"Nas condições de um mundo comum, a realidade não é garantida primordialmente pela 'natureza comum' de todos os homens que o constituem, mas antes pelo fato de que, a despeito de diferenças de posição e da resultante variedade de perspectivas, todos estão sempre interessados no mesmo objeto. Quando já não se pode discernir a mesma identidade do objeto, nenhuma natureza comum, e muito menos o conformismo artificial de uma sociedade de massas, pode evitar a destruição do mundo comum, que é geralmente precedida pela destruição de muitos aspectos nos quais ele se apresenta à pluralidade humana".
Hannah Arendt - A condição humana
Reservadas as peculiaridades de cada categoria de indivíduos a ser mencionada adiante, pode-se dizer que há um traço partilhado pelos empedernidos proprietários de armas nos EUA e os defensores do projeto "Escola sem Partido" aqui no Brasil, bem como pelos negacionistas da mudança climática provocada pela atividade humana e os grandes investidores (melhor seria dizer especuladores/apostadores) dos mercados financeiros mundiais: todos estão se lixando para o restante do mundo, desde que o seu "modo de vida" e seus "valores" estejam (ou pelo menos pareçam estar) assegurados.
Antevejo a objeção do(a) eventual leitor(a). E tem razão. Um grande número de pessoas neste planeta - e, sejamos sinceros, não só os tipos dos quais falei no parágrafo anterior - quer mais que os outros se fodam. Contudo, boa parte delas não está alistada em entidades organizadas nem promovendo lobbies explícitos junto aos órgãos governamentais para fazer valer a sua agenda no domínio público, atraindo corações e mentes para suas "causas" e tentando, por variados meios, suprimir o debate e as vozes discordantes, como o fazem os acima indigitados.*
Essas observações iniciais do blogueiro - um tanto descosidas, admito - têm, apesar de tudo, relação com alguns pontos levantados por Hannah Arendt em A condição humana**, um dos mais importantes tratados de filosofia do século XX.
Publicado pela primeira vez em 1958, o livro da pensadora alemã procura compreender as três instâncias de que se compõe a vida ativa humana - o trabalho, a obra (fabricação) e a ação. Mas não "só" isso. Para realizar sua tarefa, Arendt faz um percurso analítico-crítico destacando todos os filósofos-chaves para a história do pensamento político no Ocidente, começando pela Antiguidade grega, com Platão e Aristóteles, passando por Agostinho de Hipona (ou Santo Agostinho, como queiram), Tomás de Aquino (ou São Tomás de Aquino, se fazem questão), Maquiavel, Locke, Hobbes, Montesquieu (só um tiquinho), além de Rousseau e Marx (a quem a autora dirige um longo e respeitoso ataque). Como o livro vai muito além da teoria política, há pontos sensacionais a respeito de Descartes, Kant, Hegel, Nietzsche - além de desferir um golpe certeiro no utilitarismo de Jeremy Bentham.
Apesar da perspectiva secular assumida pela filósofa, Jesus é mencionado largamente no livro, dado o peso gigantesco do cristianismo na cultura ocidental. A condição humana, em seu último capítulo, ainda traz um sóbrio e válido exame da ciência e da visão cientificista (muitas vezes, surpreendentemente simplista) associada a esse empreendimento humano que, não obstante sua centralidade e importância no atual estágio histórico (e Hannah Arendt não o nega, claro), deve e precisa ser criticado, sobretudo filosoficamente. NOTA: Bem diferente, em qualidade, do que se encontra no livro A barbárie, de Michel Henry, discutido recentemente no Besta Quadrada aqui (e mais aqui). Como se não bastasse tudo o que já mencionei, Hannah Arendt faz preciosas (ainda que breves) observações sobre estética, arte e poesia.
Não será simples "traduzir" um trabalho tão importante quanto A condição humana para a linguagem mais direta, habitualmente adotada neste blog. Todavia, desejo imensamente fazê-lo, sobretudo num momento em que a política encontra-se tão desacreditada e vista com aversão no Brasil e em várias outras partes do mundo.
De acordo com John Lechte***, "dois temas em particular estão presentes na obra de Arendt em um nível quase obsessivo: os da liberdade e da necessidade, e a relação da exceção com a norma". Percebe-se essa "obsessão" em A condição humana no modo como a autora identifica e discute o apagamento gradual do domínio público (território da ação e polo da liberdade, na concepção de Hannah Arendt), acompanhado, por sua vez, de uma quase onipresença do trabalho (polo da necessidade) nos assuntos humanos. A ação, no seu mais profundo significado político, é muitas vezes imprevisível e extraordinária - portanto, estabelece exceções, provocando a revisão ou o questionamento das normas. Esse é um dos motivos pelos quais a política (umbilicalmente ligada à ação) é tão desprezada. Convém compreendermos melhor o que é a ação, de acordo com essa pensadora.
A distinção entre trabalho, obra e ação proposta por Hannah Arendt foi bastante inovadora, mas, de forma simplificada, pode-se afirmar, de acordo com a filósofa, que o trabalho diz respeito às atividades ligadas (fisiologicamente, inclusive) à sobrevivência da espécie humana. É indispensável, pois, sem ele, morreríamos. O trabalho, contudo, não perdura no tempo; esgota-se enquanto é realizado (daí a intensa relação deste com sua outra metade, o consumo). A obra, por outro lado, deixa atrás de si objetos que, por sua materialidade e durabilidade, constituem as coisas que, concomitante à natureza, formam o mundo tal como os seres humanos o reconhecem. O trabalho e a obra, porém, prescindem da pluralidade humana; ocorrem, de maneira geral, privada ou isoladamente. A ação, por sua vez, só se dá entre os seres humanos, pois ela só se justifica no discurso, no uso da palavra.
Como se pode perceber, a autora nega completamente a noção de que possa existir algo como uma "natureza humana" essencialmente dada e válida para todos os indivíduos (como fora praxe entre os vários clássicos da filosofia política). Por vivermos na pluralidade - de interesses, de subjetividades, de inclinações afetivas - , de que outro modo poderíamos tentar nos entender senão por meio da palavra? Enquanto enclausurado na esfera do trabalho, "o homem não está junto ao mundo nem convive com os outros, mas está sozinho com seu corpo ante a pura necessidade de manter-se vivo". Circunscritos somente à esfera da obra, estaríamos vivendo num "modo apolítico de vida" (embora não antipolítico), pois os objetos da fabricação nos seriam suficientes. Em última análise, é a ação que nos tornaria plenamente humanos, nas várias acepções da palavra. Hannah Arendt observa que
A ação deixou de ter importância porque não parecemos estar interessados em construir e manter um mundo comum, onde a palavra seja relevante. De que modo isso acontece? E o que se pode fazer a respeito?
Prossigo na semana que vem
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* E como se isso tudo já não fosse suficiente, o mundo ainda precisa lidar com o terrorismo multifacetado, de variada origem, outra maneira de tentar fazer prevalecer determinado "modo de vida" e determinado conjunto de "valores", empregando, nesse caso, a violência pura e simples.
** ARENDT, Hannah. A condição humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013 [Tradução de Roberto Barroso]
*** LECHTE, John. 50 pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-modernidade. 4 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006 [Tradução de Fábio Fernandes]
Chrissie Hynde continua na ativa. Já são quatro décadas na estrada. Embora só ela permaneça como integrante da formação original dos PRETENDERS, é ótimo saber que a banda segue gravando (o último disco tem produção de Dan Auerbach, do Black Keys) e excursionando. O estilo low-profile de Chrissie Hynde, sempre evitando ser tratada como rock star, é um alento em meio a tanta badalação vazia provocada pelo atual culto às celebridades. No BG, um dos maiores hits dos Pretenders, Back On The Chain Gang (que tem uma linha de baixo muito legal).
Antevejo a objeção do(a) eventual leitor(a). E tem razão. Um grande número de pessoas neste planeta - e, sejamos sinceros, não só os tipos dos quais falei no parágrafo anterior - quer mais que os outros se fodam. Contudo, boa parte delas não está alistada em entidades organizadas nem promovendo lobbies explícitos junto aos órgãos governamentais para fazer valer a sua agenda no domínio público, atraindo corações e mentes para suas "causas" e tentando, por variados meios, suprimir o debate e as vozes discordantes, como o fazem os acima indigitados.*
Essas observações iniciais do blogueiro - um tanto descosidas, admito - têm, apesar de tudo, relação com alguns pontos levantados por Hannah Arendt em A condição humana**, um dos mais importantes tratados de filosofia do século XX.
Publicado pela primeira vez em 1958, o livro da pensadora alemã procura compreender as três instâncias de que se compõe a vida ativa humana - o trabalho, a obra (fabricação) e a ação. Mas não "só" isso. Para realizar sua tarefa, Arendt faz um percurso analítico-crítico destacando todos os filósofos-chaves para a história do pensamento político no Ocidente, começando pela Antiguidade grega, com Platão e Aristóteles, passando por Agostinho de Hipona (ou Santo Agostinho, como queiram), Tomás de Aquino (ou São Tomás de Aquino, se fazem questão), Maquiavel, Locke, Hobbes, Montesquieu (só um tiquinho), além de Rousseau e Marx (a quem a autora dirige um longo e respeitoso ataque). Como o livro vai muito além da teoria política, há pontos sensacionais a respeito de Descartes, Kant, Hegel, Nietzsche - além de desferir um golpe certeiro no utilitarismo de Jeremy Bentham.
Apesar da perspectiva secular assumida pela filósofa, Jesus é mencionado largamente no livro, dado o peso gigantesco do cristianismo na cultura ocidental. A condição humana, em seu último capítulo, ainda traz um sóbrio e válido exame da ciência e da visão cientificista (muitas vezes, surpreendentemente simplista) associada a esse empreendimento humano que, não obstante sua centralidade e importância no atual estágio histórico (e Hannah Arendt não o nega, claro), deve e precisa ser criticado, sobretudo filosoficamente. NOTA: Bem diferente, em qualidade, do que se encontra no livro A barbárie, de Michel Henry, discutido recentemente no Besta Quadrada aqui (e mais aqui). Como se não bastasse tudo o que já mencionei, Hannah Arendt faz preciosas (ainda que breves) observações sobre estética, arte e poesia.
Não será simples "traduzir" um trabalho tão importante quanto A condição humana para a linguagem mais direta, habitualmente adotada neste blog. Todavia, desejo imensamente fazê-lo, sobretudo num momento em que a política encontra-se tão desacreditada e vista com aversão no Brasil e em várias outras partes do mundo.
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De acordo com John Lechte***, "dois temas em particular estão presentes na obra de Arendt em um nível quase obsessivo: os da liberdade e da necessidade, e a relação da exceção com a norma". Percebe-se essa "obsessão" em A condição humana no modo como a autora identifica e discute o apagamento gradual do domínio público (território da ação e polo da liberdade, na concepção de Hannah Arendt), acompanhado, por sua vez, de uma quase onipresença do trabalho (polo da necessidade) nos assuntos humanos. A ação, no seu mais profundo significado político, é muitas vezes imprevisível e extraordinária - portanto, estabelece exceções, provocando a revisão ou o questionamento das normas. Esse é um dos motivos pelos quais a política (umbilicalmente ligada à ação) é tão desprezada. Convém compreendermos melhor o que é a ação, de acordo com essa pensadora.
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"A ação" - escreve Arendt - "seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência nas leis gerais do comportamento, se os homens fossem repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, cuja natureza ou essência fosse a mesma para todos e tão previsível quanto a natureza ou essência de qualquer outra coisa. A pluralidade é a condição da ação humana porque somos todos iguais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém é jamais igual a qualquer outro que viveu, vive ou viverá".
Como se pode perceber, a autora nega completamente a noção de que possa existir algo como uma "natureza humana" essencialmente dada e válida para todos os indivíduos (como fora praxe entre os vários clássicos da filosofia política). Por vivermos na pluralidade - de interesses, de subjetividades, de inclinações afetivas - , de que outro modo poderíamos tentar nos entender senão por meio da palavra? Enquanto enclausurado na esfera do trabalho, "o homem não está junto ao mundo nem convive com os outros, mas está sozinho com seu corpo ante a pura necessidade de manter-se vivo". Circunscritos somente à esfera da obra, estaríamos vivendo num "modo apolítico de vida" (embora não antipolítico), pois os objetos da fabricação nos seriam suficientes. Em última análise, é a ação que nos tornaria plenamente humanos, nas várias acepções da palavra. Hannah Arendt observa que
"Os homens podem perfeitamente viver sem trabalhar, obrigando outros a trabalharem para eles; e podem muito bem decidir simplesmente usar e fruir do mundo das coisas sem lhe acrescentar um só objeto útil; a vida de um explorador ou senhor de escravos e a vida de um parasita podem ser injustas, mas certamente são humanas. Por outro lado, uma vida sem discurso e sem ação [...] é literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre os homens".
A ação deixou de ter importância porque não parecemos estar interessados em construir e manter um mundo comum, onde a palavra seja relevante. De que modo isso acontece? E o que se pode fazer a respeito?
Prossigo na semana que vem
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* E como se isso tudo já não fosse suficiente, o mundo ainda precisa lidar com o terrorismo multifacetado, de variada origem, outra maneira de tentar fazer prevalecer determinado "modo de vida" e determinado conjunto de "valores", empregando, nesse caso, a violência pura e simples.
** ARENDT, Hannah. A condição humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013 [Tradução de Roberto Barroso]
*** LECHTE, John. 50 pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-modernidade. 4 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006 [Tradução de Fábio Fernandes]
BG de Hoje
Chrissie Hynde continua na ativa. Já são quatro décadas na estrada. Embora só ela permaneça como integrante da formação original dos PRETENDERS, é ótimo saber que a banda segue gravando (o último disco tem produção de Dan Auerbach, do Black Keys) e excursionando. O estilo low-profile de Chrissie Hynde, sempre evitando ser tratada como rock star, é um alento em meio a tanta badalação vazia provocada pelo atual culto às celebridades. No BG, um dos maiores hits dos Pretenders, Back On The Chain Gang (que tem uma linha de baixo muito legal).