sexta-feira, 29 de maio de 2020

Não vejo saída


[Postagem atualizada em 07/06/2020]

Você tem o hábito de utilizar um objeto (smartphone, notebook, ou mesmo uma peça de vestuário) até que ele esteja realmente gasto, sem mais condições de uso, evitando comprar outro similar, novo em folha, assim que arruma uma grana? Parou de consumir ou pelo menos consome menos carne em razão dos danos ambientais decorrentes da criação de animais para abate, além da crueldade inerente a esse ato? Recicla o seu lixo doméstico? Você procura andar a pé ou usar o transporte coletivo para ajudar a diminuir a poluição resultante do uso massivo dos meios de transporte particulares movidos a combustível fóssil? Nas eleições, você costuma levar em conta as propostas ecológicas apresentadas por seus(suas) candidatos(as) - e se praticamente nenhuma é apresentada, você se preocupa e toma alguma atitude? Faz parte ou tem interesse em participar de alguma organização voltada para a proteção do meio ambiente e para a promoção do consumo responsável?

Se a sua resposta para a maioria dessas perguntas é não, infelizmente somos parecidos (e, no meu caso, receio que o fato de eu andar a pé e usar o transporte coletivo tem mais a ver com a falta de dinheiro para comprar e manter um automóvel do que qualquer outra coisa ¹).

Ainda assim, mesmo não fazendo porra nenhuma pela saúde da Terra, é preciso muita, muita velhacaria, burrice ou um estado mental de negação patológico para não reconhecer que o planeta está fodido, ambientalmente falando (bem, também acho que está fodido, social e economicamente falando, mas como pretendo focar em determinadas questões hoje, deixarei esse reparo para outra oportunidade).

Há poucos dias, terminei a leitura do (essencial) livro A história das coisas ², elaborado pela norte-americana Annie Leonard (com o auxílio da escritora Ariane Conrad). A publicação faz parte do projeto The Story Of Stuff, que, por sua vez, é um desdobramento do famoso vídeo de mesmo nome (pode ser encontrado no site do projeto, mas há versões legendadas e até dubladas em português disponíveis no Youtube). Apesar de todos os problemas e do cenário alarmante, o livro é esperançoso. Todavia, este blogueiro, pessimista crônico como já deve saber o(a) eventual leitor(a), saiu da leitura ainda mais
convicto da calamidade atual e futura.

A história das coisas, basicamente, descreve os cinco estágios da economia - extração, produção, distribuição, consumo e descarte -, salientando os danos e impactos (na natureza, na sociedade e na saúde pública) decorrentes do processo de obtenção de materiais e fabricação de objetos. Ao seu conhecimento de pesquisadora e cientista ambiental, Annie Leonard adicionou a experiência e os relatos de situações vividas nos muitos anos de ativismo dentro de entidades como o Greenpeace e a Gaia.

Comecei a postagem com perguntas relacionadas a condutas pessoais. Muito embora transformações no comportamento individual sejam bem-vindas, o buraco é muito mais embaixo quando se trata da problemática ecológica planetária. Como escreve a autora no epílogo de seu livro:

"Para viver dentro dos limites do planeta, a mudança precisa ser grande. Ela exige que governo, bancos, sindicatos, mídia, escolas, corporações abracem a causa. Não basta seguir livros com 'dez coisas fáceis que você pode fazer para salvar o planeta'. Michael Maniates, professor de ciência política e ciência ambiental do Allegheny College e especialista em assuntos de consumo, aponta as falhas na abordagem das 'dez coisas fáceis': (1) nossa maior fonte de poder como indivíduos está em nosso papel de consumidores; (2) por natureza, nós, humanos, não estamos dispostos a fazer nada que não seja cômodo; e (3) a mudança só acontecerá se convencermos cada pessoa no planeta a se unir a nós. 
Sejamos realistas. Não é possível chegar a 100% de acordo com quase 7 bilhões de pessoas em nenhum assunto, e nossos sistemas ecológicos estão sofrendo tamanha sobrecarga que simplesmente não dispomos de tempo para tentar. No lugar de uma variedade paralisante de opções de estilo de vida 'verde', precisamos de oportunidades significativas para fazer grandes escolhas, por exemplo, políticas. Num editorial de 2007 no Washington Post, Maniates lamentou: 
A dura verdade é esta: se somarmos as medidas fáceis, econômicas e ecoefientes que todos deveríamos abraçar, conseguiríamos, no máximo, uma redução no crescimento do dano ambiental. Ser obcecado por reciclagem e instalar algumas lâmpadas especiais não basta. Precisamos promover uma virada radical em nossos sistemas energéticos, de transportes e agrícolas, em vez de fazer ajustes tecnológicos marginais, e isso implica mudanças e custos que nossos líderes atuais parecem temerosos em discutir".

Havia escrito que A história das coisas, a despeito do seu pesado tom de alerta, tem um lado esperançoso. O trecho citado acima, porém, denota o contrário. De onde vem então a esperança de Annie Leonard? No mesmo epílogo, a ambientalista cita alguns poucos dados de pesquisas de opinião realizadas entre norte-americanos, favoráveis a certas mudanças ecologicamente desejáveis e alude a certos "sinais" indicativos de novas atitudes entre seus conterrâneos (notoriamente, os consumidores mais perdulários da Terra, cujos hábitos de consumo vêm sendo "exportados" para o restante do mundo nas últimas décadas).

Não sei se isso é suficiente para termos alento.

Não vejo saída para a catástrofe ambiental em que estamos metidos. Por quê?

Pensemos, por exemplo, no uso da água, recurso essencial para aquilo que Leonard chama de "sistema de extrair-produzir-descartar" . Além disso - e peço perdão por dizer tal obviedade -, a água  é substância vital para a sobrevivência dos seres humanos.

Embora mais da metade do planeta seja coberta por água, sabemos que apenas 2,5% desta é potencialmente potável (para falar a verdade, só 1% de toda a água doce é acessível diretamente para nosso uso, pois a outra parte da água potencialmente potável está nas calotas polares ou em aquíferos muito profundos dentro do subsolo). Annie Leonard nos lembra que

"Cerca de um terço da população mundial vive em países que enfrentam crises de água. Uma em cada seis pessoas não tem acesso à água potável. Diariamente, milhares de pessoas - a maioria, crianças - morrem de doenças que poderiam ser evitadas, contraídas em razão da falta de acesso à água limpa. Na Ásia, onde a água sempre foi considerada recurso abundante, a quantidade disponível para cada pessoa diminuiu entre 40% e 60% entre 1955 e 1990. Seu uso excessivo, aliado a secas, contaminação, problemas climáticos, desvio para uso industrial ou agrícola e desigualdade no acesso, contribui para a escassez do líquido. Especialistas preveem que, em 2025, três quartos da população do planeta irão sofrer com a falta de água. E à medida que a água se torna cada vez mais escassa, surgem conflitos em torno do seu uso e da forma que o regulariza. Muitas pessoas - eu, inclusive - temem que o crescente interesse da iniciativa privada que administra sistemas de abastecimento à base de lucro seja incompatível com o direito coletivo à água e com a administração hídrica sustentável".
O controle do abastecimento de água na mão de empresas privadas faz cada vez mais parte da realidade em vários lugares do mundo (no Brasil, inclusive) e o discurso privatista não dá sinais de enfraquecimento. Quando o bicho da escassez pegar, em que essas empresas pensarão primeiro: no ganho dos acionistas ou no interesse público?

Companhias estão secando determinadas regiões (veja o caso da Coca-Cola em Itabirito/MG), isso quando a sua atividade por si só não transforma o precioso recurso em nada mais do que rejeito, como é o caso das mineradoras e suas imensas barragens.

O esgoto residencial e o resíduo da produção industrial vão direto para os rios em trocentos lugares. Gasta-se uma quantidade impressionante de água para produzir papel - desperdiçado em embalagens que, tão logo são rasgadas, vão direto para o lixo. O cultivo do algodão (parte de nossas roupas cada vez mais descartáveis) "requer 970 litros de água" para uma única camiseta. Há, porém, um (ab)uso da água que me tira do sério particularmente:

"Vocês sabiam que nos Estados Unidos gastam-se anualmente mais de 20 bilhões de dólares com gramados?" - pergunta a autora de A história das coisas -. "Em média passamos 25 horas por ano cortando grama, muitas vezes com cortadores poderosos que consomem 3 bilhões de litros de gasolina. Cerca de 750 litros de água por pessoa são utilizados para molhar a grama todos os dias na época de plantio e germinação. Em algumas comunidades, o número corresponde a mais da metade da água usada na residência! Nos Estados Unidos, os gramados representam o maior cultivo irrigado - uma área maior do que a reservada às plantações de milho. Se os americanos substituíssem a grama por plantas nativas que precisam de menos regas e permitem que mais chuva penetre no solo, ao invés de correr para os sistemas de esgoto, reduziriam drasticamente o uso da água em suas casas".
Pensemos agora numa ação vista geralmente como positiva, a reciclagem.

"Grande parte do lixo recolhido para reciclagem nos Estados Unidos é exportada para o exterior, especialmente Ásia, onde as leis trabalhistas e de segurança ambiental são mais frouxas. Rastreei dejetos plásticos, baterias de carros usadas, e-lixo e diversos componentes do lixo municipal americano enviados a Bangladesh, Índia, China, Indonésia e outros lugares do mundo. Eu me infiltrei em instalações (sob vários disfarces!) para dar uma olhada no que acontece com nosso lixo no exterior. As péssimas condições de trabalho que testemunhei não são o que indivíduos conscientes dos Estados Unidos tinham em mente quando, diligentemente, retornaram às fábricas sua baterias de carro usadas"
Por que não vejo saída para a catástrofe ambiental? Porque não acredito que o modo de produção dominante há séculos - o capitalismo - será superado, sequer refreado, mesmo que esteja nos encaminhando para a devastação. A própria Annie Leonard, apesar de viver nos EUA - onde qualquer crítica ao capitalismo é considerada quase um crime de lesa-pátria -, tem clareza de que esse modo de produção é prejudicial à natureza (e, por extensão, prejudicial a nós, que somos dependentes desta):

"Para muitos, o objetivo de nossa economia é aumentar o PIB, ou seja, crescer. Mas, apesar dos avanços científicos e tecnológicos, há mais gente faminta do que nunca: metade da população mundial vive com menos de 2,50 dólares por dia. A fé de nossa sociedade no crescimento econômico repousa na suposição de que sua continuidade é tão possível quanto benéfica. Mas nenhum dos dois pressupostos é verdadeiro. Primeiro porque, devido aos limites do planeta, o crescimento econômico infinito é impossível. Ultrapassado o patamar em que as necessidades humanas básicas são atendidas, ele tampouco se revelou uma estratégia para aumentar o bem-estar. Registramos hoje nas grandes metrópoles um alto nível de estresse, depressão, ansiedade e solidão 
Essa crítica ao crescimento econômico atinge muitos aspectos do capitalismo atual. Eu disse a palavra: 'capitalismo'. É o Sistema-Econômico-Que-Não-Pode-Ser-Mencionado. Quando escrevi o roteiro do vídeo A história das coisas, minha intenção era descrever o que vi em meus anos na trilha do lixo. Certamente não me sentei para ler sobre as falhas desse sistema econômico. Por isso fui pega de surpresa quando alguns comentaristas o consideraram uma 'crítica ecológica ao capitalismo' ou 'anticapitalista'. Isso me inspirou a voltar atrás e tirar a poeira de meus velhos livros de economia. E percebi que os comentários tinham fundamento: uma boa olhada em como fazemos, usamos e descartamos Coisas revela as sérias distorções geradas dentro desse sistema. Não há escapatória: da forma como está sendo conduzido, o capitalismo simplesmente não é sustentável".

Acontece que algumas soluções para ao menos mitigar os problemas - desde as mais simples, como diminuir as jornadas de trabalho e aumentar os dias de descanso dos empregados (sem reduzir salários) ou as mais complexas, como fazer com que as empresas paguem por todos os custos externalizados ³ dos produtos (mesmo que os preços fiquem mais altos para os consumidores finais) e mudar por completo a matriz energética, com o abandono do petróleo e do carvão - nunca serão adotadas, porque o modo de produção capitalista, visto por muitos como uma espécie de religião cujos dogmas não podem ser questionados, está impregnado de um jeito tal em nossas mentes e em nossas relações sociais que buscar suplantá-lo ou ao menos modificá-lo é tarefa fadada ao fracasso.

Em 2016, entre as 100 instituições que mais arrecadaram dinheiro, 69 eram corporações e apenas 31 eram países. Pergunto: dá pra ser otimista sabendo que o poder público é cada dia mais sobrepujado pelo capital privado que, em última instância, só tem compromisso com os dividendos de seus seus detentores?
__________
¹ Hoje em dia, contudo, isso não é verdade. Sinceramente, acho que os carros representam um dos maiores problemas das cidades, para além da questão ecológica (qualquer dia escrevo sobre isso aqui). Por isso acredito que mesmo se tivesse grana para manter um automóvel não o faria.

² LEONARD, Annie. A história das coisas: da natureza ao lixo, o que acontece com tudo que consumimos. Rio de Janeiro: Zahar, 2011 [Tradução de Heloisa Mourão; revisão técnica de André Piani Besserman Vianna]

³ De acordo com Annie Leonard,

"O preço nas etiquetas tem pouquíssimo a ver com os custos envolvidos na produção das Coisas. Seguramente, alguns dos custos diretos, como os relativos a mão de obra e matéria-prima, estão incluídos no preço, mas esses são inexpressivos se comparados aos custos ocultos externalizados, como a poluição da água potável, o impacto na saúde dos trabalhadores e das comunidades vizinhas às fábricas e as mudanças no clima global. Quem paga por isso? Às vezes são os cidadãos da região, que nesse caso, têm que comprar água engarrafada, uma vez que sua torneira está contaminada. Ou os operários, que pagam do próprio bolso por tratamento de saúde. Ou as futuras gerações, que não contarão com florestas para, por exemplo, regular o ciclo das águas. Já que esses custos são pagos por pessoas e organismos externos às empresas responsáveis por gerá-los, são chamados de custos externalizados".

BG de Hoje

Não vou mentir: acho o TAME IMPALA meio chato. Mas gosto muito dessa faixa, Desire Be Desire Go.

sábado, 16 de maio de 2020

Onde cabe a poesia?


O livro A poesia e a crítica, reunião de alguns ensaios produzidos nas últimas duas décadas pelo poeta e filósofo Antonio Cicero, foi lançado em 2017, pela Companhia das Letras. Só pude comprá-lo no ano passado e o li pela primeira vez há poucos meses.

Encontros e desencontros com a contracultura - o primeiro dos textos do livro - não é propriamente um ensaio, mas um depoimento. Para além de refletir sobre o fenômeno da contracultura, o autor narra parte de sua trajetória e de suas escolhas na condição de estudante universitário de Filosofia, fornecendo ao leitor importantes informações sobre sua formação intelectual. Tendo partido para estudar em Londres após o golpe militar de 1964, Cicero fala também da influência exercida por Caetano Veloso (com quem pôde conviver durante algum tempo na capital inglesa, onde o artista baiano se exilara).

Em Poesia e preguiça, o ensaísta vale-se de T. S. Eliot, Baudelaire e Paul Valéry (entre outros) para defender a importância da preguiça na feitura dos poemas, isto é, "a ênfase na preguiça significa simplesmente que a gestação do poema tem um sentido completamente diferente do que tem o trabalho utilitário cotidiano". Esse texto também discute a relação da produção/recepção de poesia com o tempo, tópico retomado ao longo da publicação em pelo menos dois outros escritos. Voltarei ao tema mais adiante.

Defendendo o conceito de cânone poético/literário no ensaio que dá nome ao livro de que estamos falando, Antonio Cicero acredita que é preciso haver uma seleção de textos/autores(as), construída ao longo do tempo pelos críticos. Estes, por sua vez, seriam "todos aqueles que explicitam e defendem publicamente os seus juízos estéticos no que diz respeito à poesia", um conjunto de indivíduos, portanto, não restrito aos críticos profissionais. Essa seleção de textos/autores(as) tem como função principal balizar e orientar tanto a formação de poetas quanto qualificar os leitores de poesia. Nesse ensaio, o autor desanca o teórico da literatura britânico Terry Eagleton (estudioso sobre o qual já falei positivamente, aliás, aqui no blog).

Provavelmente mais conhecido do grande público por seu trabalho como compositor (letrista), Cicero aborda uma recorrente questão em Sobre as letras de canções: seriam estas poemas ou não? Neste ensaio, pode-se encontrar uma discussão mais ampliada do assunto, frequentemente tratado pelo autor, como em uma de suas antigas colunas publicadas quinzenalmente na Folha de S. Paulo. Essa coluna, a propósito, pode ser encontrada no blog do artista (Acontecimentos, um dos recomendados da casa). Já falamos do tema, há bastante tempo, aqui no blog.

Em O verso, um dos textos mais curtos, encontramos mais uma vez um importante esclarecimento feito anteriormente por Antonio Cicero: prosa não se opõe à poesia, mas sim ao verso, um dos maiores recursos poéticos (senão o maior). 

Os seis ensaios que se seguem a O verso analisam o trabalho de diversos poetas: Armando Freitas Filho, Ferreira Gullar, Fernando Pessoa e Friedrich Hölderlin (o escrito dedicado ao último é o mais extenso ensaio de todo o livro).

A poesia e a crítica encerra-se, curiosamente, com a breve apreciação de um texto em prosa: no caso, A montanha mágica, de Thomas Mann (disponível também aqui; a propósito, já falamos dessa mesma obra aqui, aqui e aqui). Como havia explicado na apresentação de seu livro, o poeta e filósofo concede ao romance do escritor alemão um papel importante em sua formação geral.

Gostaria agora de voltar a dois ensaios sobre os quais ainda não falei.

Havia escrito, parágrafos acima, que a relação da produção/recepção da poesia com o tempo é um tópico presente em mais de um texto dentro do livro.

Verificando que, no mundo contemporâneo, é difícil para a imensa maioria apreciar a leitura de poesia - pois nos encontramos "sob o domínio quase absoluto da apreensão instrumental do ser", quando não se consegue perceber o valor das coisas por elas mesmas (tudo é sempre um meio para se alcançar outra coisa) -, Antonio Cicero escreve no ensaio A poesia entre o silêncio e a prosa do mundo:

"Nessas circunstâncias, não admira que o dinheiro - o meio por excelência, pois é o meio dos meios - seja o que há de mais importante. O que seria apenas um meio torna-se o verdadeiro fim. Ora, num mundo assim, em que, para o senso comum  'tempo é dinheiro', parece irracional que se faça um investimento de tempo sem nenhuma garantia de que se venha a obter, num prazo determinado, qualquer compensação ou retorno. Consequentemente, poucos se permitem mergulhar no poema, isto é, pensar nele, com ele, através dele, pondo à disposição dele, pelo tempo que se faça necessário, o livre jogo de todas as faculdades que esse pensamento integral requeira".

Para o ensaísta, a poesia escrita para ser lida (diferentemente da poesia escrita para ser ouvida, isto é, a que está presente nas letras de muitas canções) dificilmente pode ser fruída sem que se dedique a ela concentração e tempo: "Para fruir um poema, é preciso nele imergir. E como tal imersão não combina com a temporalidade acelerada do presente, muitos afirmam que a poesia simplesmente não tem mais lugar nesse mundo".

E acrescenta:

"Pois bem, é exatamente por não se ajustar à temporalidade acelerada do presente que a poesia é necessária hoje. Afinal, a temporalidade acelerada corresponde à apreensão instrumental do ser. Assim, é bom que a poesia, longe de se ajustar a ela, relativize-a, uma vez que nos dá acesso a esse outro modo de apreensão do ser e do tempo - o estético - que enriquece imensamente à vida humana. [...]"

Por sua vez, na análise de um dos poemas mais marcantes de nossa Literatura - Sobre A flor e a náusea, de Drummond -, ele afirma:

"Ora, uma das ambições da poesia é exatamente desautomatizar a linguagem, a percepção do mundo e o pensamento, de modo a nos permitir apreender linguagem, mundo e pensamento como se fosse pela primeira vez. Não se trata de um consolo, mas do transporte para outra dimensão do tempo, para outra dimensão da existência, inteiramente distinta daquela que é regida pelo princípio do desempenho, da utilidade, da instrumentalidade, do valor de troca [...]".

Para compreendermos ainda melhor o que nos diz Antonio Cicero, convido o(a) eventual leitor(a) a lermos juntos um dos meus poemas prediletos: Plena pausa, de Paulo Leminski  ¹:

PLENA PAUSA

     Lugar onde se faz
o que já foi feito,
    branco da página,
soma de todos os textos,
    foi-se o tempo
quando, escrevendo,
    era preciso
uma folha isenta.

    Nenhuma página
jamais foi limpa.
    Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
    Nunca houve isso,
uma página em branco.
    No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.


Confesso que não atentei para seu sentido mais profundo, nas primeiras vezes em que li este poema, muito tempo atrás. Apenas achei bonitas as combinações de palavras. Também fiquei fascinado pelo último verso - pálidas de tanto (voltaremos a este, daqui a pouco).

Mas qual seria esse sentido profundo? Acredito que Leminski está tratando, poeticamente, de algo que afeta (e às vezes aflige) os escritores: o peso representado por todas as obras já escritas, sobretudo aquelas que compõem o que consideramos os textos mais significativos já produzidos (o cânone, para recuperar um conceito discutido por Antonio Cicero num de seus ensaios).

"Lugar onde se faz/o que já foi feito". Muitos poetas talvez fiquem intimidados ou mesmo paralisados diante de uma página em branco ao se lembrarem de que aquilo que tencionam escrever provavelmente nada terá de original, pois já foi experimentado e realizado antes por outro poeta, inclusive, com maior beleza (isso, naturalmente, vale para romancistas, contistas, etc.). Por isso a página vazia, não-escrita, representa a tradição literária que antecede o poeta: "branco da página/soma de todos os textos". NOTA: perceba o jogo feito por Leminski. A página é branca: ainda assim, soma todos os textos da tradição literária, do mesmo modo que o branco soma todas as cores (pelo menos quando estamos falando do espectro luminoso).

Porém, não é preciso ficar intimidado nem paralisado. Os artistas, se talentosos, saberão usar essa tradição a seu favor: dialogando com ela ou até subvertendo-a: "foi-se o tempo/quando escrevendo,/era preciso/ uma folha isenta".

Os textos predecessores existem, são um fato. Por isso "Nenhuma página/jamais foi limpa". E "No fundo todas gritam". Gritam o quê? Justamente toda a arte que foi registrada antes delas, noutras páginas. E estão "pálidas de tanto". É admirável como a simples troca de espanto (evitando um pavoroso lugar-comum) por tanto cria um efeito de sentido tão poderoso. O tanto refere-se, acredito eu, à tradição literária que virtualmente paira sobre a página em branco.

E assim o título do poema - Plena pausa - fica mais claro. A página em branco, que dentro de um livro pode representar uma pausa, está também plena, isto é, cheia de toda a arte da escrita que a circunda de forma latente.

Como se vê, os bons poemas, para serem apreciados e compreendidos em plenitude, demandam de nós dedicação e tempo (mesmo um poema de apenas 16 versos, como esse de Leminski, que acabamos de analisar). Mas quem está disposto a isso?

Vivemos num mundo que a todo momento martela em nossas cabeças: "NÃO PERCA TEMPO!", "SEJA RÁPIDO!", "PRODUZA!" - como se isso estivesse fazendo nossa vida melhor, como se estivéssemos tornando este mundo um lugar melhor...

É por isso que, pelo menos no meu caso, vou sempre deixar um espaço onde a poesia caiba em minha vida, pois desejo ter "acesso a esse outro modo de apreensão do ser e do tempo - o estético - que enriquece imensamente à vida humana", como bem disse Antonio Cicero.
__________
¹ LEMINSKI, Paulo. Melhores poemas de Paulo Leminski. 6 ed. São Paulo: Global, 2002. [Seleção de Fred Góes e Álvaro Martins] (Coleção Melhores Poemas)

. . . . . . .

ALDIR BLANC (1946 - 2020)

Ao pensar nas letras de canções como poemas (e, sem dúvida, muitas delas certamente o são), é preciso lembrar de Aldir Blanc, falecido recentemente. Num país que produziu e produz tantos ótimos letristas-poetas (Chico Buarque, Antonio Cicero, Cazuza, Gilberto Gil, Arnaldo Antunes, Fernando Brant, Caetano Veloso, Emicida, Vinícius de Moraes, Chico César...), Blanc foi um dos maiores. O(a) eventual leitor(a) encontrará menções ao principal parceiro de João Bosco em algumas postagens deste blog. Uma de suas letras-poemas de que mais gosto é também uma das mais simples que ele escreveu:

LATIN LOVER

Nos dissemos
que o começo é sempre,
sempre inesquecível.
E, no entanto, meu amor, que coisa incrível,
esqueci nosso começo inesquecível.
Mas me lembro
de uma noite.
Sua mãe tinha saído.
Me falaste de um sinal adquirido
numa queda de patins em Paquetá:
Mostra... doeu?... ainda dói?...
A voz mais rouca,
e os beijos,
cometas percorrendo o céu da boca...
As lembranças
acompanham até o fim um
latin lover,
que hoje morre,
sem revólver,
sem ciúmes,
sem remédio.

De tédio.

. . . . . . .

BG de Hoje

Não é difícil encontrar por aí muita gente que tem profunda antipatia pelo comediante e apresentador norte-americano JIMMY FALLON. "Suas risadas geralmente são falsas"; "Ele é meio alienado politicamente"; "Às vezes, quer chamar mais atenção para si do que para o(a) convidado(a)" - essas e outras críticas costumam ser dirigidas ao ex-integrante do longevo humorístico Saturday Night Live. Admito que não são observações descabidas. Entretanto, não tenho vergonha nenhuma de dizer que gosto muito do trabalho dele - sobretudo a infantilidade da maioria dos quadros do programa, outra crítica recorrente - e não me canso de assistir trechos de seu talk show disponibilizados no Youtube. Como o vídeo abaixo, por exemplo. Com a participação do lendário grupo de hip hop THE ROOTS (atualmente, a banda que divide o palco com Fallon na sua atração de TV), o comediante (que também é músico) promoveu uma versão formidável do hit Don't Stand So Close To Me (THE POLICE), junto com STING. O uso de alguns "instrumentos musicais" inusitados não é novidade para esses caras dentro do programa e, dado o isolamento social decorrente da pandemia de COVID-19, ficou mais do que adequado.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Falou e disse...


"Aprendi com Rômulo Quiroga (um pintor boliviano):

A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz 
um formato de pássaro". 
[...] *


* BARROS, Manoel de. As lições de R. Q. In: _________. Livro sobre nada. 7 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 67