É, voltei a escrever.
Permaneço péssimo, mas não quero falar disso.
Há algumas semanas soube que o Greg News acabou - para usar um irritante termo da moda, foi "descontinuado" pela HBO.
Pena. Era uma atração televisiva muito acima da média.
Seu mérito não estava na originalidade - claramente tratava-se de uma versão nacional do Last Week Tonight (John Oliver pelo menos continua na grade da emissora norte-americana). A fusão de humor e jornalismo é algo que muitos já vêm fazendo há algum tempo, com bons resultados (destaco, além do citado John Oliver, o pioneiro Daily Show, que eu só comecei a acompanhar no período ancorado por Trevor Noah). O programa apresentado por Gregório Duvivier apareceu como um anteparo, na época em que tinha mesmo que aparecer, quando parte significativa da sociedade brasileira mergulhou de cabeça num reacionarismo obscurantista de viés religioso (particularmente evangélico), permitindo a ascensão de elementos da extrema direita e de gangsters da política, num período em que os fluxos de informação/comunicação já estavam irreversivelmente contaminados por aquilo que recebeu o nome genérico de fake news. Além disso, o artista carioca é um ótimo ator/comediante e a redação/produção do programa costumava acertar na maior parte das vezes ¹.
Na última temporada, um dos episódios que mais apreciei foi o intitulado Luxo. Assisti de novo outro dia. E me veio a vontade de abordá-lo aqui.
"Os bilionários de hoje em dia" - diz o apresentador em determinado momento do programa - "encontraram uma forma de dar a quase todo mundo a sensação de que o luxo pode ser acessível ou, no mínimo, emulável. Logo, é melhor tentar atingi-lo do que cortar a cabeça de quem tem acesso a ele".
O destino que os revolucionários franceses deram a membros da nobreza no final do século XVIII havia sido mencionado momentos antes. Por outro lado, como também mostrado no programa, os ultraprivilegiados da atualidade, ao que parece, não correm qualquer risco de serem guilhotinados. Muito pelo contrário.
Destaca-se então o megabilionário Bernard Arnault, um dos homens mais ricos do planeta. Mostra-se um trecho de entrevista em que o nababo afirma que seu maior objetivo é fazer com que a "desejabilidade" das marcas das quais é proprietário persista por décadas. Duvivier assinala que esta é "a característica central do mercado de luxo".
"Ele não está anunciando qualidade, nem dedicação do artesão, nem tradição,[nem]expressão artística. Ele está oferecendo desejabilidade. Ou seja, o que você compra num produto de luxo não é algo que você deseja. É algo que outras pessoas desejam, mas não podem ter".
Só uma parte ínfima (ínfima mesmo) dos seres humanos tem acesso a tudo que a grana pode comprar. A imensa maioria da população mundial dá duro para "só" conseguir botar comida na mesa e se abrigar dignamente sob um teto. Isso sem mencionar a outra enorme quantidade de pessoas que simplesmente não sabe se terá alimentação suficiente no outro dia.
Entretanto - e não me canso de ficar espantado com isso -, vejo vários homens e mulheres, pobres como eu (alguns até menos remediados), que julgam estar mais próximos dos ricaços, em relação ao status socioeconômico e ao "estilo de vida", do que de indivíduos ainda mais despossuídos. Ingenuamente, pensam ser apenas uma questão de esforço pessoal: basta trabalharem e se dedicarem muito que um dia estarão com a burra cheia, como se dizia em priscas eras, quando é muito mais provável testemunharem um processo de empobrecimento individual e familiar.
Uma dupla de alemães barbudos do século XIX formulou num de seus escritos algo mais ou menos assim: as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes dentro da sociedade com um todo. Este postulado marxiano (ou marxista, nunca sei direito como usar esses dois adjetivos) ajuda a explicar por que os verdadeiros controladores do capital (ou seja, grandes proprietários dos meios de produção de bens e serviços ou, como é cada vez mais preponderante desde o final do século XX, grandes especuladores das bolsas de valores, banqueiros, a cúpula dos fundos de investimento e outros rentistas de mesmo calibre) têm seus princípios e interesses defendidos por tantas pessoas que são invariavelmente prejudicadas quando estes princípios e interesses prevalecem (e que nunca, NUNCA, chegarão nem perto de entrar no clube desses verdadeiros controladores do capital).
Como não poderia deixar de ser, as mídias (redes) sociais e seus influencers têm um destacado papel nisso tudo, contribuindo para nos adestrar a "admirar jato [particular, feito para transportar uns poucos ricaços com um custo ambiental pesado] como se fosse símbolo de sucesso, e não de desprezo pelo resto da humanidade".
Voltemos a Bernard Arnault.
Uma pessoa comum, com renda pouco significativa, muito dificilmente poderá comprar um colar de ouro branco e diamantes da Bulgari ou uma bolsa Louis Vuitton - duas marcas de propriedade do bilionário francês. Mas talvez consiga adquirir um perfume mais em conta da Sephora - outra marca de Arnault - para fazer inveja naquele parente que veio fazer uma visita. O consumo conspícuo (ou pelo menos uma microrrepresentação dele) parece agora estar atravessando todas as classes sociais. Os direitos trabalhistas estão sendo pulverizados, a instabilidade e a precariedade de grande parte das ocupações remuneradas hoje existentes são gritantes, poucos trabalhadores conseguem adquirir um imóvel próprio, mas é possível fingir ser bem sucedido com um frasquinho Christian Dior no armário. "Quando a ilusão de luxo é democratizada, a gente perde a capacidade de odiar o luxo obsceno de verdade", bem observa Duvivier.
É tarefa das mais árduas (e arriscadas) desmontar a armadilha ideológica do capitalismo, armadilha esta que faz os indivíduos subjugados pelo poder econômico ficarem ao lado daqueles que os estão subjugando.
Há alguns anos, li um artigo do sociólogo Michael Löwy, disponível no Blog da Editora Boitempo ² , intitulado O capitalismo como religião. Trata-se de comentários feitos a partir de várias anotações reunidas, sob o mesmo título do artigo, em algumas páginas até então inéditas de Walter Benjamin.
Em suas observações, o pensador alemão não perde de vista o célebre A ética protestante e o espírito do capitalismo, publicado por Max Weber em 1904/05: "demonstrar a estrutura religiosa do capitalismo - isto é, demonstrar que ele é não somente uma formação condicionada pela religião, como pensa Weber, mas um fenômeno essencialmente religioso - nos levará ainda hoje pelos meandros de uma polêmica universal desmedida".
A estrutura religiosa do capitalismo, de acordo com Benjamin, fundamenta-se no culto. O culto é permanente. O culto produz culpa.
"Portanto" - escreve Löwy -, "as práticas utilitárias do capitalismo - investimento do capital, especulações, operações financeiras, manobras bolsistas, compra e venda de mercadorias - são equivalentes a um culto religioso. O capitalismo não exige a adesão a um credo, a uma doutrina ou a uma 'teologia', o que conta são as ações, que representam, por sua dinâmica social, práticas cultuais".
Qual seria o objeto ou a entidade a se adorar nesse culto? O dinheiro seria a resposta mais evidente (e o articulista aponta uma citação que talvez viesse a ser empregada por Benjamin em sua versão final do texto, na qual há a comparação entre o dinheiro e a figura divina). Mas este blogueiro prefere indicar o Mercado, esse termo que a imprensa corporativa hegemônica usa e abusa para criticar determinadas posições que governantes podem tomar mas que desagradariam a classe dominante: "o mercado reagiu mal à declaração do presidente"; "a fala da ministra assustou o mercado". Essas mesmas empresas de mídia, para tentar gerar um clima de otimismo, às vezes também soltam frases do tipo "o mercado está animado com os recentes índices da bolsa" ou "o governo deixou o mercado satisfeito com os cortes no orçamento", como se isso significasse um grande benefício para a maioria da população e não mais oportunidades de enriquecimento para grupos bem restritos.
Divindade absoluta e infalível, há um temor, disseminado em toda a sociedade, dos humores do Mercado...
Dissemos acima que o culto também é permanente. Michael Löwy comenta:
"Sem descanso, sem trégua e sem piedade: a ideia de Weber é retomada por Benjamin, quase literalmente [...]. Portanto, na religião capitalista, cada dia vê a mobilização da 'pompa sagrada', isto é, os rituais na bolsa ou na fábrica, enquanto os adoradores seguem, com angústia e uma 'extrema tensão', a subida ou a descida das cotações das ações'. [...] As práticas capitalistas não conhecem pausa, elas dominam a vida dos indivíduos da manhã à noite, da primavera ao inverno, do berço ao túmulo. Como bem observa Burkhardt Lindner, o fragmento [escrito por Walter Benjamin] empresta de Weber o conceito do capitalismo como sistema dinâmico, em expansão global, impossível de deter e do qual não podemos escapar".
Por fim, a culpa. Aqui não há expiação: é preciso fazer a culpa "entrar à força na consciência". Vale uma breve digressão semântica (que está no artigo de Löwy).
Em alemão, a palavra schuld pode significar tanto "dívida" quanto "culpa".
"Benjamin evoca, nesse contexto o que chama de 'ambiguidade da palavra Schuld' [...]. Segundo Burkhard Lindner, a perspectiva histórica do fragmento baseia-se na premissa de que não podemos separar, no sistema da religião capitalista, a 'culpa mítica' da dívida econômica.
Encontramos em Max Weber dois raciocínios análogos, que também jogam com os dois sentidos de 'dever': para o burguês puritano, 'o que consagramos a fins 'pessoais' é 'roubado' do serviço à glória de Deus'; tornamo-nos assim ao mesmo tempo culpados e 'endividados' em relação à Deus. 'A ideia de que o homem tem 'deveres' para com as posses que lhe foram confiadas e às quais ele está subordinado como um intendente devotado (...) pesa sobre sua vida com todo o seu peso gélido. Quanto mais aumentam as posses, mais pesado torna-se o sentimento de responsabilidade (...) que o obriga, para a glória de Deus (...) a aumentá-las por meio de um trabalho sem descanso'. A expressão de Benjamin 'fazer a culpa entrar à força na consciência' corresponde bem às práticas puritanas/capitalistas analisadas por Weber".
Sob a ótica capitalista, os pobres são os únicos culpados por sua situação difícil (não se esforçaram o suficiente, não sabem economizar ou investir, etc.). A vontade de Deus determina o lugar de cada um, do mesmo modo que a vontade do mercado. O resultado desse processo de culpabilização é o desespero.
"De Weber a Benjamin nos encontramos em um mesmo campo semântico, que descreve a lógica impiedosa do sistema capitalista. Mas por que ele é produtor de desespero?
Sendo a 'culpa' dos humanos, seu endividamento para com o capital, perpétuo e crescente, nenhuma esperança de expiação é permitida. O capitalista deve constantemente aumentar e ampliar seu capital, sob pena de desaparecer diante de seus concorrentes, e o pobre deve para pagar suas dívidas.
Segundo a religião do capital, a única salvação reside na intensificação do sistema, na expansão capitalista, no acúmulo de mercadorias, mas isso só faz agravar o desespero. É o que parece sugerir Benjamin com a fórmula que faz do desespero um estado religioso do mundo 'do qual se deveria esperar a salvação'".
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A concentração de renda é um fenômeno inegável. As indecentes disparidades entre os mais ricos e os mais pobres não são difíceis de se constatar. Poucos milhares injetando rios de dinheiro nas coisas mais fúteis e supérfluas enquanto milhões mal conseguem sobreviver com um mínimo de dignidade.
Mas por que, a meu ver, há tão pouca indignação com tal estado de coisas? Pior, por que não vemos grandes movimentos de massa cheios de raiva - sim, raiva - contra essa desigualdade nojenta? Por que a maior parte de nós adotou a inércia como comportamento padrão em relação às mudanças sociais que deveriam acontecer?
A sede por ostentação - que parece estar atingindo a todos, seja o bilionário que não trabalha, seja o assalariado que precisa se virar para manter o cartão de crédito em dia - e a concepção quase religiosa do capitalismo que perpassa a sociedade (e sabe-se como é difícil contestar e vencer uma religião) talvez sejam bons pontos de partida para entender essa inércia.
Vou tentar me aprofundar nessas questões assim que for possível e produzir um outro texto.
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Creio que o(a) eventual leitor(a) tomou conhecimento da gravíssima colisão, ocorrida em 31 de março deste ano, que resultou na morte de um motorista de aplicativo em São Paulo, após seu carro ser atingido violentamente por outro veículo, um Porsche (cujo valor ultrapassava um milhão de reais). Requereu-se a prisão preventiva do condutor que dirigia o Porsche, mas a Justiça de São Paulo negou a requisição (pelo menos até a data em que esta postagem foi publicada). O cara segue em liberdade, sem qualquer aborrecimento e, sabendo como são as coisas nesse fosso de desigualdade chamado Brasil, temo que ele não passará nem um dia na cadeia.
O jornalista Leonardo Sakamoto escreveu no UOL um excelente artigo sobre esse caso: Com assassinato e fuga, Porsche vira licença para rico matar em São Paulo.
Escreve Sakamoto: "O caso se desenha como o puro suco de Brasil. Imagine se ao invés de um herdeiro dirigindo um Porsche fosse um rapaz pobre, negro retinto, em um glorioso Fiat Uno que matasse alguém tirando um racha no Capão Redondo? Se a mãe do mancebo aparecesse e dissesse que iria levar o filho para botar um curativo [como fez a mãe do playboy do Porsche] seria fuzilada pelos agentes de segurança só com o olhar.
[...]
Sim, a tradicional carteirada foi substituída pela ostentação de riqueza".
Não existe enraizamento do conceito de cidadania. Não existe a aceitação e o respeito ao preceito de que todos são iguais perante à lei.
"[...] a desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres.
Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando a violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento que vivemos hoje.
A desigualdade social, que seria motivo de vergonha em qualquer lugar civilizado, aqui é razão de orgulho. O importante para uma parte da população, tanto a que está no topo quanto a que sonha em estar lá, não é reduzir a diferença, mas garantir que ela seja devidamente glamourizada e a ascenção social, mitificada. Assim o indivíduo passa a não desejar justiça social coletiva, mas um lugar ao sol para si mesmo.
Ou seja, o desejo não é um país em que os donos de Porsche obedecem às mesmas regras que os donos de Uno. O desejo é ter um Porsche".
Mais tarde vou encher a cara e tentar dormir o máximo que conseguir.
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¹ Como escrevi acima, o grupo de redatores/produtores fazia um ótimo trabalho, mas não acertava sempre. Pisaram na bola, por exemplo, no episódio que tinha como tema central a psicanálise e noutro, intitulado Filhos. Talvez escreva sobre isso noutra oportunidade.
² LÖWY, Michael. O capitalismo como religião. Blog da Boitempo, São Paulo, 8 de ago. de 2013. Disponível em <https://blogdaboitempo.com.br/2013/08/08/o-capitalismo-como-religiao/>. Acesso em 06/03/2024
BG de Hoje
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