"O empreendedorismo é uma forma mistificadora que imagina poder eliminar o desemprego, em uma sociedade que é incapaz de preservar trabalho digno com direitos. E, como essas novas modalidades de trabalho são deprimentes, a mistificação torna-se o remédio que só fará alimentar a doença".
Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Unicamp, em entrevista para o UOL (14/09/2019)
No ano passado, quatro acontecimentos, principalmente, serviram para solidificar ainda mais meu pessimismo.
Na esfera internacional, a continuidade do genocídio em Gaza. O massacre cruel dos palestinos sendo testemunhado pelo planeta inteiro e, pelo visto, nada conseguirá interrompê-lo. Seja qual for nosso caminho evolutivo, a humanidade, ao que parece, será sempre bestial.
As outras três ocorrências se deram aqui no Brasil mesmo.
Primeiramente, as acusações de assédio sexual contra o advogado e professor universitário Silvio Almeida. O ex-ministro do governo Lula, naturalmente, tem todo o direito à ampla defesa e, até onde sei, tudo ainda está na fase de inquérito (portanto, bem longe de uma condenação judicial), mas senti esse incidente como se fosse um murro na minha própria cara. Uma liderança negra, de esquerda (e em projeção), tendo, supostamente, conduta tão execrável - tal situação, sendo eu próprio um homem negro e de esquerda, me fez sentir um mal-estar como se tivesse sido pessoalmente ultrajado.
Depois veio a a publi do Átila Iamarino para a Shell. O irritante termo publi pode dar a entender que se trata de uma coisinha insignificante. E não é. Um cara que se destacou defendendo a ciência no combate à desinformação aceita dinheiro de uma petrolífera para... não informar apropriadamente, pois faz vista grossa para os danos ambientais causados pela indústria do petróleo (sendo a Shell uma das gigantes do setor), danos estes fartamente comprovados por - ora, vejam! - cientistas. Como disse o professor Alexandre Costa, da Universidade Estadual do Ceará, "o prestígio de Atila como divulgador científico — que ganhou projeção na pandemia de covid-19 — foi instrumentalizado pela petroquímica, que tem interesse em chegar a seu público". Tudo mundo tem contas pra pagar: OK, eu entendo isso. Quem está podendo dispensar um dinheiro a mais, não é mesmo? Mas, cáspita, a grana tinha que vir de uma corporação que está se lixando para as condições futuras da vida humana na Terra?
Por fim, a absorção do discurso empreendedorista pelo (então) candidato a prefeito de São Paulo, Guilherme Boulos. Sejamos francos: antes mesmo do início da disputa, quase todo mundo (inclusive colegas de partido e outros membros da coligação) sabia que seria quase impossível a vitória do deputado do PSOL, mesmo que ele até tivesse chegado a aparecer como líder das intenções de voto em algumas pesquisas. Portanto, era preciso aproveitar a campanha e apresentar um programa que desafiasse os demais, antagônico na real, colocando as cartas na mesa. O que vi da campanha de Boulos foi decepcionante: tentando descolar-se da pecha de radical (algo visto como defeito pela maioria do eleitorado, ainda mais num dos fulcros do conservadorismo brasileiro), apresentou-se insípido e sem fibra, apenas reagindo aos demais candidatos, principalmente o inqualificável Pablo Marçal, um dos propagandistas do empreendedorismo. Ter aceitado participar de uma live com Marçal, aliás, após toda a delinquência promovida pelo ex-coach-atual-não-sei-o-quê, foi de amargar, demonstrando, a propósito, como parte da esquerda encontra-se perdida no atual momento político, acuada em meio a tal "polarização" (uma assombração que ninguém se esforça em conceituar). A meu ver, a hora é de mais dissenso (portanto, de mais radicalidade na defesa de determinadas pautas e reivindicações) e menos contemporização (neste ponto, estou em concordância com Vladimir Safatle, Glauber Braga e outros). Porém, o objetivo dessa esquerda avessa a conflitos, ao que parece, passou a ser apenas ocupar cargos nas instituições de Estado, vencendo eleições ocasionalmente, mas abdicando de mobilizar e instrumentalizar a população para melhor compreender e enfrentar a exploração sistêmica do capitalismo.
Como ter ânimo?
Por ora, falemos do empreendedorismo
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O(a) eventual leitor(a) pode estar se perguntando: mas que mal há em começar um negócio por conta própria ou tornar-se um prestador de serviço via aplicativo?
Vou começar a apresentar na postagem de hoje o que a cantilena do empreendedorismo prefere manter abaixo da superfície.
Comecemos com uma definição dada por uma entidade de apoio aos empreendedores. Vou reproduzir aqui o que está no site do SEBRAE de Santa Catarina (encontrei assim que iniciei uma busca no Google):
"Empreendedorismo é a capacidade que uma pessoa tem de identificar problemas e oportunidades, desenvolver soluções e investir recursos na criação de algo positivo para a sociedade. Pode ser um negócio, um projeto ou mesmo um movimento que gere mudanças reais e impacto no cotidiano das pessoas.
Segundo o teórico Joseph Schumpeter, empreendedorismo está diretamente associado à inovação. Para Schumpeter, o empreendedor é o responsável pela realização de novas combinações.
A introdução de um novo bem, a criação de um método de produção ou comercialização e até a abertura de novos mercados, são algumas atividades comuns do empreendedorismo. Isso significa que 'a essência do empreendedorismo está na percepção e no aproveitamento das novas oportunidades no âmbito dos negócios' ".
Caramba! Isso é uma maravilha, não!?
Bem... Muita calma nessa hora.
A definição acima diz que se trata de uma capacidade - depreendo então não ser algo inerente a qualquer indivíduo, pois alguns - ou muitos - poderiam ser incapazes nesse terreno. Quem a tem, ainda de acordo com o trecho acima, desenvolve soluções e investe recursos em algo positivo para a sociedade. Fico me perguntando se os sujeitos que criaram o cigarro eletrônico, a plataforma Discord, cada uma das centenas de bets ou aqueles famigerados (e altamente poluentes) copos da Starbucks fizeram algo positivo para a sociedade, mas, no momento, quero me concentrar no tal investir recursos.
Não creio ser nenhum absurdo dizer que recursos (financeiros, sejamos diretos) não estão disponíveis para todos, a qualquer momento e em qualquer lugar. Essa circunstância, penso eu, é uma das que mais depõe contra o empreendedorismo.
Imaginemos duas situações:
➧ O indivíduo 1 decide criar uma loja virtual/tele-entrega de algum produto. Não tem capital próprio suficiente para iniciar o negócio, mas conta com o apoio da mãe, do pai, de um tio rico que decide colocar dinheiro na parada ou, graças às redes de contato (o tal networking ), nas quais se acham indivíduos endinheirados que ele conheceu devido às relações da família, consegue empréstimos sem muita dificuldade e em ótimas condições. A coisa demora um pouco a engrenar, mas nada que aflija esse indivíduo, pois ele tem uma fonte de renda segura (graças ao emprego na firma de um parente, que não exige pontualidade nem sequer assiduidade) até que o negócio comece a dar lucro. Caso não dê certo, porém, não é o fim do mundo: os prejuízos não resultam em perda de patrimônio e quando "o mercado se reaquecer", tenta-se uma outra ideia e recorrendo-se aos mesmos financiadores.
➧ O indivíduo 2 decide vender compotas artesanais: a esposa é ótima doceira e, como ele está desempregado, pode significar uma renda extra. O primeiro passo, pensa ele, é obter as embalagens. Que tal recolher aqueles vidros de palmito ou de azeitona usados? Não é simples: várias pessoas não fazem separação para reciclagem; além disso, é preciso considerar que os catadores também estão em busca desse tipo de material e são muito mais experientes nessa coleta. Decide então comprar as embalagens; além disso, há o custo do vasilhame para preparação, além das frutas, açúcar, etc. As solicitações de empréstimo nos bancos são recusadas (histórico de crédito ruim, alegam os gerentes). Não há membros da família ou conhecidos com dinheiro guardado a quem possa recorrer. A solução é vender o carro para levantar o capital: as crianças podem caminhar até a escola - é até mais saudável - e a esposa pode voltar a usar o transporte coletivo para chegar ao local onde ela trabalha (de 8h às 17h). À noite, a mulher, numa dupla jornada, adianta o que pode ser adiantado. Durante o dia, o marido finaliza as compotas. Sua tarefa principal, entretanto, é visitar o comércio local e tentar colocar seu produto nas prateleiras, além de procurar vender através do "Zap". Espalha cartazes e capricha no boca a boca. Passado um tempo, as vendas não são nem perto do esperado. Não consegue recuperar a grana do carro vendido. Endividou-se para fazer os cartazes e os rótulos das embalagens. Continua desempregado e sem uma fonte de renda regular.
O(a) eventual leitor(a) deve ter notado, espero, que, nas duas situações hipotéticas, não exemplifiquei com nenhuma invenção espetacular ou uma ideia inovadora pica das galáxias. O motivo? Não são ocorrências comuns: na imensa maioria das vezes, quem decide abrir um novo negócio tenta o mais corriqueiro: comércio/vendas ou prestação de serviço e, sobretudo no início da montagem do negócio, ter ou não recursos financeiros suficientes faz toda a diferença no sucesso da empreitada. Espero que os dois exemplos acima tenham ajudado a ilustrar bem esse ponto.
Joseph Schumpeter é citado na definição acima. Nunca li diretamente qualquer coisa escrita pelo autor e seria desonesto criticar só por criticar. Devo confessar, entretanto, que fico bastante tentado a descer a lenha nele, pois, até onde sei, na sua defesa calorosa do capitalismo (e do empreendedorismo), o economista austríaco não levava em conta a voracidade do poder concentrador das corporações e o aumento da desigualdade entre os vários agentes econômicos, inviabilizando qualquer competitividade justa no mercado (um cenário familiar a qualquer um de nós). Dessa forma, o "aproveitamento das novas oportunidades no âmbito dos negócios" é algo bem mais restritivo do que propagandeiam os arautos do empreendedorismo.
Penso ser inevitável, nessa altura, empregar a palavra ideologia (infelizmente, eventual leitor(a), não vai dar para realizar uma ampla conceituação, nem distinguir os usos do vocábulo - por limitação intelectual do blogueiro, sem dúvida, mas sobretudo para não tornar este texto ainda mais cansativo). É bom deixar claro, contudo, desde já, que não concebo o termo negativamente: ser ideológico não implica necessariamente algo prejudicial ou nocivo. Ideologias circulam pela sociedade, entram em disputa muitas vezes, defendidas ou atacadas, sobrevivem ou desaparecem, são adotadas por um grande número de pessoas ou ficam reduzidas a uns poucos grupos. Sou adepto de determinada(s) ideologia(s) ao mesmo tempo em que me oponho a outra(s).
Pois bem. O modo como o empreendedorismo vem sendo difundido e abordado apresenta, na maioria das ocasiões, características do discurso ideológico.
E esse discurso empreendedorista, a meu ver, precisa ser rebatido.
Continuarei a fazê-lo na próxima postagem, quando pretendo mostrar que toda essa conversa é pra nos convencer de que a única alternativa é o cada um por si.
BG de Hoje
É embaraçoso que nenhuma canção de BOB DYLAN tenha aparecido nessa seção em mais de 15 anos de blog. Tento me redimir hoje com Maggie's Farm, canção que ganhou uma revitalização com o recente filme Um completo desconhecido. Há, junto à crítica, uma interpretação, bastante plausível, de que a canção foi uma resposta do artista Dylan ao pessoal da indústria da música. Há outra, contudo, mais direta e mais do agrado da maioria dos ouvintes, penso eu, que vê nela um libelo contra a exploração do trabalho (é esse entendimento que tiveram, por exemplo, os caras do Rage Against The Machine ao gravarem aquela versão porrada no álbum Renegades).