terça-feira, 1 de novembro de 2016

A meândrica afetação do discurso filosófico: lendo A barbárie, de Michel Henry (II)




Observei na postagem anterior que Michel Henry faz questão de ressaltar em A barbárie* a existência de um suposto divórcio entre a ciência e a cultura. Como isso se daria?

O autor - que se considera um "dos fenomenólogos preocupados em construir uma fenomenologia radical da subjetividade enquanto subjetividade viva" - acredita que a ciência, tal como esta vem se desenvolvendo desde Galileu Galilei, é refratária à sensibilidade por causa de seu "objetivismo unilateral".

"Afastar da realidade dos objetos suas qualidades sensíveis" - escreve Henry - "é eliminar, ao mesmo tempo, nossa sensibilidade, o conjunto de nossas impressões, emoções, desejos e paixões, pensamentos, em suma, toda a nossa subjetividade, que constitui a substância de nossa vida. É essa vida, portanto, tal como se experimenta em nós em sua fenomenalidade incontestável, essa vida que faz de nós seres vivos, que se vê despojada de toda verdadeira realidade, reduzida a uma aparência. O beijo que trocam os amantes não passa de um bombardeio de partículas microfísicas".

Michel Henry afirma ser a cultura, unicamente, uma "cultura da vida" - seja lá o que isso queira dizer**. A "substância" dessa vida, a subjetividade, é onde a sensibilidade reside e, segundo o filósofo francês, a ciência matemática da natureza "faz abstração da sensibilidade. Porém, a ciência só pode abstrair da sensibilidade porque abstrai, incialmente, da vida; é esta que ela rejeita, devido à sua temática, e ao fazê-lo acaba ignorando-a totalmente".

E acrescenta mais adiante, noutro capítulo:

"O que motiva esse afastamento [da ciência em relação à vida e, portanto, em relação à cultura, como pensa o autor], o que lhe está subjacente, é um pressuposto fundamental, embora implícito, é a crença segundo a qual a verdade é estranha à esfera ontológica da subjetividade viva e pertence, pelo contrário, e isso por princípio e portanto de maneira exclusiva, à da objetividade"

Não sou adepto da tese de que a ciência ocupa lugar oposto ao da cultura, nem acho que a intentio científica negue a sensibilidade ou busque excluí-la do mundo, junto com a subjetividade, como prega Henry. Mas acredito que sua retórica pode acabar seduzindo uns e outros por esse mundão afora.

A racionalização decorrente da ampliação do conhecimento científico, parte crucial no processo de "desencantamento do mundo" (para usar a célebre expressão de Max Weber), trouxe, como uma de suas muitas consequências, o abalo daquilo que a tradição sempre reputou como sagrado. E embora o autor de A barbárie use a arte para reforçar sua denúncia da ciência como "doença da vida", penso que no fundo, no fundo, é a religião (sobretudo o catolicismo) que ele deseja enaltecer. Observemos este excerto bastante significativo retirado do último capítulo,  pouco antes de seu epílogo:

"Pois a verdade concreta de todo esse movimento pode se resumir assim: o poder intelectual e espiritual tradicionalmente assumidos por aqueles que, realizando em si mesmos o grande movimento de autocrescimento da vida se atribuíam por tarefa transmiti-lo a outros em uma aula possível - esse poder foi arrancado dos padres e dos intelectuais por novos mestres, que são servidores cegos do universo da técnica e da mídia - pelos jornalistas e pelos políticos".

O trecho faz parte de uma seção na qual Henry diz haver um processo de destruição da instituição universitária pelo "mundo da técnica", o que implica na "aniquilação desta como lugar de cultura". É quase inevitável perceber nesse capítulo uma certa mágoa pessoal do autor com a Academia, mas não é nisso que desejo me concentrar. O(a) eventual leitor(a) deve ter reparado, dentro do trecho reproduzido acima, a seguinte passagem: "esse poder foi arrancado dos padres e dos intelectuais por novos mestres". A religião é mencionada sempre de modo breve em A barbárie, como sendo uma das formas de cultura excluídas pela ciência (junto com a ética e a arte, na visão do autor). Nesse trecho, contudo, o filósofo francês avança um pouco mais, concedendo aos padres (e por que não aos monges budistas, aos pastores evangélicos, aos rabinos ou aos imames?) um tipo de autoridade especial para lidar com a "cultura da vida". Isso sem mencionar a sua aversão (e sinto nela um certo odor reacionário) aos "novos mestres".

É claro que Michel Henry poderia fazer a defesa que quisesse da religião e também proclamar aos quatro ventos seu conservadorismo. Seria perfeitamente legítimo e válido. Ocorre, entretanto, em seu livro, uma escamoteação de suas reais posições político-ideológicas por meio de sua escrita quase sempre tortuosa e cheia de maneirismos - um tipo de estratégia discursiva/retórica muito empregada em certa Filosofia (e sobre a qual escreverei a respeito qualquer dia desses). Por que não assumir essas posições de modo explícito? E não venham me dizer que por não se tratar de um livro de filosofia política o autor não tinha necessidade de fazê-lo. O livro de Henry, apesar do esoterismo presente em muitas passagens, é uma obra de intervenção, portanto, política.

Na postagem anterior eu havia dito que é possível dispor de sustentação filosófica para um sem-número de convicções, atitudes, condutas ou simples opiniões. Posso apostar que diversos leitores de A barbárie, ansiosos por reabilitar a religião como "fonte da verdade" e desprezar a ciência por esta obrigá-los a se confrontar com dados e informações que contrariam seus desejos, encontraram no livro de Henry muito do que buscavam.

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Apenas para corroborar minha avaliação de que A barbárie não pretendia ser apenas um desinteressado ensaio de crítica à ciência, informo ao(à) eventual leitor(a) que o livro encontra-se numa lista reproduzida em sites conservadores (como este, que sugere uma breve bibliografia para o cristão entender um pouco o Comunismo e se proteger dele, hehehe...), ao lado de obras que exaltam a ditadura militar e autores-símbolos do reacionarismo brasileiro atual, como Rodrigo Constantino, Marco Antônio Villa e claro, Olavo de Carvalho.
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* HENRY, Michel. A barbárie. São Paulo: É Realizações, 2012 [Tradução de Luiz Paulo Rouanet]

** Chamei a atenção do(a) eventual leitor(a), na postagem anterior, para a vagueza que se percebe na escrita desse filósofo em muitos momentos.


BG de Hoje

Antes que o videoclipe se tornasse indispensável e bem antes da chegada da MTV (no tempo em que o canal tratava de música, claro), diversos artistas dentro do rock já sabiam o quanto o figurino e o visual extravagante teriam papel destacado na promoção de sua música. Pense, por exemplo, em Alice Cooper. Ou no Kiss. Com a passagem do tempo, a lista foi ficando grande: Misfits, King Diamond, Gwar (que eu sempre achei uma banda bem divertida), Marilyn Manson, Ghost, Slipknot e por aí vai... O grupo MUSHROOMHEAD segue a linha. Resta a pergunta: e quanto ao som? Bem, este blogueiro gosta bastante. Avalie por si escutando a (ótima) Sun Doesn't Rise.