Produzido pela Associação Terra e Liberdade e coordenado pelo jornalista Alceu Luis Castilho, define-se como "um observatório do agronegócio no Brasil", tratando de temas que abrangem os impactos sociais e ambientais das empresas e entidades ligadas a esse setor gigantesco e poderoso da economia, incluindo desmatamento, expulsão de camponeses, comida com agrotóxicos e violação dos direitos dos povos indígenas. Ativo desde 2016, o  De olho nos ruralistas  mereceria aplauso simplesmente pela coragem de cobrir, de maneira crítica e incisiva, um segmento que sempre contou historicamente com a salvaguarda de membros do Legislativo, Executivo e Judiciário, além do beneplácito da mídia dominante - afinal, segundo a Globo,  o agro é pop  -, a despeito de todos os desmandos associados a ele. Além disso, o site é bem cuidado, de ótima navegabilidade e qualidade na escrita. Há também o canal no Youtube, mais dinâmico e compacto que o site, igualmente bem produzido (os pequenos relatos sobre a ação de lobistas da mineração, do agronegócio e do petróleo na recente COP30 ficaram muito bons).

Fundada em 2011, outro projeto bem feito é a Agência Pública. Apesar do nome, não tem vinculação com nenhuma esfera do Estado ou do poder público. Recursos provenientes de fundações privadas (entre elas, necessário informar, a Ford Foundation e, eventualmente, a Fundação Itaú) são o principal sustentáculo da  Pública  (que também precisa do apoio de aliados e doações de pessoas físicas). O foco do trabalho de sua equipe (formada em sua maioria por mulheres) é o jornalismo investigativo. Além dos ataques da direita, a agência costuma receber críticas da esquerda por causa das entidades que a financiam, mas, até onde posso julgar, as matérias publicadas demonstram muita independência (cito como exemplo, as várias reportagens e outras publicações tratando com apuro o temerário influxo dos evangélicos que pisoteiam a ideia de laicidade na política profissional/institucional).

Vejo também com bons olhos iniciativas como o ICL  (sigla para  Instituto Conhecimento Liberta,  uma expressão meio brega, que me desculpem os criadores). Fico com um pé atrás, porém. Seu fundador e principal divulgador é Eduardo Moreira. A suspeição nem é tanto por Moreira ter sido um operador de monta do mercado financeiro até anteontem, mas pela egolatria emanada por ele.  Esse sentimento de autoimportância pode ser indicativo de uma ambição pessoal imensa, ligada ao poder, em que toda essa  jogada  do ICL funcionaria como encenação. Paranoia? De todo modo, tanto o site de notícias quanto o canal do Youtube fazem, no geral, um bom trabalho. Apesar do tom pró-governo Lula na maior parte do tempo, jornalistas da casa ou colaboradores eventuais (como Cristina Serra) não têm problema em discordar e criticar determinadas ações da atual administração federal. Por exemplo: não se deixou de apontar a contradição e a impostura no discurso ambiental do governo ao insistir na exploração de petróleo na bacia sedimentar da Foz do Amazonas.

"Jornalismo de profundidade"  é o que o pessoal do Outras Palavras afirma estar fazendo. Na maior parte do tempo, essa promessa é cumprida. Composto praticamente de textos analíticos, o site faz uma aposta arriscada: artigos um pouco mais longos e mais complexos numa época em que a atenção das pessoas é cada vez menor.

Menções honrosas ainda para o  Brasil de Fato  , a velha  Carta Capital  e a revista  Fórum  (que vem oscilando ultimamente, porém, em termos de qualidade). Fora do Brasil, não posso deixar de citar o excelente Democray Now!, tanto o site quanto o canal

Quando voltar a este tema futuramente, vou me concentrar nos bons jornalistas que atualmente fazem um trabalho solo no Youtube, casos de Bob Fernandes, Álvaro Borba (que se autointitula um "Uber do conteúdo" ) e Nelson Garrone. Também quero escrever depois, mais detidamente, sobre a Mídia NINJA e a Ponte Jornalismo, cuja proposta de jornalismo vale ser discutida, embora eu não aprecie muito esse modelo.

Passemos agora aos empreendimentos cujo trabalho julgo inferior (e não chega a ser surpreendente que eles estejam entre os de maior alcance entre os progressistas).

Leio habitualmente o conhecido Diário do Centro do Mundo  ( DCM ) que consegue, por vezes, dar um bom enfoque para determinada questão ou assunto em evidência (e por isso ainda tem o seu lugar). A quantidade de desacertos, porém, é grande. Do ponto de vista gráfico, o portal é bem ruim e nada agradável em termos de navegabilidade. Boa parte do que aparece no site é meio  copia-e-cola : reproduções quase diretas de trechos de matérias publicadas noutros lugares, principalmente G1, UOL BBC e no famigerado Metrópolis. Textos, digamos, da própria lavra não costumam se caracterizar pela boa escrita.  Desconfio também que o ChatGPT exerce papel crucial na elaboração de "matérias" sobre comida, automóveis, dicas de decoração e arrumação domésticas ou curiosidades como "Entenda por que o gato preto é associado ao azar e à bruxaria no Halloween"  (geralmente saem na seção intitulada  "Essencial" ) . NOTA 2: Para ser justo, o uso da IA nas redações mundo afora deve estar se tornando uma prática generalizada, pelo que representa em economia de tempo - e de pessoal. A esse respeito, sugiro a leitura da matéria  Parem as máquinas! A IA tem uma reportagem urgente,  publicada na  piauí  em agosto deste ano. Compreendo que é preciso dinheiro para funcionar, mas chega a ser constrangedor ver tantas publicações no  DCM  sobre crimes e violência urbana numa pegada bastante sensacionalista, além de fofocas sobre famosos ou subcelebridades, - como formas de atrair o clique dos leitores - num veículo que tantas vezes se coloca como a palmatória da mídia. Nos últimos meses, dois textos foram particularmente velhacos, com títulos propositalmente capciosos ou imprecisos: um deles era "Vacina, 5G ou agrotóxico: o que explica o aumento de câncer em jovens" e o outro, "A pequena mudança no app que deixou o Itaú centenas de milhões de reais mais rico".

Outro grande portal identificado como jornalismo progressista é o Brasil 247. Assim com o DCM, tem uma navegabilidade péssima. Pelo menos não produz tantos caça-cliques. Atua praticamente como porta-voz e assessoria de imprensa do governo Lula e de seu partido, com textos de opinião às vezes pejados de wishful thinking  (o comediante Tiago Santineli, assumidamente de esquerda, chegou a apelidar o Brasil 247 como "Jovem Pan do PT"). Entende-se que o governo da chamada  frente ampla , capitaneado pelo PT, é o que impediu a extrema direita neofascista de voltar à presidência da República e devo admitir que todos os projetos jornalísticos não hegemônicos já citados nesta postagem apoiam, com maior ou menor afinco, a atual administração federal. Mas o Brasil 247 vai além: simplesmente ignora as falhas de Lula e sua equipe e é incapaz de expor e assimilar as críticas (lembro-me, por exemplo, de que os pedidos feitos por aliados, solicitando a Lula a indicação de uma mulher negra para uma vaga no STF - que acabou, à época, sendo preenchida por Cristiano Zanin -, foram vistos por alguns colunistas do portal como tentativas de sabotar o governo!). Para completar, fico abismado com a quantidade de publicações por lá tratando de geopolítica, com autores(as) sem qualquer renome ou credenciais relevantes na área, muitos desses afirmando quase o tempo todo que a China é o paraíso na Terra.

NOTA 3: Cada um desses dois portais têm, adicionalmente, canais no Youtube, mas como não os assisto, limito-me a comentar apenas o que se publica nos respectivos sites. Mais uma coisa: talvez um dia escreva uma postagem exclusivamente sobre a deplorável incivilidade e grosseria de vários perfis na seção de comentários desses portais. E olha que são pessoas que costumam se achar moralmente superiores àquelas posicionadas no outro lado do espectro político...

Passar pelo DCM e o Brasil 247 também acaba sendo útil para percebermos como o  jornalismo declaratório  é uma das maiores pragas da comunicação hoje em dia (tanto na mídia mainstream quanto em alguns empreendimentos independentes). A simples reprodução de falas de figuras públicas (ou não tão públicas) apenas para preencher espaço no site ou gerar reações imediatas na audiência é praticada  a torto e a direito. Tal praga decorre de dois outros sintomas do enfraquecimento do jornalismo: o esvaziamento do papel do repórter e a raridade do trabalho investigativo.

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Penso que a função de repórter, entre aquelas exercidas pelos(os) jornalistas, é a que consegue representar melhor a intrepidez que caracteriza (ou pelo menos deveria caracterizar) o(a) profissional do jornalismo. Sair a campo, às vezes em condições adversas, mas emocionantes; entrevistar pessoas que, dependendo das circunstâncias, correm risco ao falar com a imprensa; colher e reunir material e, após minuciosa averiguação, divulgar um furo ; publicar uma notícia, temendo represálias por esta apresentar denúncias contra gente poderosa ou colocar essas pessoas sob suspeição. Tudo isso faz parte da mística do(a) repórter.

Viabilizar um trabalho desses, contudo, não é barato. Mesmo reportagens banais e inocentes têm custos, a começar por coisas simples, como o deslocamento do(a) repórter ou da equipe até os lugares onde se deram os acontecimentos, por exemplo. Custos que os projetos progressistas não conseguem dar conta na maior parte das vezes. A mídia hegemônica conseguiria financiar grandes operações jornalísticas, mas quando esta decide investir em reportagens abrangentes, na imensa maioria dos casos, produz sondagens que, mesmo aparentando ser bombásticas, não incomodam os grandes controladores do capital, cujos atos de dominação e exploração seguem inabalados. Resultado: matérias relevantes para a maioria da sociedade não são realizadas e, ocupando seu lugar, o que temos é a hipertrofia do (preguiçoso) jornalismo declaratório (feito sob medida para o ambiente reativo das mídias sociais) e a supervalorização do jornalismo opinativo (que entrega mastigado para o leitor/espectador/ouvinte/internauta aquilo que ele "deve pensar").

Semanas atrás, no  Fantástico,  a experiente e capacitada repórter Sonia Bridi apresentou matérias sobre os efeitos das mudanças climáticas em lugares diferentes do planeta  (sim, eu sou uma das 118 pessoas que ainda assiste o  Fantástico ). Intitulada  Terra: ainda temos tempo,  a série de reportagens é uma espécie de continuação/atualização de outra, chamada  Terra: que tempo é esse?,  que foi ao ar 15 anos atrás, também no programa dominical da Rede Globo. Tudo muito bem filmado e produzido, uma maravilha em termos de apresentação, com a repórter  in loco  em todas as matérias (ou seja, houve custos também com passagens aéreas, hospedagem, deslocamentos por terra ou água, etc.). Pois bem. Sabemos que a criação de grandes rebanhos bovinos para abate leva ao desmatamento de áreas enormes no Brasil e o quanto isso repercute no aquecimento global e na alteração do ciclo hidrológico, isso sem contar os problemas causados por gases produzidos diretamente pelo metabolismo dos próprios animais. Pergunto: Bridi ou outro jornalista da Globo fará em algum momento uma reportagem ampla, incisiva, indo pra cima dos barões da pecuária e todo o seu lobby e forte influência política? Claro que não! A JBS é um tremendo parceiro comercial (a Seara, pertencente ao grupo, patrocina o BBB, a propósito) : não se fará nenhuma matéria que possa indispor tão poderosa corporação.

Dou outro exemplo. Bancos, operadoras de cartão de crédito e financeiras cobram juros escorchantes no Brasil há anos. Qualquer cobertura da mídia hegemônica nunca questiona o fundamento dessa usura. Solta matérias do tipo  Dicas para não deixar o nome sujo na praça   e ficamos por isso mesmo, como se a inadimplência fosse apenas um problema de descontrole individual e não tivesse nada a ver com a extorsão representada pela aplicação de taxas de juros imorais (mais de 40% dos brasileiros adultos estão inadimplentes). Frequentemente essa mídia, repetindo a cantilena do Banco Central (que não faz outra coisa a não ser assegurar as excelentes margens de lucro das instituições financeiras e mantê-las de bom humor, não importa quem esteja à frente do Executivo), tasca um jargão empolado de economista na cabeça do leitor/espectador/internauta, cita o "risco inflacionário"  e os gastos públicos como impedimentos para a diminuição da taxa básica de juros e estamos conversados. Você NUNCA verá um exame aprofundado na  Folha, no  Estadão  ou em qualquer canal de TV  que coloque em questão o esbulho dos bancos, operadoras de cartão e financeiras, enquanto a maioria da população é massacrada por essas empresas. Ah, não podemos esquecer de dizer que o Itaú, o Bradesco e a Visa são anunciantes disputados no meio publicitário... Mesmo que uma equipe progressista consiga produzir uma relevante matéria sobre o tema da exploração pelos juros a reportagem não teria alcance, dada a pouca penetração desse tipo de jornalismo dentro da sociedade. 

Complicando tudo ainda mais, muito em razão do uso intensivo das novas tecnologias comunicacionais, ao que parece, a atenção das pessoas está diminuindo. Em 1967, Caetano Veloso lançava a interrogação:  "quem lê tanta notícia?". E eu me pergunto hoje: quem é que está lendo (ou seja, interpretando), com profundidade, qualquer coisa?

Finalizo afirmando que a alegação da mídia dominante de que ela é neutra, imparcial - ao contrário da mídia progressista, que estaria presa a um voluntarismo sectário, unilateral - também precisa ser sempre alvo de questionamento. Naturalmente, espera-se que a comunicação jornalística seja o mais direta possível e procure ser equilibrada. Entretanto,  TODOS temos vieses ideológicos. Todos temos uma concepção de quais rumos a sociedade deveria seguir e procuraremos demonstrar isso aos outros, até mesmo persuadi-los de que nossa visão é a mais congruente. É no mínimo ingenuidade achar que uma corporação de mídia se lança na esfera pública de forma desinteressada, portando-se com incontroversa isenção. Reitero: a mídia corporativa hegemônica tem lado - e não é do nosso lado, o dos garroteados pelos controladores do capital dentro do sistema econômico vigente. A mídia progressista, com seus erros, mas também com seus acertos, pelo menos não tenta escamotear seu posicionamento.

Atualmente, penso que os valores a serem buscados pelo jornalismo devem ser a  transparência  (em relação à perspectiva ideológica ou à convicção política que norteia a linha editorial, em relação à proveniência dos recursos financeiros que mantêm os profissionais e o próprio veículo, em relação à forma  como a informação foi obtida, desde que não prejudique o anonimato das fontes, quando for o caso)  e o  rigor na apuração,  mesmo que o resultado das investigações e levantamentos venha a contrariar as convicções do jornalista. Imparcialidade e neutralidade, nesse campo de atuação, não são possíveis e, a depender do fato jornalístico a ser publicizado,  chegam a ser inaceitáveis. 

________________ 

¹ Não tratei nesta postagem das empresas de mídia regionais. Não nos enganemos, porém. Várias delas, atuando há décadas, não diferem em nada das suas irmãs com alcance nacional, quando se trata de ajudar na sustentação da perspectiva conservadora pró-capital. No estado onde vivo, Minas Gerais, a rádio Itatiaia (mais antiga) e o jornal O Tempo (mais recente, fundado em 1996, por um milionário) são exemplos cristalinos disso.

BG de Hoje 

Cara, eu adorei - canção e vídeo: JACK WHITE,  Archbishop Harold Holmes

domingo, 16 de novembro de 2025

Falou e disse...

 "Não existe racismo de negros contra brancos ou, como gostam de chamar, o tão famigerado racismo reverso. Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para ser racistas. A população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui.

Para haver racismo reverso, precisaria ter existido navios branqueiros, escravização por mais de trezentos anos da população branca, negação de direitos a ela. Brancos são mortos por serem brancos? São seguidos por seguranças em lojas? Qual é a cor da maioria dos atores e apresentadores de TV? Dos diretores de novela? Da maioria dos universitários? Quem detém os meios de produção? Há uma hegemonia branca criada pelo racismo que confere privilégios sociais a um grupo em detrimento do outro.

[...]

Não se pode confundir racismo com preconceito e má educação. É errado xingar alguém, mas para haver racismo deve haver relação de poder, e a população negra não está no poder. Acreditar em racismo reverso é mais um modo de mascarar o racismo perverso com que vivemos. É a mesma coisa que acreditar em unicórnios, com o diferencial de que se está causando mal e perpetuando a desigualdade". *

* RIBEIRO, Djamila. Falar em racismo reverso é como acreditar em unicórnios. In:__________. Quem tem medo do feminismo negro?. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 41-43 

P.S.: No texto de onde o excerto acima foi extraído, a autora recomenda um vídeo do comediante Aamer Rahman no qual ele dá uma explicação humorística sobre como seria possível estabelecer o racismo reverso. Quando eu tinha um perfil no Facebook, vi na minha timeline esse trecho da apresentação de Rahman algumas vezes. Sempre vale a pena. 

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Poesia para o envelhecimento e a morte

Em seu voto no julgamento de Jair Bolsonaro e seus comparsas pelo conluio golpista, a ministra Cármen Lúcia citou trechos de Que país é este?,  provavelmente o poema mais conhecido de Affonso Romano de Sant'Anna, que veio a público há cerca de 45 anos (onde se pode ler que  "Este é um país de síndicos em geral,/ este é um país de cínicos em geral,/ este é um país de civis e generais" , versos não mencionados pela magistrada). A cobertura jornalística em torno da decisão do STF (considerada histórica por um bocado de gente) fez com que essa alusão ao escritor chegasse a pessoas não muito afeitas à literatura e que, especulo, nada conheciam dele. Quem sabe, talvez, surja entre novos leitores aqui e ali alguma curiosidade pelo autor, falecido no primeiro semestre de 2025.

Meu primeiro contato com a obra de Sant'Anna foi através de sua vertente ensaística e educativa (embora de vez em quando lesse uma ou outra de suas crônicas publicadas nos jornalões, em especial o  Estado de Minas ). Utilizei  Análise estrutural de romances brasileiros  principalmente para complementar um estudo (realizado junto com colegas de curso) sobre o  Vidas Secas  e lancei mão muitas vezes do livrinho Paródia, paráfrase & cia (daquela série Princípios, da Editora Ática, mão na roda para estudantes recém-ingressados em cursos universitários, como eu, lá no início da década de 1990). Mas até hoje - vergonha, vergonha! - não me dispus sequer a passar os olhos pela sua tese sobre Drummond (escrita nos anos 1960).

Já o primeiro poema de Affonso Romano que vi (num fanzine distribuído na faculdade, se não me engano) foi o seguinte¹:

O LEITOR E A POESIA

Poesia
       não é o que o autor nomeia,
       é o que o leitor incendeia.
       
      Não é o que o autor pavoneia,
      é o que o leitor colhe à colmeia.
      
      Não é o ouro na veia,
      é o que vem na bateia.
Poesia
      não é o que o autor dá na ceia,
      mas o que o leitor banqueteia.

Não que sejam versos extraordinários, mas naquela época a Estética da Recepção era uma proposição teórica que me interessava muito (na verdade, me interessa até hoje) e o teor deles, assim penso, vai ao encontro dessa corrente. Por isso, anotei-os num caderno e mantive-os na memória por muitos anos. Apesar disso, não sou nem de longe um cultor do trabalho poético de Sant'Anna.

A despeito de minha pouca frequentação, creio que posso apontar uma característica geral de seus poemas, possível de se verificar inclusive no texto acima: a fluidez. O fato de ter sido um cronista de jornal bastante produtivo tem muito a ver com isso. A mensagem direta e a linguagem próxima do cotidiano, tanto lexicalmente quanto no aspecto rítmico, marcam sua produção, sobretudo a partir dos anos 1980.

Em 2017, apareceu, pela Editora Rocco,  A vida é um escândalo, o último livro de versos. Como observou Miguel Sanches Neto², "seus poemas de agora renunciam a adornos líricos, acréscimos sonoros, jogos de linguagem, e inversões ou neologismos, para buscar o fluxo natural das palavras. O poeta não escreve; fala". A velhice, a inelutável passagem do tempo e a dissolução próxima aparecem em quase todas as composições ali reunidas. Um exemplo:

TODA MANHÃ

Toda manhã
(como se fosse numa batalha)
leio os jornais
e digo à minha mulher:
- Sabe quem morreu?
E digo um, às vezes mais, nomes
dos que se vão.
 
Assim
me despeço de escritores, pintores, jornalistas
diplomatas, parentes, políticos
 e até dos levemente conhecidos.
 
Um dia, noutra casa
- ecos dessa batalha -
alguém lendo os jornais, dirá:
- Sabe quem morreu?
 
E eu não estarei mais lá.

Não posso deixar de apontar que em  O lado esquerdo do meu peito,  conjunto de poemas lançado por Sant'Anna em 1992, encontramos na última das cinco seções em que se divide o volume ( Aprendizagem da morte ) composições percorrendo as mesmas temáticas, quando o autor ainda não atingira os 60 anos de idade. Reproduzo abaixo uma delas³, convidativa por sua musicalidade:

DE REPENTE, A MORTE
 
Digamos
que me restem 20/30 anos.
É pouco? Demais?
Os últimos 20/30 anos
passaram-me rápidos/
demorados
                  - fatais.
 
Volto do cemitério, onde deixei
de uma amiga, o que se diz
"restos mortais".
Volto para casa
meditativo, mudo
com algumas perdas a mais.
Há dois meses, eu e ela num grupo
combinávamos salvar esta cidade
e o mundo, aliás.
 
Semana próxima, prevejo, já se despede
outro amigo, que não sei se digo, que amo
ou amei.
 
Em 20/30 anos 
quantas mortes morrerei
na morte dos demais?
 
20/30 anos é muito pouco, meu Pai!
E, no entanto, pode ser em nove meses
quem sabe, daqui a pouco
enquanto leio os jornais.

A vida é um escândalo, por sua vez, foi lançado para marcar seus 80 anos, reunindo poemas compostos, em sua maioria, a partir dos 75: ao que parece, o poeta viu-se cada vez mais compelido a refletir sobre a morte. Acho oportuno incluir aqui uma observação feita por André Argolo : "O eu lírico da poesia de Affonso normalmente é Affonso mesmo. Fosse prosa e seria autoficção, beirando o ensaio ou vice-versa". Ou seja, quando em determinado poema nos deparamos com a pergunta "O que deve um homem de 75 anos/sentir, pensar?", o que vemos é a franqueza do autor "vencendo" a disputa contra a expressão artificiosa inerente ao discurso literário.

Leiamos mais um poema - aquele que abre o conjunto - de  A vida é um escândalo 

O QUE TE LEVA A PENSAR
 
O que te leva pensar
que teu livro é necessário
às bibliotecas do mundo?
 
As antigas
estão repletas de textos sem vida.
- Você não é um clássico.
 
Nas livrarias modernas
há tantas sensaborias
que ninguém vai te encontrar.
 
Eis a questão:
sossega teu ego.
O mundo não necessita de ti.
Tuas palavras
têm a concretude desnecessária
e solitária
 das pedras do Deserto de Atacama.

Eis o despojamento esperado de quem sabe que  não estará mais aqui  por muito mais tempo. A obra encontra-se feita e soma-se a imensidão de volumes produzidos desde os registros primeiros da literatura - sob essa perspectiva, quase inevitável não refletir sobre a insignificância. 

Mais um, para finalizarmos: 

ESTOU TENDO TEMPO
 
Estou tendo tempo
para desiludir-me.
Não tenho câncer
tenho memória
acompanho com nojo os jornais.
 
Olho as crianças que vão à escola
- elas vão sorrindo para o século XXI.
 
Não há nenhuma razão para crer
que somos melhores que as plantas.
 
Dizia Bartolomeu:
- a vida é um escândalo.

Envelhecer é desiludir-se (noutro poema deste mesmo livro, encontramos o verso "Conhecer é desamparar-se" ) e, se olharmos a fundo e desapaixonadamente para nós mesmos, reconheceremos que "não há nenhuma razão para crer/que somos melhores que as plantas"

Pelo que sei, a pessoa referida na última estrofe é Bartolomeu Campos de Queirós, escritor mineiro com criações geralmente classificadas como literatura infantojuvenil, falecido em 2012, conhecido pela prosa poética e narrativas memorialistas. Escândalo pode ser agitação, mas significa principalmente indignidade, acabrunhamento. Não posso afirmar que seja assim para todos, mas a certa altura do processo de envelhecimento, creio, não deve ser difícil constatar que a vida, a partir de determinado ponto, torna-se nada menos que um ultraje, embora, no caso de Sant'Anna, o poeta ainda consiguiu dizer: "O espanto me reedita"

_______________

¹ SANT'ANNA, Affonso Romano de. O leitor e a poesia. In: ___________. Os melhores poemas de Affonso Romano de Sant'Anna. 3 ed. São Paulo: Global, 1997. [Seleção de Donaldo Schüller]. p. 150.

² SANCHES NETO, Miguel. Dentro e fora do tempo. Rascunho. Curitiba, set. 2018. Disponível em <https://rascunho.com.br/colunistas/perto-dos-livros/dentro-e-fora-do-tempo/>. Acesso: 02/10/2025 

³ SANT'ANNA, Affonso Romano de. De repente, a morte. In: __________. O lado esquerdo do meu peito: (livro de aprendizagens). Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 179 

 ARGOLO, André. Caça de uma vida inteira. Rascunho. Curitiba, abr. 2024. Disponível em <https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/caca-de-uma-vida-inteira/>. Acesso em 02/10/2025

⁵ SANT'ANNA, Affonso Romano de. Noturno de Ipanema 1. In. __________. A vida é um escândalo. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. p. 43-46. 

BG de Hoje

É preciso ser sincero: não sou loucamente apaixonado por obras musicais que prescindem da voz - afinal, tendo um horizonte cultural bem limitado na infância e adolescência,  fui "educado" musicalmente através do rádio e da TV, veículos nos quais as composições exclusivamente instrumentais quase não encontram espaço de divulgação. Mas creio ter capacidade para valorizar aquilo que não figura entre meus hábitos, se valioso for, caso do som da NOMADE ORQUESTRA, cujo trabalho chegou a mim através do ótimo canal Som no sebo.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Chupar laranja, (tomar) aspirina, catar feijão


Voltei a trabalhar numa biblioteca escolar. Quase seis anos se passaram e me deparo, nesse retorno, com as mesmíssimas situações problemáticas que eu acreditava terem ficado para trás. Bem, pelo menos está mais fácil agora reaproximar-me da literatura infantil e infantojuvenil depois de um longo hiato. Uns dias atrás, fui percorrer as prateleiras de poesia e fiquei contente ao achar o livro  Dia brinquedo,  de Fernando Paixão (Ed. Abril, 2009, com ilustrações de Suppa). Numa oportunidade anterior, noutra escola pública, eu havia selecionado três poemas deste livro para apresentá-los (junto com outros, de poetas diferentes) a um conjunto de turmas, num minissarau. Naquela ocasião, a coisa saiu melhor do que o esperado, tendo em vista as dificuldades de se obter adesão e envolvimento nas ações ligadas à literatura, por incrível que pareça, dentro de determinadas unidades escolares.

Um dos poemas selecionados tinha sido este:

 

ENCONTRO DAS FRUTAS
 
Na fruteira nova
alta luz da tarde
as laranjas têm bunda
brilha o batom das maçãs.
 
Trinta e nove uvas
de mãozinhas dadas
dão boas risadas
da cara feia do abacaxi.

 

"Funciona" muito bem com vários estudantes do início do Fundamental, as imagens ocorrendo-lhes rapidamente, achando graça nos traseiros das laranjas e se perguntando como seria ter um rosto de abacaxi.

Há uma disponibilidade muito maior de temas e assuntos aos quais recorrer nos poemas endereçados às crianças do que nos outros, destinados aos leitores mais experimentados. Pode-se imaginar, por exemplo, um diálogo de amor entre um garfo e uma colher (como se vê nesse mesmo livro de Fernando Paixão citado acima) ou compor uma cena em que uma vaca entra num bar e pede refrigerante com canudinho (lembrei-me agora de um dos muitos textos engraçados do Sérgio Caparelli), sem se preocupar se isso vai ou não comprometer a imagem de poeta sério que muitos temem colocar em risco. E Fernando Paixão é um poeta sério, lido por adultos meticulosos, professor da USP e tal, mas que fez questão de colocar nas páginas centrais do seu  Dia Brinquedo :  "O poeta escreve poesia para ser criança todo dia".  

A menção de nádegas cítricas me fez lembrar de um poema bem fraquinho de Drummond ¹, do qual praticamente ninguém fala, mas que acho bem divertido, em sua peculiaridade :

 

CHUPAR LARANJA 
 
A laranja, prazer dourado.
A laranja, prazer redondo.
A laranja, prazer fechado.
A laranja, prazer de faca.
 
Ou canivete. Cada golpe
anuncia: já se aproxima
o íntimo prazer da laranja,
que se dá sem sacrifício.
 
A laranja não se espedace,
para mais intenso prazer.
A laranja fique redonda,
mesmo sem casca, esfera nívea.

Então corte rápido a lâmina
um dos polos; a mão aperte,
e a boca sorverá, sensual,
a líquida alma da laranja.
 
Quem foi que, anônimo, inventou
o prazer de chupar laranja
em forma global de mamucha?
Gerações antigas sorriem
neste mestrado de volúpia.

 

Chupar laranja  integra  Boitempo,  conjunto de poemas de teor memorialista, ligados à meninice e a adolescência, publicado originalmente em 1968. Assim como vários dos textos ali reunidos, seus versos derivam da evocação de um ato simples, ligado à vida doméstica.

Durante muitos anos, eventual leitor(a), principalmente na infância, fiz pouca questão da laranja. Fruta trivial, da mesma categoria da banana e do mamão - todas sem qualquer mirabolância. Hoje, envelhecido, praguejo se não encontro alguma para saborear depois de um bom almoço em casa, sendo justamente a sua modéstia e despojamento o que passou a me agradar.

Levei um certo tempo para desenvolver a habilidade de descascar laranjas (só de lembrar os "machucados" que, no passar da lâmina, deixei em muitas delas, fico irritado, inclusive por uma questão estética, pois alcançar a "esfera nívea", quase homogênea, deveria ser o objetivo). Agora, com orgulho, posso arvorar-me um perito e, apesar da invencível desorganização e do caos permanente em minha moradia, guardo em local especial há anos uma faca jeitosa exclusivamente para o descascamento (por isso assimilo tão bem o verso "A laranja, prazer de faca"  ). 

O eu lírico presume que o  corte em "dois polos"  é o modo padrão de consumo da fruta. Entretanto, vê-se bastante mundo afora o  corte em xis ou cruz   (sem necessidade de tirar a casca, aliás) e até a  separação por gomos  (procedimento supérfluo e trabalhoso, devo dizer), tal qual uma tangerina que perdeu a vocação. A  "forma global de mamucha"  não é, portanto, planetária (a propósito, que palavra deliciosa é  mamucha , indisfarçavelmente mineira e com os dois pés no arcaico!).

Não recriminaria quem achasse insólito a laranja ser o tópico central de um poema (que não visava o público infantil) elaborado por um dos bambas da nossa poesia. Estranhamento parecido talvez se repita numa outra composição cujo tema principal, desta vez, é um fármaco ²:

 

NUM MONUMENTO À ASPIRINA
 
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio dia. 
 
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.


O autor, desta feita, é João Cabral de Melo Neto e o texto em questão é bem mais conhecido do que o anterior. Faz parte de  A educação pela pedra,  lançado em 1966.

Uma nota biográfica vem a calhar. O poeta pernambucano sofreu por décadas com uma enxaqueca crônica. Em entrevista, afirmou ter consumido, durante muitos anos, cerca de seis comprimidos de aspirina diariamente. O medicamento tornou-se parte da sua vida - uma homenagem, portanto, não soaria despropositada. Em se tratando da poética cabralina, contudo, não devemos esquecer como o autor gostava de tornar matéria de poesia aquilo que ordinariamente não é considerado poético, evitando vocábulos por demais polissêmicos, preterindo a abstração e valorizando a concretude. Frente a um comprimido de aspirina, pouco pode fazer o subjetivismo.

Para encerrar essa mirada de poemas, busquemos mais um de Melo Neto ³,  célebre, também extraído de  A educação pela pedra :

 

CATAR FEIJÃO
 
Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
 
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que sempre entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá a frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.


A quem ocorreria a comparação entre o prosaico ato de catar feijão e o ato de escrever (no caso, escrever literatura)? Está demonstrado que eles  se limitam  (ou seja, fazem fronteira um com o outro, são próximos embora não idênticos). Quem escreve distingue, precisa separar e depois suprimir "o leve e oco", a "palha e eco" - ou, às vezes, incorporar conscientemente a  pedra, indesejada no preparo do feijão, mas bem-vinda na escrita,  se esta atende a necessidade do artista de desafiar o leitor. Para João Cabral, o poema é sobretudo resultado de um empenho do pensar: o derramamento da inspiração é secundário na hora de compô-lo.

Esse é um dos textos cabralinos em que a sonoridade combinada das palavras contribui imensamente para sua beleza: "jogam-se os grãos na água do alguidar" ;  "e jogar fora o leve e oco, palha e eco" "obstrui a leitura fluviante, flutual/ açula a atenção, isca-a com o risco".  Justamente num autor que,  aparentemente,  não dava muita bola para esses efeitos...

 

Na próxima postagem, continuarei no terreno do verso, falando do último livro de poemas de Affonso Romano de Sant'Anna que veio a público antes de seu falecimento.

_________________ 

¹ ANDRADE, Carlos Drummond de. Chupar laranja. In: ____________. Boitempo I. 4 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 78-79 

² MELO NETO, João Cabral de. Num monumento à aspirina. In: ___________. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 32

³ MELO NETO, João Cabral de. Catar feijão. In:___________. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 16-17  

BG de Hoje

Não tenho dados para confirmar, mas o Rio de Janeiro é provavelmente o município mais cantado do Brasil. É compreensível: além da antiguidade e da importância ao longo da história, muitos de seus moradores e visitantes frequentes amam de paixão aquele lugar (pessoalmente, tenho muita antipatia  pela  cidade maravilhosa  , além de muito pavor - opinião que não vale quase nada pois só estive por lá uma única vez,  num breve período). Rio 40 graus, composição de FERNANDA ABREU, FAUSTO FAWCETT e Laufer, lançada em 1992, é um breviário poético e musical da cidade como nenhum outro já feito, admiravelmente sintetizado na expressão "purgatório da beleza e do caos"

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

A apreciação do texto literário

 

Quando se usa a expressão  crítica literária  numa conversa em que filigranas conceituais podem ser deixadas de lado, qual é o entendimento desse termo? O que é, para que serve, como fazê-la?

Nessa conversa hipotética, pode-se dizer, sem rodeios, que crítica literária é a opinião de alguém, conhecedor(a) de literatura - assim se supõe -, sobre um (ou vários) texto(s) literário(s). 

Não acho uma definição das piores. É simples e compreensível. 

Prosseguindo o bate-papo, poder-se-ia acrescentar que essa opinião geralmente busca enfatizar o  valor  (isto é, supostas qualidades e méritos) do(s) texto(s) criticado(s) ou apontar seus supostos defeitos e falhas, se assim decidir a pessoa que assina/profere a crítica, pois, na maior parte das vezes, essa opinião é enunciada publicamente. Espera-se, portanto, que a crítica sirva como orientação, incentivo ou advertência para outros leitores.

Vamos complicar um pouquinho mais as coisas.

Por que deveríamos aceitar a legitimidade do indivíduo que faz a crítica? Por que a sua opinião deveria ser levada mais em conta do que outras? 

Como foi dito acima, presumem-se um conhecimento especializado ou um olhar de estudioso por parte da pessoa que faz a crítica. Atualmente, é muito provável que esse conhecimento ou esse olhar advenham de formações e cursos no âmbito universitário/acadêmico. Mas podem ser também o resultado da experiência acumulada em muitos e muitos anos de leituras particulares - um fecundo diletantismo, nesse caso. Bastante frequente, há ainda os escritores e as escritoras que, paralelamente a seu trabalho de criação artística, dedicam uma parte de seu tempo à análise de outras produções literárias (recentemente, para exemplificação, li um ensaio sensacional de Thomas Pynchon, publicado há cerca de 20 anos sobre o  1984,  de Orwell). De uma maneira ou de outra, não teríamos motivo para não atestar a competência da pessoa que faz a crítica nessas situações.

Por aí se percebe que há opiniões e opiniões, isto é, algumas delas seriam mais fundamentadas, teriam mais tutano, mais "sustança", do que outras.

Não faz muito tempo, estava lendo os textos de Umberto Eco reunidos em  A definição de arte.  Escritas entre o final dos anos 1950 e início da década ulterior, as reflexões, apesar do título do volume, voltam-se mais para a discussão de concepções estéticas do que para a formulação de um conceito cabal de arte (a noção de  obra aberta , fundamental dentro do pensamento do filósofo e escritor italiano, é uma dessas concepções). No ensaio  Notas sobre os limites da estética ¹, ele observa: 

[...] a ação do crítico (entendido aqui como intérprete qualificado, como fruidor por excelência) consiste precisa e substancialmente em narrar uma experiência de compreensão, a experiência de um encontro em que jogam as tendências pessoais e a realidade objetiva da obra compostos num ato vital de interrogativas e confrontos, de adesões instintivas e carregadas de valor heurístico e de repulsas que devem ser avaliadas e revistas à luz dos passos já dados e dos elementos objetivos que temos diante de nós".

A pessoa que faz a crítica, por mais intelectualmente equipada que esteja, não deixará (na verdade, não pode deixar) de lado sua subjetividade ( tendências pessoais ) durante o "diagnóstico": sua apreciação ampla, seu esforço de entendimento a partir do objeto examinado (poema, conto, romance, etc., pois estamos falando de crítica literária nesse caso) dependem tanto daquilo que está de fato contido nos textos (os elementos objetivos ) quanto de seu repertório cultural e de suas inclinações particulares (em grande parte das vezes, são essas últimas que impulsionam a análise).

Para Eco, "a obra de arte constitui um fato comunicativo que pede que seja  interpretado  e, portanto, integrado, completado por um aporte do fruidor, aporte este que varia conforme os indivíduos e as situações históricas e que é constantemente medido em referência àquele parâmetro imutável que é a obra enquanto objeto físico".  Cabe dizer aqui (como fora enfatizado pelo autor italiano noutras oportunidades, em escritos posteriores) que existem limites para o alcance do olhar do fruidor. Por vezes, alguns intérpretes atribuem certos significados e traços a uma obra que não encontram sustentação em sua base material (no caso da literatura, essa base é o texto em si) e elementos paratextuais (como a biografia do/a escritor/a ou a observação do período histórico em que a obra foi gestada, por exemplo), que poderiam ser invocados em apoio, não dão conta de corroborar aquilo que está a ser a atribuído. Nem toda interpretação é válida: leituras muito afastadas (às vezes inteiramente desvinculadas) do objeto examinado em nada auxiliam na melhor compreensão deste, obviamente.

Assentindo com o filósofo Enzo Paci, Umberto Eco vai afirmar que "um crítico não diz dogmaticamente 'isto é belo - isto é feio', mas conta (com rigor e acuidade) a sua experiência de interpretação, pedindo a concordância de todos, fruidores mais ou menos qualificados, que enfrentam o mesmo esforço de compreensão". Antes, ele já havia escrito que "diante de uma obra de arte, o mais importante é um processo de interpretação: aquilo que importa é uma compreensão crítica, não um juízo de valor expresso em termos dogmáticos e simplistas".

É de se notar que o próprio Eco não foi exatamente um crítico literário. No texto que fecha o livro -  Um balanço metodológico ² -, ele declara : "Antes de definir minha dívida para com a crítica anglo-saxônica, devo precisar alguns pontos. Antes de tudo, não desenvolvo uma atividade crítica no sentido corrente do termo: burocraticamente falando, pertenço ao  genus  dos filósofos e dedico-me à estética". Sendo um estudioso dos modelos estruturais das várias poéticas, reconhece, contudo, que os resultados de parte de seu trabalho "podem ser utilizados como contribuição à compreensão crítica de uma obra ou de um autor". Ao final desse ensaio, o autor registra uma importante argumentação a respeito da necessidade de evitar as apreciações de caráter taxativo sem deixar, contudo, de se estabelecer um posicionamento diante da obra: 

"Minha definição da arte, como forma na qual os valores (o  antes  que está na origem da obra e o  depois  ao qual se dirige a obra) só se resolvem em estrutura e se tornam importantes na medida em que essa estrutura tenha valores próprios, prevê também que uma obra de arte pode transmitir um universo de valores que julgo negativos. Mas essa ordem que assumiram na forma artística poderá, por um lado, ajudar-me a estabelecer relação com eles na base de uma simpatia e de uma compreensão mais profundas. Por outro lado, é possível que diante da obra eu compreenda os valores que ela comunica e que, ainda assim, não aceite. Nesse caso, posso discutir uma obra no plano político e moral e posso rejeitá-la, contestá-la, justamente porque é uma obra de arte. Isso significa que a Arte não é o Absoluto, mas uma forma de atividade que estabelece uma relação dialética com as outras atividades, outros interesses, outros valores. Diante dela, na medida em que reconheço a obra como válida, posso operar minhas escolhas, eleger meus mestres. A tarefa do crítico pode ser também e especialmente esta: um convite a escolher e a discernir. Cada um de nós, lendo uma obra literária, ainda que professe os critérios técnico-estruturais aqui expostos, deve e pode encontrar uma relação emocional e intelectual, descobrir uma visão do mundo e do homem. É justo que existam pessoas com a sensibilidade mais apurada que nos comuniquem as suas experiências de leitura que possam se tornar nossas também".

Começamos por uma definição simples do que seria a crítica literária ( a emissão de opiniões sobre obras literárias por parte de um conhededor ). Nessa altura da postagem, contudo, a partir das observações de Umberto Eco,  verificamos que o ofício consiste (ou pelo menos deveria consistir) em realizar, com o maior zelo possível, uma  interpretação  da criação artística que se está a observar, ultrapassando os comentários superficiais derivados de uma avaliação por demais terminante.

O tópico  literatura  sempre foi preponderante neste blog e nos outros dois que o antecederam. Mas nunca me dispus a escrever resenhas de livros, muito menos me atrevi a fazer crítica literária em nenhum deles. Assim sendo, que diabos acontece aqui no  Besta Quadrada  quando o assunto é um poema, um conto, um romance?

Antes de responder, gostaria de trazer para essa conversa um pequeno artigo de José Castello, publicado no jornal  Rascunho,  em agosto de 2011 ³ , cujo título é a indagação  A crítica literária existe?

Em seu texto, procurando designar a quem poderia caber a tarefa da crítica, Castello aponta uma distinção entre os teóricos da universidade, "que fazem percursos rigorosos, se submetem a leituras metódicas e se filiam a essa ou àquela nobre corrente de pensamento", e os resenhistas da imprensa (em sua maioria jornalistas de profissão), "igualmente respeitáveis, escrevendo desde a perspectiva da 'não-especialização'. Mais ensaístas do que teóricos", oferecendo textos mais informativos do que reflexivos. Ele não deixa de assinalar que alguns integrantes dos quadros acadêmicos por vezes escrevem na imprensa, em páginas eventualmente reservadas para tratar das produções literárias, mas os jornalistas, naturalmente, são a imensa maioria no setor. Diferentemente dos professores e pesquisadores universitários, os jornalistas (e ele faz parte desse segmento) "não temos compromisso algum com tradições teóricas, com sistemas, com conceitos. Escolhemos nossos livros estimulados pelas ofertas do mercado, pelas modas e ainda pelo apreço à surpresa; e não empurrados por esse ou aquele percurso intelectual".

O articulista se pergunta: no Brasil atual, teóricos da universidade e resenhistas da imprensa estão fazendo crítica literária? 

Sua resposta é não, pois, segundo ele (reconhecendo a vulnerabilidade de seu posicionamento), esse exercício deixou de existir.

Anteriormente em seu artigo, José Castello mencionara críticos importantes do passado (Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Sérgio Milliet, Wilson Martins) e desfecha: "Homens do século 20. Posso concluir: crítica literária, atividade do século 20 também". O trabalho de Antonio Candido também fora lembrado, como sendo o pioneiro no Brasil a levar a crítica literária, que era feita somente nos jornais (e, devido à ótica não-especializada do colunista do jornal, muitas vezes incorria num julgamento excessivamente apaixonado),  para dentro das salas das universidades. A partir da criação dos cursos específicos de Letras no país (aqui em Belo Horizonte, no ano de 1940, ainda dentro da Escola Livre de Filosofia e Ciências, mais tarde incorporada à instituição que se tornaria a UFMG), abre-se espaço para o surgimento de disciplinas afeitas à atuação do crítico.  Silviano Santiago, Leyla Perrone-Moisés, Antonio Carlos Secchin são alguns dos exemplos de grandes teóricos e críticos literários egressos das faculdades de Letras citados no artigo, o que não é suficiente para Castello  consentir  com a adequação da expressão  crítica literária  como um termo pertinente para se referir "ao trabalho severo"   desenvolvido dentro do meio universitário relacionado à literatura.

E quanto à atuação de jornalistas, como ele, que escrevem sobre o assunto? No seu caso, o articulista diz narrar suas "impressões, [falar] dos pensamentos que a leitura despertou, das associações que [esta] motivou, dos livros que [esta o] levou a reler",  dentro das colunas que publica (na época desse artigo, ele escrevia no hoje extinto caderno Prosa & Verso, do Globo ). O trabalho resultante seria um gênero textual "híbrido - que nem é resenha, nem é teoria, tampouco é crítica literária também"  (Castello se descreve como um cronista).

Ele especula que a expressão  crítica literária  é atualmente empregada mais para intimidar do que propiciar acolhimento. E que isso talvez "desperte mais suspeitas do que confiança".  Seu texto termina assim:

"Declarar-se crítico literário é, quem sabe, pretender uma autoridade que, hoje, ninguém mais tem. Se o crítico não é um juiz que aprova ou desaprova, se ele não é um especialista em aferição de qualidades, se não é um severo inspetor de 'boa escrita', como eu penso que ele não é, o que sobra para o crítico? Sobra ser um leitor. Um leitor comum, para quem a paixão dá sempre a última palavra".

Levanta-se uma boa questão nesse artigo, mas não consigo concordar com ele. 

Admito não me lembrar agora de ninguém, na grande imprensa empresarial atual, que se destaque como crítico ou como resenhista (deve-se mencionar também que suplementos, seções especiais ou áreas destacadas nos sites abordando produções literárias são uma raridade hoje em dia nos grandes jornais brasileiros). Por seu turno, o "trabalho severo" dos teóricos universitários não costuma alcançar grande receptividade fora do ambiente acadêmico (por uma série de fatores, sobre os quais talvez valha a pena discutirmos noutra oportunidade). E acho que José Castelo está correto ao recusar a figura do crítico como um avaliador implacável, cravando etiquetas a torto e a direito.

Entretanto, a meu ver, a crítica literária não deixou de existir. Além disso, não sei se dá para denominar uma parcela importante das pessoas que se dedicam a esta atividade como  leitores comuns.

Preciso também fazer agora uma distinção (parecida com a de Castello) entre o que vou chamar de  comentários genéricos (sobre literatura) e  abordagem universitária (da literatura)  :  a diferenciação é apenas para facilitar aquilo que pretendo expor na sequência. 

Por comentários genéricos, entendo as (poucas) notas ou matérias publicadas na imprensa hegemônica  (no formato impresso ou na internet), em sua maioria assinadas por jornalistas, tratando de livros lançados recentemente ou recuperando escritos publicados há mais tempo (incluindo obras canônicas), geralmente com o objetivo de enaltecer ou (com menor ocorrência) detratar o(s) volume(s) em questão ou seus(suas) autores(as). Importante dizer que a internet, como não poderia deixar de ser, facilita muito a disseminação desse tipo de avaliação, sem que esta necessite estar atrelada a um veículo jornalístico: muitos dos vídeos feitos pelos chamados  booktubers  e  booktokers  (sendo estes e estas jornalistas ou não) também são exemplos desses comentários genéricos. O público-alvo de opiniões assim está buscando um ponto de vista mais direto para orientar suas escolhas (às vezes, querendo saber simplesmente se um tal ou qual livro seria  bom  ou  ruim  de acordo com o comentarista) ou apenas manter-se informado. Parte significativa do público considera e se refere a esses comentários como um tipo de crítica literária (e gosta de saber qual a nota ou a quantidade de estrelas que determinado livro recebeu).

abordagem acadêmica, como não poderia deixar de ser, segue os ritos da produção textual universitária, com a terminologia e o rigor próprios dos especialistas. Nesse enfoque, as obras literárias costumam suscitar  pesquisas : por essa e por outras razões, espera-se maior profundidade neste tipo de análise. Esses estudos aparecem em artigos publicados em periódicos vinculados a universidades e outras instituições de ensino superior (naturalmente, a depender do fôlego da investigação, aparecem também na forma de dissertações extensas ou teses). Não estou certo se o público em geral entende os textos da abordagem acadêmica como uma forma de crítica literária, uma vez que os critérios qualitativos nesse enfoque são expressos de forma diversa dos comentários genéricos e são pouco familiares para a maioria das pessoas.

É claro que essa divisão não dá conta de todas as iniciativas circulantes por aí cujo assunto seja a literatura. Há, entre outras, as crônicas, como as do próprio José Castello; dicas sucintas, como as que aparecem na sessão Favoritos, do jornal  Nexo ; coletâneas de ensaios (muitos deles tendo como autores professores e pesquisadores universitários); além de matérias, resenhas e  avaliações publicadas em veículos inteiramente dedicados à produção literária ou ao mundo livresco, como o já citado  Rascunho  e a revista  Quatro Cinco Um.

Recuperando a definição lá do início da postagem, a noção de crítica literária como apenas a emissão de uma opinião/avaliação sobre obras de literatura com o objetivo de apontar o que seria  bom  e o que seria  ruim, a meu ver, ainda está disseminada entre muitas pessoas. Em complemento, diversos indivíduos - alguns mais habilitados e treinados do que outros - continuam a se dispor a emitir essas opiniões, enquanto outros dedicam-se à tarefa da interpretação de obras literárias, sem pretender serem taxativos na avaliação, mas ainda assim emitindo um ponto de vista a respeito delas. A meu ver, sobretudo no caso dos que se empenham em realizar a melhor interpretação de que sejam capazes, existem pessoas produzindo crítica literária, em especial por meio da abordagem acadêmica.

A professora da UnB Regina Dalgastagnè, pesquisadora inserida no meio acadêmico e que, até onde sei, não rejeita ser identificada também como crítica literária, publicou um artigo em 2018 que acrescentará muito à nossa discussão. Na introdução de  A crítica literária em periódicos brasileiros contemporâneos: uma aproximação inicial   (disponível aqui), a autora vale-se da noção de  campo,  tal como definida por Pierre Bourdieu ( "um espaço estruturado e hierarquizado de disputas entre agentes que interiorizam um conjunto de práticas e interesses" ), para aplicá-la na literatura. Se assim for, 

"então é preciso reconhecer que o que está em jogo nesse campo é a possibilidade de consagração, que assume a forma do reconhecimento pelos pares. Escritores ou editores podem ser sensíveis a incentivos de mercado ou a outras vantagens materiais, mas, enquanto integrantes do campo literário, o que os move é a busca desse reconhecimento, que não é necessariamente o do grande público de leitores comuns. É o reconhecimento oferecido pelos demais integrantes do campo literário".

Os professores e pesquisadores universitários da área da literatura ocupariam, dentro desse campo, uma  "posição singular",  segundo Dalcastagnè. Escreve ela: "Envolvidos também em disputas por reconhecimento entre si, nós somos agentes importantes na legitimação de autores/as e obras, o que fazemos ao incluí-los no corpus de nossas disciplinas, ao orientar dissertações e teses e também ao dedicar a eles nosso esforço de pesquisa, que resulta em trabalhos apresentados em eventos acadêmicos, em livros e, especialmente, em artigos publicados em periódicos científicos".

Se a intervenção dos professores e pesquisadores consegue alterar o modo como olhamos para o cânone vigente (resgatando ou rejeitando autores/as e obras do passado), a análise da academia tem ainda mais impacto em relação ao que se publica contemporaneamente. "Para obras que ainda não possuem um lastro de crítica e camadas de interpretação acumuladas, a atenção oferecida pelos acadêmicos representa um capital importante",  afirma a autora.

O levantamento apresentado no artigo extraiu seus dados e informações de textos críticos/analíticos, abordando especialmente criações literárias brasileiras contemporâneas (dos anos 1970 em diante), que constam em nove periódicos acadêmicos nacionais classificados entre os de maior qualidade. 

Destacando alguns dos resultados: 

  • Constatou-se que a maioria dos textos críticos foram elaborados por mulheres, embora o número de escritoras analisadas seja bem menor que o dos escritores (nas referências bibliográficas para fundamentação teórica desses mesmos textos críticos, mulheres também são menos citadas do que homens).
  • Em termos de gênero textual, o romance é muito mais discutido do que o conto, poemas ou a crônica. A pesquisadora observa que  "no campo literário e mesmo no mercado editorial brasileiro das últimas décadas, o romance é considerado o gênero literário por excelência, quase que exigindo dos autores/as sua adesão para que possam ser, efetivamente, chamados de escritores/as". Não se deixou de notar a escassez de estudos críticos sobre literatura infantojuvenil entre pesquisadores da área de Letras, lacuna essa talvez resultante de um certo desprezo/preconceito, por parte dos estudiosos e também dos editores dos periódicos, em relação aos livros destinados a crianças e adolescentes.
  •  A grande maioria dos trabalhos foca em um(a) único(a) autor(a) ou em um único livro, ou seja, há bem menos estudos comparativos (que se valem de pelo menos dois autores ou de dois livros diferentes) e panorâmicos (que cobrem vários autores e livros na mesma empreitada).
  •  Os estudos enfocando somente o objeto (somente o texto da obra literária abordada), sem a incorporação de perspectivas sociológicas, antropológicas, históricas, filosóficas, psicanalíticas, etc. são minoritários.

Em sua conclusão, Regina Dalcastagnè lembra que o levantamento pede a complementação de outros e observa que muitos pesquisadores iniciantes, ingressando agora na etapa da pós-graduação e egressos de esferas sociais diversas, podem estar apontando outros rumos para a abordagem acadêmica, algo que o levantamento não conseguiu captar, pois os periódicos quase nunca publicam quem ainda não atingiu o pico da carreira universitária. Ela ainda acrescenta: "Também o catálogo de livros acadêmicos da área deveria ser observado. No Brasil, embora a avaliação de cursos  e currículos supervalorize a publicação de artigos em revistas mais bem conceituadas, é comum que estudantes e pesquisadores busquem suas referências principais nos livros, entendidos como espaço de consolidação de ideias"

O que não falta, portanto, é gente séria e perita na matéria, principalmente mulheres, fazendo crítica literária. E posso dizer agora, sem qualquer receio, que ela não é realizada por leitoras e leitores comuns.

Não estou, veja bem, alegando que os(as) críticos(as) literários(as)  - entenda-se, aqueles(as) vinculados(as) ao mundo universitário - são seres dotados de uma sabedoria inquestionável, acessível e destinada exclusivamente a eles/elas, restando a nós, os leitores incultos e apalermados, o silêncio somente. Estou dizendo é que as pessoas dedicadas à crítica adquiriram uma capacidade de observação e interpelação dos textos (graças a seu empenho e prática como estudiosos especializados, ressalte-se) que a maioria dos outros apreciadores de literatura (este blogueiro incluso) não conseguiu alcançar, pelos mais variados motivos.

Voltando à pergunta não respondida parágrafos acima: se não sou crítico literário, nem resenhista,  que diabos acontece aqui no  Besta Quadrada  quando o assunto é um poema, um conto, um romance 

Tento comunicar impressões de leitura.  É isso o que acontece apenas. Nesse ponto, creio (guardadas as devidas proporções) não diferir muito de José Castello e outros (não me incomodaria, vale dizer, ser visto também como um comentarista genérico de literatura ) . Seria um atrevimento sem tamanho pretender que essas comunicações inconsistentes e erráticas publicadas aqui (mesmo pondo sinceridade e entusiasmo em boa parte delas) possam equiparar-se a elaborados pareceres críticos.

Ao comunicar essas impressões, não recebo qualquer retorno. É bem desanimador, para ser franco. Mas, apesar de tudo, me sinto melhor quando escrevo uma postagem sobre um texto literário que me afeta de alguma forma. Se leio algo, quero falar sobre isso. E como é dificílimo para mim encontrar interlocutores, lanço aqui no blog. 

Tem valido a pena, apesar de tudo.

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¹ ECO, Umberto. Notas sobre os limites da estética. In:___________. A definição de arte. Rio de Janeiro: Record, 2016. p. 49-62 [Tradução de Eliana Aguiar]

² ECO, Umberto. Um balanço metodológico. In: ____________. A definição de arte. Rio de Janeiro: Record, 2016. p. 266-272 [Tradução de Eliana Aguiar] 

³ CASTELLO, José. A crítica literária existe? Rascunho. Curitiba, ago. 2011. Disponível em <https://rascunho.com.br/colunistas/a-literatura-na-poltrona/a-critica-literaria-existe/>. Acesso em 11/08/2025. O artigo também fora publicado n'  O Globo,  jornal em que o autor era colunista.

DALCASTAGNÈ, Regina (2018). A crítica literária em periódicos brasileiros contemporâneos: uma aproximação inicial. Estudos De Literatura Brasileira Contemporânea, (54), 195–209. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/10.1590/2316-40185411>. Acesso em 15/08/2025

BG de Hoje

Não parece ser uma escolha das mais brilhantes pegar uma canção conhecidíssima e reapresentá-la. Para além das comparações com a original, talvez exista uma saturação junto ao público, sobretudo quando se trata de um dos hits de uma banda lendária (no caso, os BEATLES). Entretanto, quando ouvi essa performance  stripped-down  de Eleanor Rigby,  adorei. E o jeito de cantar de dodie casou muito bem com a canção.