Vale a pena nos questionarmos o quanto nos aferramos a consagrar o que já é consagrado.
No campo da Literatura (e das artes em geral), tal questionamento me parece ainda mais fundamental.
O ENTERRADO VIVO
(Utilizei a 41ª edição da Antologia poética de Drummond, publicada pela Editora Record em 1998, mas O enterrado vivo faz parte originalmente no livro Fazendeiro do ar, de 1954)
E qual é minha intenção ao discutir esse poema? Nada de mais. Por se tratar de um de meus prediletos, apenas desejo fazer com que você, eventual leitor(a), valorize-o também.
Realço dois elementos da composição: o ritmo e a seleção lexical.
Não há rimas soantes, praticamente. A métrica dos versos (com linhas de dez sílabas poéticas), o uso anafórico de "É sempre" (ou apenas "sempre") e a organização em tercetos sustentam o ritmo; os dois últimos recursos, aliás, foram simples e eficientíssimos. Quando lido em voz alta - e nunca é demais repetir, ler poemas em voz alta é fundamental para a percepção não só do ritmo e da musicalidade, mas, igualmente, do vigor e enlevo que as palavras podem provocar -, a cadência gera sentido tanto quanto aquilo que é expresso verbalmente: a desolação d'O enterrado vivo emana também de sua sonoridade. (NOTA 1: Vale mencionar que, junto a esse poema, no volume em que foi publicado pela primeira vez, está presente No exemplar de um velho livro, outro texto todo em tercetos. Há também sonetos - O quarto em desordem e A distribuição do tempo - , levando-me a supor que Drummond estava particularmente inclinado para as formas fixas e os escritos "mais arrumadinhos" naquele período)
As palavras selecionadas, quase todas de uso corrente no nosso vocabulário, ganham nova dimensão graças às combinações feitas pelo poeta. E mesmo as mais raras, "distrato" e "estampilha", não estão fora de lugar. É na segunda estrofe que a sonoridade e o ajustamento de palavras atingem seu ponto alto: "É sempre no meu peito aquela garra./É sempre no meu tédio aquele aceno./É sempre no meu sono aquela guerra".
É um texto poético magnífico. Chega a me exasperar, de tão bom.
Nesse momento, porém, acho oportuno mencionar um trecho de (raríssima) entrevista da poeta Maria do Carmo Ferreira, registrada em 2004 ¹ .
"Dois fatos me marcaram nessa época [anos 1960]: meu professor de Literatura Espanhola, José Carlos Lisboa, apesar de muito rigoroso e exigente, veio me cumprimentar pelo poema saído na revista Mural. Ruborizei de vergonha e até pedi desculpa, não sabendo onde esconder minha cara. E veio a primeira lição: 'Carminha, não há poetas perfeitos, quando muito há um ou outro poema perfeito'. Sempre penso nisso quando leio (ou releio) os meus poetas prediletos, onde encontro de tudo: verborragia, poemas circunstanciais, quando não excesso de rimas/ritmos/decalques, enfim, a gente está sempre separando o joio do trigo, mesmo nos que ficaram para sempre, nos clássicos da língua".
(NOTA 2: Caso o(a) eventual leitor(a) nunca tenha ouvido falar em Maria do Carmo Ferreira, sugiro essa reportagem de 2021 da revista piauí, relatando, entre outras coisas, as primeiras publicações da obra da escritora em livro, sendo ela já octogenária)
"Não há poetas perfeitos, quando muito há um ou outro poema perfeito". Isso vale também para Carlos Drummond de Andrade, que elaborou várias composições extraordinárias, mas não o tempo todo.
Por isso valorizo ainda mais O enterrado vivo, uma dessas criações notáveis. É perfeito, digo sem hesitação.
Um poema que me atinge fortemente, sendo eu alguém habitualmente interessado nos modos de se tentar expressar a amargura existencial.
"Sempre dentro de mim meu inimigo"... como isso é cortante...
______________________________
¹ MARQUES, Fabrício. Dez conversas - diálogos com poetas contemporâneos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2004.
Já discuti a questão poema/letra de música em algumas postagens do blog (por exemplo, aqui). Uma letra de música, antes de qualquer outra coisa, deve contribuir "para que a obra lítero-musical de que faz parte seja boa", como defende Antonio Cicero. Diferentemente do poema, que tem um fim em si mesmo e "se realiza quando é lido", a letra de música existe para acompanhar uma canção. Não é muito frequente, a meu ver, que uma letra de música mantenha sua vivacidade ao ser lida como um poema. Nada de mal nisso. Como dito antes, se ela contribui para uma boa canção, isso é o que importa. Quase nada, parceria da poeta ALICE RUIZ e ZECA BALEIRO seria uma espécie de "melhor dos dois mundos". Um lindo poema e uma amostra de como uma boa letra de canção popular deveria ser.
Nenhum comentário:
Postar um comentário