Em 1998, com 26 anos de idade, eu ainda não entendia (ou não aceitava) que o precipício estava logo ali. Ignorando os indícios ou rejeitando os fatos, achava que certas ações individuais e determinadas peças dessa minha vidinha ordinária - o trabalho, um duvidoso percurso acadêmico, o envolvimento afetivo em que me encontrava, o próprio país - ainda podiam dar certo e, na próxima década ou na seguinte, seria possível partilhar alguma felicidade. Sim, eventual leitor(a), eu conseguia ser ainda mais palerma naquela época.
No início daquele ano, não parava de ouvir dois álbuns bastante diferentes um do outro: OK Computer, do Radiohead, e Sobrevivendo no inferno, dos Racionais MC's. Lembro de ter comprado os dois CDs na mesma loja e a vendedora estranhar um mesmo freguês levando pra casa rock dito "alternativo" e rap nacional.
Fiquei fascinado com Karma Police (o clipe da canção era muito exibido na antiga MTV), no entanto, demorei algum tempo para verdadeiramente apreciar o disco por inteiro. A banda britânica se empenhou em um trabalho não palatável, nãoradiofônico: a melhor das 12 faixas que o compõem, Paranoid Android, e a vinheta Fitter Happier são exemplos desse propósito. Não me tornei um fã ardoroso do Radiohead (para ser franco, acho Thom Yorke meio xarope), mas OK Computer é um dos 30 discos que levaria comigo se fosse forçado a viver em uma ilha deserta (fugindo, sei lá, de um apocalipse zumbi).
E quanto a Sobrevivendo no inferno ?
. . . . . . .
Já mencionei aqui no blog que não posso, nem de longe, dizer que sou um ouvinte habitual de rap. No início da idade adulta, eu só conhecia algumas poucas coisas do Public Enemy (embora não compreendesse patavina de inglês naquela época) e, quanto ao cenário nacional, sabia, claro, quem eram Thaíde e DJ Hum, ainda que nunca tivesse escutado nada deles. Hoje, penso ter deixado de ser um peixe totalmente fora d'água (ouço prazerosamente, entre artistas ainda ativos ou não, Câmbio Negro, Black Alien, Missy Elliot, A Tribe Called Quest, Emicida e Little Simz), mas o rap continua não sendo um gênero musical de minha predileção. Devo admitir, contudo, que aprendi a respeitá-lo bastante, após a ebulição provocada pelo álbum lançado pelos Racionais no final de 1997.
Antes, porém, é preciso recuar mais um pouco no tempo. Em 1994, eu ouvira pela primeira vez Fim de semana no parque. Essa faixa integra o Raio X (do)Brasil - disco que permitiu a Ice Blue, Mano Brown, Edi Rock e KL Jay meter o pé na porta do cenário musical brasileiro. Eles tinham certa popularidade em São Paulo, sendo, porém, pouco conhecidos no restante do país: isso passaria a mudar a partir desse álbum- que também apresenta Mano na porta do bar e O homem na estrada. Até então, só era possível ouvir gravações desse tipo na programação de estações como a Rádio Favela ¹ aqui de Belo Horizonte. Com o tempo, algumas outras emissoras locais arriscaram-se a tocá-las (sobretudo Fim de semana no parque ), reconhecendo o valor de Raio X(do) Brasil e o interesse do público pelas músicas, iniciados no rap ou não.
Quando Sobrevivendo no inferno foi lançado, portanto, a expectativa era muito, muito grande. E creio que não houve motivo para grandes decepções. Pode-se dizer que o CD foi também um sucesso comercial, conseguindo chegar a 500 mil cópias oficiais vendidas alguns meses após o lançamento, um número impressionante, sobretudo quando lembramos que não havia uma major por trás daqueles (então) quatro jovens negros sediados no Capão Redondo.
O disco é aberto com uma linda versão de Jorge de Capadócia, de Jorge Ben(jor) - compositor/cantor recorrentemente citado na obra do grupo paulistano. Numa lamentável falha do encarte, contudo, não há informação sobre quem está cantando (seguramente, não é nenhum dos membros dos Racionais). O sample usado foi extraído de Ike's Rap II, de Isaac Hayes (mundialmente conhecido, penso eu, graças a Glory Box, do Portishead). Pouco depois surge a impactante e agressiva Capítulo 4, versículo 3, aquela em que Mano Brown diz que sua "palavra vale um tiro" e ele "tem muita munição". O caráter de denúncia dos problemas sociais do país, particularmente os que afligem a população preta e pobre, marca indelével dos Racionais, aparece logo no início da faixa:
"60% dos jovens de periferia Sem antecedentes criminais já sofreram violência policial A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo"
( NOTA: Se serve de alento, pelo menos um desses dados mudou significativamente para melhor: hoje, passados 27 anos do lançamento do CD, em torno de 50% dos estudantes em universidades públicas são negros ou pardos, embora certos cursos ainda não contem com um número expressivo de indivíduos pertencentes a esse segmento )
A mensagem dos Racionais, endereçada principalmente para os jovens da periferia, "os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia", os que habitam "de Guaianases ao extremo sul de Santo Amaro", dessa vez estava alcançando ouvidos além da quebrada. O "mano que trampa debaixo do carro sujo de óleo/ ou que enquadra o carro forte na febre com o sangue nos olhos/ o mano que entrega envelope o dia inteiro no sol/ ou o que vende chocolate de farol em farol/ talvez o cara que defende o pobre no tribunal/ ou o que procura vida nova na condicional/ alguém no quarto de madeira, lendo à luz de vela/ ouvindo um rádio velho no fundo de uma cela" continuavam a escutá-los, fielmente; havia agora, contudo, um fato novo: as pessoas que costumamos chamar de formadores de opinião deixaram de lado o preconceito contra a "música de maloqueiro" e começaram a prestar atenção também.
Destacaria ainda no álbum outras três faixas: Qual mentira vou acreditar, uma composição que conta com um elemento raríssimo - o humor -, em se tratando de Racionais; Diário de um detento, cujo clipe ganhou muito destaque na MTV; e Tô ouvindo alguém me chamar, outra demonstração de como esses caras são bons em construir uma história (feito similar já tinha ocorrido na memorável O homem na estrada ). Para não ficar só no enaltecimento, um moralismo meio pueril encarquilhado nalguns versos (algo surpreendente, se pensarmos no teor subversivo da maioria dos outros), além de misoginia e machismo nada disfarçados (afinal, são os mesmos caras que compuseram Júri Racional e, claro, a infame Mulheres vulgares ), são os pontos negativos.
"[...]Sobrevivendo no inferno é uma pancada –
musical, cultural, histórica, política, poética. Para entender a força
dessa pancada, a filósofa Djamila Ribeiro usa uma imagem muito precisa: organizar o ódio. Os Racionais se tornaram e se mantiveram e cresceram como Racionais porque souberam organizar o ódio.
Não reagiram da forma autodestrutiva como o sistema previa: se armaram
de ritmo e poesia e partiram para o ataque – fúria e baile".
Em 2002, eles lançariam Nada como um dia após o outro dia, contendo, entre outras, Negro Drama e Vida Loka, mas já sem o efeito avassalador do trabalho precedente.
Se OK Computer serviu para reiterar minha convicção de que a arte é o único lugar restante para a redenção e o reconforto dos "iguais em desgraça", como cantou Cazuza, Sobrevivendo no inferno, mais do que isso, ajudou a enterrar de vez as ilusões que eu ainda mantinha naquele afastado ano de 1998.
O fato de uma instituição consagrada ao saber formal no seu nível mais elevado (de outra maneira, não chamaríamos de ensino superior) ter concedido tal distinção a um grupo originário da periferia pouco escolarizada, cuja trajetória artístico-profissional passou ao largo dos campi universitários, é muito bacana, claro, mas não é isso o que há de mais expressivo nesse acontecimento, em minha opinião. Vou tentar me fazer entender.
Todos estamos presenciando o uso maléfico da internet, principalmente nas mídias sociais. Por causa disso, esquece-se, por vezes, o quão revolucionária é essa tecnologia.
Questões urgentes, até então evitadas no amplo debate público - relatos de violência policial, evidenciação de práticas/discursos racistas e discriminatórios, crítica da ausência de representatividade de determinados grupos sociais, etc. - conseguiram ganhar repercussão dentro da sociedade graças à web e, forçoso admitir, às mídias sociais (pelo menos na fase inicial), deixando de se restringir apenas ao esforço de uns poucos ativistas espalhados aqui e ali ³.
Penso não ser possível separar a consolidação dos Racionais MC's desse contexto. Obviamente, nada aconteceria sem o talento e a agudeza do olhar deles, mas o que estou querendo dizer é: a internet, cujo acesso, no final dos anos 1990, começava a chegar progressivamente a mais indivíduos e entidades, foi de inestimável auxílio para que o recado do grupo alcançasse mais pessoas (até mesmo possibilitando a produção de milhares de cópias piratas de Sobrevivendo no inferno ). Mais manos e minas de diferentes lugares conseguiram construir pontes uns com os outros e, em muitas ocasiões, a música dos Racionais era um dos elementos mais importantes nessa aproximação.
A iniciativa de conferir o título de doutor Honoris Causa partiu dos docentes Jaqueline Lima Santos, Daniela Vieira dos Santos e Omar Ribeiro Thomaz, mas creio não ser equivocado dizer que a inserção desses artistas primeiramente nos aparelhos de som das periferias e posteriormente na discussão dos mais intelectualizados, cada vez mais sensibilizados para questões como as que mencionei acima, tudo isso graças a interconexão possibilitada pela web, acabaria tornando uma homenagem deste tipo quase uma questão de tempo. E fico feliz, sendo um cara negro, que a Unicamp realmente tenha dado esse passo.
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¹Vale a pena fazer aqui um breve comentário sobre a Rádio Favela. Nascida em 1981, com equipamentos improvisados e de forma clandestina dentro do Aglomerado da Serra em BH, a Rádio Favela durante décadas teve muita dificuldade para se manter, sobretudo pela ação da polícia. Hoje, legalizada desde o início dos anos 2000, a emissora é passou a ser conhecida como Autêntica FM e cada vez mais opta por seguir o padrão de apresentação das outras. Uma pena.
²MELO, Tarso de. Sobrevivendo no inferno: ainda e sempre. Cult, São Paulo, n.241, dez. 2018 Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/sobrevivendo-no-inferno-racionais/. Acesso em: 31/03/2025
³Nem tudo são flores, porém. Dessa atuação, originou-se o que eu chamo, tentando fazer piada, de extrema militância, formada por indivíduos cheios de certezas e declarações peremptórias que tornam o debate muitas vezes difícil e infecundo, apesar de se acharem sujeitos de mente aberta.
BG de Hoje
Ao citar os destaques de Sobrevivendo no inferno, dos RACIONAIS MC's , esqueci de incluir Fórmula mágica da paz. Gosto dela só por causa da batida hipnotizante construída sobre um sample retirado de Attitudes, do grupo de soul e funk The Bar-Kays.
Nos Agradecimentos do volume de contos Felicidade demais (Editora Companhia das Letras, 2010 - tradução de Alexandre Barbosa de Souza), Alice Munro revela, sem embaraço, que "soube sobre Sophia Kovalevsky enquanto pesquisava alguma coisa na Enciclopédia Britânica". Esclareço logo de cara que também nunca tinha ouvido falar dela até ler o texto de Munro. MasSofya Kovalevskaya (ou Sophia Kov(w)alesky) realizou, nos seus 41 anos de vida, feitos notáveis (dos quais eu, ignorante, não tinha notícia).
Nascida na Rússia, em 1850, Kovalevskaya foi, de acordo com a historiadora da ciência Ann Hibner Koblitz, "a mais conhecida mulher cientista antes do século XX". Obteve seu doutorado em 1874, sendo a primeira mulher a conseguir tal titulação num campo - a matemática - ocupado, durante muito tempo, quase que exclusivamente por figuras masculinas. Conquistou o prêmio Bordin, da Academia de Ciências francesa e, posteriormente, um importante cargo de professora na Universidade de Estocolmo. Sua principal contribuição foi na teoria das equações diferenciais parciais - vou fingir que sei do que se trata, eventual leitor(a) -, cuja principal amostra é o teorema de Cauchy-Kowalevsky.
Felicidade demais - o texto que dá nome ao volume de contos - remete-se aos últimos dias de vida de Sophia Kovalevsky, antes do agravamento da pneumonia que a matou. Na primeira vez em que escrevi sobre o livro que contém esse conto, não fiz nenhuma observação sobre essa narrativa por não percebê-la como "aparentada" às demais, talvez pelo fato de ser a única a ter como personagens seres que existiram no mundo real. Manteve-se nela, porém, a melhor característica dos enredos da escritora canadense - as magistrais transições entre o passado e o presente.
Gostaria de destacar duas passagens do texto de que estamos falando.
Na parte 4, após a obtenção do doutorado, tendo como mentor o alemão Karl Weierstrass, Sophia Kovalevsky decide retornar à sua terra de origem e deixa a matemática de lado por um longo tempo. "O aroma dos campos de feno e dos pinheirais", - escreve Munro -"os dourados dias de verão e as longas noites claras do norte da Rússia a inebriaram". A despeito de sua (até então, inédita) titulação acadêmica:
"Ela estava aprendendo, bastante tarde, o que muitas pessoas ao seu redor sabiam desde a infância - que a vida podia ser perfeitamente satisfatória sem grandes realizações. Podia ser transbordante de ocupações que não a exauriam até os ossos. Adquirindo o que precisava para uma vida confortavelmente plena, e então engajando-se numa vida social e pública cheia de entretenimento, evitaria que se entediasse ou ficasse ociosa, e ao final do dia se sentiria como se tivesse feito exatamente tudo o que agradava a todos. A agonia era desnecessária.
Exceto quanto a ganhar dinheiro".
A depender das circunstâncias, não é raro que a genialidade encontre muitos percalços em seu caminho de afirmação, ainda mais numa época (falo de Kovalevsky) em que o reconhecimento dos intelectos mais proeminentes continuava bastante restrito, principalmente em se tratando de mulheres. Por outro lado, a cômoda mediania é bastante acessível, com a vantagem de gerar satisfação sem exigir desagradáveis privações.
A busca por grandes realizações tem um quê de obsessivo. Nesse momento, não consigo evitar a lembrança daquele trecho de A ciência como vocação, de Max Weber, em que o pensador alemão defende que, no atual estágio do saber formal, um feito científico só será verdadeiramente significativo se decorrer de um conhecimento altamente especializado. Weber chega a dizer que o "destino da alma" do cientista depende da sua capacidade de concentrar-se em fenômenos e tópicos cada vez mais específicos. Para tanto, é preciso uma "paixão", "uma estranha embriaguez, ridícula para todos os que a contemplam de fora". E esse empenho pode exaurir até os ossos, como escreve Munro acima. A pergunta que fica é: após ser reconhecido, o indivíduo genial será capaz de se contentar com a mediocridade que cerca a maioria de nós?
Na outra passagem, na parte 2, Sophia encontra-se com Jules Poincaré em Paris. O matemático e físico francês relata uma pequena rusga que teve com Weierstrass a respeito de uma premiação, vencida por Poincaré, cuja mesa julgadora contava com o alemão. Kovalevsky coloca panos quentes e lembra da irrelevância do desentendimento:
" 'Afinal', ela disse a Jules, 'afinal você recebeu o prêmio e ele é seu para sempre'
Jules concordou, acrescentando que seu nome iria brilhar enquanto o de Weierstrass seria esquecido.
Todos nós seremos esquecidos, pensou Sophia, mas não disse, para não ferir a frágil suscetibilidade humana - especialmente dos jovens - quanto a isso".
Admito que tenho dificuldade para compreender essa sede de muitos por se fazer eterno ou, pelo menos, por ser lembrado muito tempo após a própria morte. O renome desejado por Poincaré de fato aconteceu, mas, afinal, que importância tem isso? Gosto de como Alice Munro revestiu a personagem de Kovalesky com humildade e modéstia.
Na próxima postagem, o assunto será a obra dos Racionais MC's
BG de Hoje
Enquanto a música continuar a ser parte da experiência humana, o tema do amor (ou da relação amorosa) será tema da maioria das canções populares. Fazer o quê? Nessa enxurrada do eu-te-amo, pouca coisa me deixa de ouvido atento. Just The Way You Are, escrita e lançada pelo BILLY JOEL em 1977-78, é uma das poucas composições, digamos... sentimentais... que ouço com satisfação. Ela tem uns componentes bem bregas (a tentativa de emular uma batida "latina", os trechos e o solo de saxofone...) que a transformam numa faixa saborosamente inofensiva, easy-listening. Também adoro a letra (que representa o tipo de convivência afetiva que boa parte de nós sempre sonhou ter, mas que é improvável de se encontrar no mundo real): [...] "I would not leave you in times of trouble/We never could have come this far,/I took the good times, I'll take the bad times/I'll take you just the way you are [...] "I don't want clever conversation/ I never want to work that hard /I just want someone that I can talk to/I want you just the way you are". Ah, e não deixa de ser irônico saber que Joel encontra-se atualmente no quarto casamento, com uma companheira 32 anos mais jovem do que ele...
Mais de uma vez fiz referência, em postagens anteriores, a meu pessimismo crônico.
Não sei precisar quando comecei a dar mais atenção ao pior das coisas; só posso dizer que, desde então, não consigo mais frear esse pendor "psico-existencial". De vez em quando me pergunto se a minha vida poderia ser um pouquinho menos fodida se eu fosse pelo menos um pouquinho mais otimista, mas isso é assunto para outro chope.
Dias atrás li um texto de Vilmar Debona, professor de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos, discorrendo sobre o pessimismo como uma postura anticonformista. Portanto, dá pra dizer, um pessimismo esperançoso, remetendo-me àquele dístico gramsciano, muito citado por aí - pessimismo da razão/otimismo da vontade -, embora o autor esteja ancorado noutros pensadores (Schopenhauer e Horkheimer).
Meu pessimismo é o da resignação, o da desesperança e, forçoso admitir, o da covardia. Ainda assim, concordo com muito do que escreve Debona neste pequeno artigo, reproduzido na íntegra abaixo:
O OTIMISMO ATROZ DE ELON MUSK *
Vilmar Debona
“Otimismo” é substantivo do latim optimum, “o melhor”. “Pessimismo”, como substantivo de pessimus, “o pior”, nasceu na condição de mero neologismo, mas bem poderia ser assumido como um neologismo de resistência.
Na seara filosófica ou sob as mais diversas camadas culturais que acabaram por dinamizá-lo, o pessimismo resiste à afirmação do que se pretende maravilhoso, sumo, Absoluto. Foi criado para contestar as teses do “melhor dos mundos”, com o que, de partida, denuncia quem fica para trás ou não cabe nesse suposto tão atrativo mundo. Não foi cunhado para registrar lamúrias e desesperanças. Pessimismo contesta a absolutização da razão, do saber, da ciência e da técnica, ao tempo em que aponta para as vítimas que o bem permite. Em termos críticos, não tem muito a dizer do futuro, mas pode ajudar a desentranhar o mal do presente, ao tempo em que atesta a impossibilidade de compensar o mal do passado.
Em meio a tantos crápulas com superpoderes, autoafirmados como absolutos, hoje, está Elon Musk com suas máquinas. Por acaso ou não, consciente ou não sobre a etimologia, sabem como se chama o robô humanoide de Musk? Optimus! Se o mundo humano revela o pessimus, é certo que parte disso se deve a humanos autoproclamados sem limites, como Elon Musk, agora secretário da “eficiência trumpista”.
Antes de se reduzir a “metade cheia do copo”, o otimismo afirma; antes de se reduzir a “metade vazia do copo”, o pessimismo nega. O otimismo afirma e positiva; o pessimismo nega e resiste ao positivado e aos positivadores. O otimismo domina, o pessimismo pode ajudar a libertar os dominados. Nesse sentido, Donald Trump, Elon Musk, Steve Bannon e Mark Zuckerberg são exemplos flagrantes de quem encarna o otimismo opressor. Suas vítimas não são apenas imigrantes, refugiados, clandestinos deportados acorrentados, LGBTQIA+, trabalhadores empobrecidos em geral. São todos os manipulados por suas máquinas de poderes mil, realizadoras do mais avançado progresso positivo. Todas essas vítimas, crentes de serem beneficiárias, encarnam e atualizam o pessimus como peças manipuláveis.
O otimismo, em especial o de Elon Musk, supõe a liberdade como positiva e irrestrita, e oprime em nome dela; o pessimismo assume a liberdade como negativa: só existe na medida em que nega a opressão. O novo-velho otimismo oficial domina o globo desde sempre, mas acabou de assumir o poder da nação – supostamente ainda – mais poderosa. Ele busca cegamente “a justiça”, tem certeza prévia do que é justiça, de quem é digno dela, e faz triagem para aplicá-la. O pessimismo é afeito às lutas por menos injustiças.
O otimismo sorri e faz um gesto nazista. O pessimismo não se afasta para fora da possibilidade do alcance do braço em gesto nazista, não lamenta nem chora. O pessimismo denuncia o motivo do gesto, o alcance do braço e a perversidade do riso.
O otimismo justifica a dor em nome de um “futuro melhor”; o pessimismo é especialista em dores do mundo, individuais ou sociais, e gostaria de garantir que nenhuma fosse justificada. O otimismo, não por acaso, faz par perfeito com o capitalismo – em suas mais variadas formas e fases. O pessimismo, se pudesse tanto, sufocaria a sanha incontrolável dos – velhos e novos – donos do capital. Secaria seus quereres insaciáveis, esgotaria suas inesgotáveis energias positivas, privatistas e acumuladoras; gostaria de derrotá-los em praça pública.
O otimismo, grandiloquente e falsamente incondicionado, coloniza Marte e instala Starlink na Floresta Amazônica. O pessimismo, esse pessimismo anticonformista, espelha a canção de Caetano Veloso, em que “um índio descerá de uma estrela colorida”, e “pousará no coração do Hemisfério Sul, na América”. O otimismo multibilionário de Elon Musk e Jeff Bezos garantirá o futuro uniforme, liso e plano, embrulhado em plástico bolha, controlado por Big Techs. O pessimismo da resistência, esperançoso sem pretender a vitória histórica, garantirá o passado da diversidade, com “a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”.
Elon Musk, com seu otimismo infalível e como membro do governo de Donald Trump, será um ótimo secretário de Eficiência Governamental. A ineficiência, comumente identificada com o pessimismo do common sense, associada à derrota, teria de ser, hoje, a mais desejada das incapacidades. A eficiência de Elon Musk e Donald Trump impõe a liberdade estratosférica de alguns indivíduos – a deles próprios. O pessimismo dos sufocados, voz do negativo da história, continuará acusando a farsa insana ao falar em nome dos inimigos, dos perseguidos e da morte coletiva em potencial.
Foi pensando a negatividade histórica que Max Horkheimer, o fundador da Teoria Crítica, afirmou algo em uma nota de 1956 que nos choca por sua atualidade: “Os espíritos negativos, negativistas, que veem e dizem apenas o que é horrível, apenas o que não deve ser, que têm medo de nominar Deus, o que esses espíritos, afinal, desejam? Que as coisas melhorem! Os positivistas agem em Seu nome, dizem sim ao mundo e ao Criador. Unem-se – não são contra os sacros valores. Os têm sempre na ponta da língua. Assim Hitler uniu os alemães, fazendo dos judeus a vítima designada; Nasser os árabes, designando Israel ao papel de vítima” (Notizen, 1956).
O que poderemos diante dos neonazis que se unem hoje e, com seus robôs absolutamente Optimus, unem a humanidade?
O otimismo de Elon Musk e dos multipoderosos das Big Techs é atroz. O pessimismo existe para denunciar, inclusive, suas atrocidades. Atenta a essa resistência pessimista, nos anos 1980 a filósofa brasileira Olgária Matos sintetizava a ideia ao investigar o Arthur Schopenhauer de Max Horkheimer: “O que une os homens é o desconsolo e o desamparo; o que os separa são os fanatismos e as divisões políticas”.
Pessimistas de todo o mundo, uni-vos!
* Texto publicado em 18/02/2025 no (ótimo) site A terra é redonda. Acesso feito na mesma data.
BG de Hoje
Até onde sei, John Cameron Fogerty é reputado, nos EUA, como um dos grandes songwriters daquele país, em todos os tempos. Concordo plenamente. Proud Mary, Who'll Stop the Rain, Fortunate Son, Have You Ever Seen The Rain, entre outras, tem um peso importante no cancioneiro norte-americano (e mundial) e serão lembradas por anos e anos como exemplos de música popular/pop/não erudita bem feita. Aprecio todas elas, claro. Há, entretanto, uma faixa do CREEDENCE CLEARWATER REVIVAL pela qual tenho grande apreço - Lodi, com sua atmosfera triste e o refrão de um verso só: "Oh, Lord, (I'm) stuck in Lodi again".
"I eventually chose freedom over unrealisable justice, after being detained for years and facing 175-year sentence with no effective remedy (...) I am not free today because the system worked. I am free today after years of incarceration because I pled guilty to journalism". * **
* [Tradução aproximada] "Acabei por escolher a liberdade em vez de uma irrealizável justiça, depois de ficar detido por anos e encarar [a possibilidade de] uma sentença de 175 anos sem um recurso efetivo (...) Não estou livre hoje porque o sistema funcionou. Estou livre hoje depois de anos de encarceramento porque me declarei culpado por fazer jornalismo"
** Fala de Julian ASSANGE em seu primeiro pronunciamento público após sair da prisão, reproduzida emmatéria do jornal The Guardian, publicada em 01/10/2024. Ainda fico pasmado com a quantidade de pessoas que não consegue ver o quão tirânicas são muitas das ações dos EUA pelo mundo afora, independentemente das alternâncias entre os chefes da Casa Branca. E é horripilante saber que o processo contra o fundador do WikiLeaks não está entre as piores.
Registrei uma vez aqui no blog - não estou bem certo onde - que só escrevo sobre livros dos quais gosto ou sobre aqueles que tiveram papel determinante na minha trajetória de leitor. Bem, pelo menos na maioria dos casos. Um critério bem mixuruca, obviamente, mas é assim que a banda toca no Besta Quadrada , o único lugar em que posso experimentar uma sensaçãozinha de autonomia. Há uma imensidão de textos a serem lidos, o tempo de que disponho não é infinito e, ano após ano, o meu entusiasmo pelas coisas em geral vem decrescendo. É preciso, pois, fazer escolhas.
Assim sendo, como foi difícil escrever a postagem atual!
A chegada de uma adaptação do Cem anos de solidão na Netflix me fez relê-lo algumas semanas atrás: não me lembrava da última vez que o fiz. Foi difícil, simplesmente, porque não gosto desse romance. Além disso, Gabriel García Márquez não é um escritor de minha particular estima; com exceção de Relato de um náufrago e, por razões diferentes, Crônica de uma morte anunciada, sua obra me interessa bem pouco.
Acontece, porém, que estamos falando do Cem anos de solidão , um livro não só amado por um montão de gente mundo afora, particularmente na América Latina e Caribe, mas também reputado como uma grandiosa façanha literária: Pablo Neruda, por exemplo, considerava-o a maior revelação em língua espanhola desde o Dom Quixote. Então, às favas com meu critério ordinário.
Para começar a conversa, devo dizer que achei a adaptação da Netflix muito boa e isso me surpreendeu. Parte das produções da empresa sempre me pareceram pasteurizadas demais e não foi o caso dessa, embora os roteiristas tenham recorrido aqui e ali a alguns recursos um tanto gastos da teledramaturgia - afinal, uma companhia de streaming tão grande nunca deixará a preocupação com os índices de audiência de lado e precisa atrair o maior número possível de espectadores.
Os principais méritos, a meu ver, estão nas movimentações de câmera e na concepção cenográfica tanto de Macondo quanto a da casa da família Buendía (acompanhar, a cada episódio, as mudanças na arquitetura do imaginário povoado/município e, sobretudo, na residência foi muito prazeroso). O trabalho dos atores também merece ser destacado: Susana Morales Cañas (que interpreta Úrsula Iguarán, enquanto jovem) e Janer Villarreal (que interpreta o Arcadio adulto, o filho de José Arcadio e Pilar Ternera) são meus preferidos. A narração em off - recurso geralmente não muito apreciado em trabalhos audiovisuais - ficou na medida certa.
Às vezes, porém, a comparação é incontornável. Penso, por exemplo, num dos momentos mais marcantes (pelo menos para mim) : a morte de José Arcadio - não o patriarca, mas seu filho primogênito de mesmo nome - e como a fatídica notícia chegou à sua mãe. Reproduzo o trecho abaixo ¹:
"Uma tarde de setembro, diante da ameaça de uma tempestade, [José Arcadio] voltou para casa mais cedo que de costume. Cumprimentou Rebeca na copa, amarrou os cachorros no quintal, pendurou os coelhos na cozinha, para salgá-los mais tarde, e foi para o quarto trocar de roupa. Rebeca declarou depois que quando o marido entrou no quarto, ela se fechou no banheiro e não percebeu nada. Era uma versão difícil de acreditar, mas não havia outra mais verossímil, e ninguém pôde conceber um motivo para que Rebeca assassinasse o homem que a tinha feito feliz. Este foi talvez o único mistério que nunca se esclareceu em Macondo. Logo que José Arcadio fechou a porta do quarto, o estampido de um tiro retumbou na casa. Um fio de sangue passou por debaixo da porta, atravessou a sala, saiu para a rua, seguiu reto pelas calçadas irregulares, desceu degraus e subiu pequenos muros, passou de largo pela Rua dos Turcos, dobrou uma esquina à direita e outra à esquerda, virou em ângulo reto diante da casa dos Buendía, passou por debaixo da porta fechada, atravessou a sala de visitas colado às paredes para não manchar os tapetes, continuou pela outra sala, evitou em curva aberta a mesa da copa, avançou pela varanda das begônias e passou sem ser visto por debaixo da cadeira de Amaranta, que dava uma aula de Aritmética a Aureliano José, e se meteu pela despensa e apareceu na cozinha onde Úrsula se dispunha a partir trinta e seis ovos para o pão.
- Ave Maria Puríssima! - gritou Úrsula.
Seguiu o fio de sangue em sentido contrário, e em busca da sua origem atravessou a despensa, passou pela varanda das begônias onde Aureliano José cantava que três e três são seis mais três são nove, e atravessou a copa e as salas e seguiu em linha reta pela rua, e em seguida dobrou à direita e depois à esquerda até a Rua dos Turcos, sem se lembrar que ainda trazia vestidos o avental de cozinha e as chinelas caseiras, e saiu para a praça e se meteu pela porta de uma casa onde não havia estado nunca, e empurrou a porta do quarto e quase se sufocou com o cheiro de pólvora queimada e encontrou José Arcadio caído de bruços no chão, sobre as polainas que acabava de tirar, e viu a fonte original do fio de sangue que já havia deixado de fluir do seu ouvido direito. Não encontraram nenhuma ferida no seu corpo nem puderam localizar a arma"
Estou convencido de que o percurso do fio de sangue não se tornará, visualmente falando, uma das sequências memoráveis da série; isso me desagradou um pouco, para ser sincero. Penso também que a pungência do relato escrito foi perdida, ainda que a voz em off tenha repetido quase textualmente essas frases do livro: "Era uma versão difícil de acreditar, mas não havia outra mais verossímil, e ninguém pôde conceber um motivo para que Rebeca assassinasse o homem que a tinha feito feliz. Este foi talvez o único mistério que nunca se esclareceu em Macondo". No episódio televisivo, Úrsula não gritou "Ave Maria Puríssima!" e, ao chegar à "a casa onde não havia estado nunca", encontrou o filho caído de costas e não de bruços.
OK, OK, pode ser apenas um descabido excesso de rigor ou um purismo artístico bobo da minha parte, mas, ao cabo, o que estou querendo ressaltar nada mais é do que um fenômeno conhecido por todos nós: a impossibilidade de um trabalho audiovisual reproduzir fielmente um trabalho literário.
A primeira temporada encerrou-se com a morte do fundador de Macondo (a chuva de flores amarelas ficou muito bonita) e o avanço da tropa de Aureliano para recuperar o controle da localidade. A segunda temporada provavelmente mostrará o crescimento e a queda da cidade, após a passagem da Companhia Bananeira (não dá para esquecer aquela célebre frase do Coronel Buendía: "Olhem a confusão em que nos metemos só por termos convidado um americano para comer banana" ). Curioso para ver como será o retrato da alucinada e insuportável carola Fernanda del Carpio e como mostrarão o paulatino crescimento da amargura e do rancor inesgotáveis de Amaranta.
Nada mais a fazer senão aguardar.
_______________
¹MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003 [Tradução de Eliane Zagury]. Essa é, atualmente, a única edição do livro que tenho em casa, para acesso rápido e direto.
BG de Hoje
ZIZI POSSI nunca fez uma aparição nesta seção do blog. Um vacilo sem tamanho da minha parte, pois é das minhas intérpretes favoritas. A cantora tem uma sólida formação musical: é pianista e cursou regência e composição na UFBA. Mas, besta quadrada que sou, só fui saber disso há poucos anos, assistindo sua participação no célebre Ensaio (TV Cultura) e no bom programa do Charles Gavin no Canal Brasil, O Som do Vinil (tudo disponível no Youtube). Poderia ter se tornado concertista ou seguido carreira acadêmica. Felizmente, preferiu não nos privar de sua lindíssima voz. Escolho É a vida que diz, do disco Asa Morena, o álbum que a fez conhecida nacionalmente. Gosto demais dessa canção, uma das muitas resultantes da parceria entre os irmãos Marina Lima e Antonio Cicero, falecido recentemente (um terceiro autor - Pisca - também assina a composição). A própria Marina a gravou, mas a versão de Zizi Possi é excelente.