O jornal britânico The Guardian tem acrescentado, ao final de algumas matérias nas suas edições da web, o seguinte recado ao leitor:
"Since you're here...... we have a small favour to ask. More people are reading The Guardian than ever but far fewer are paying for it. And advertising revenues across the media are falling fast. So you can see why we need to ask for your help. The Guardian's independent, investigative journalism takes a lot of time, money and hard work to produce. But we do it because we believe our perspective matters - because it might well be your perspective, too.Fund our journalism and together we can keep the world informed. *
* [tradução aproximada: "Já que você está aqui... nós temos um pequeno favor para pedir. Mais pessoas estão lendo o Guardian do que nunca, mas pouquíssimas estão pagando por isso. E as receitas com anúncios através da mídia estão caindo rápido. Assim você pode ver por que precisamos pedir ajuda. O jornalismo independente e investigativo do Guardian leva muito tempo, dinheiro e trabalho duro para produzir. Mas nós o fazemos porque acreditamos que nossa perspectiva importa - porque ela bem pode ser a sua perspectiva também. Financie o nosso jornalismo e juntos podemos manter o mundo informado".]
Sendo sincero, senti um pouco de vergonha de mim mesmo na primeira vez em que vi esse recado - e experimentei a mesma sensação todas as vezes seguintes em que topei com ele. The Guardian foi fundado em 1821 (portanto, está perto de completar 200 anos em atividade!). É um dos mais tradicionais veículos da imprensa europeia, respeitado mundialmente. Entretanto, todo o seu prestígio e qualidade, ao que parece, são insuficientes para manter-se no negócio.
Revistas e jornais impressos foram diretamente impactados pela internet. Alguns títulos não mais circulam em papel, sobrevivendo apenas na versão online; outros simplesmente deixaram de existir. Os exemplares foram ficando mais magros e várias páginas são ocupadas exclusivamente por campanhas publicitárias, demonstrando que as redações atualmente têm menos importância do que os departamentos comerciais. As vendas avulsas são ínfimas e os assinantes, cada vez mais raros (quem você conhece que ainda recebe em casa Istoé ou O Globo, por exemplo? Chega a ser constrangedor o número de e-mais do tipo mala-direta enviados pela editora Abril me pedindo para voltar a comprar seus produtos, dos quais hoje quero distância). Como esses empreendimentos se sustentarão? Essa não é uma questão menor porque, a despeito da venalidade e do mau-caratismo de determinadas empresas, a imprensa, institucionalmente falando, é elemento vital para a democracia.
O atual estágio tecnológico faculta ao indivíduo não pagar pelo ganha-pão de muitos profissionais, por exemplo, no campo da arte e do entretenimento - de fotógrafos(as) a figurinistas, passando por artistas gráficos, tradutores(as), revisores(as), roteiristas, atores e atrizes, compositores(as), cantores(as), musicistas, escritores(as), cinegrafistas, iluminadores **. Começamos também a nos "acostumar" a pensar o trabalho dos(as) jornalistas como algo que não envolve custos ou remuneração. E não há sinais, pelo menos no curto prazo, de mudança nesse cenário. Para não fecharem as portas, restam aos veículos jornalísticos poucas alternativas. Uma delas, perfeitamente aceitável e nobre, é contar com a contribuição financeira daqueles leitores dispostos (e sensibilizados) a ponto de ajudar. Mas isso não é nada, nada simples.
Uma das grandes armadilhas do capitalismo é convencer as pessoas de que todos podem ter seu lugar ao sol. Basta perseverança e trabalho duro. Não é preciso ser um perito em economia para não levar isso muito a sério. A tendência atual é de maior concentração de renda na mão de poucos, gerando mais desigualdade, sem diminuir a pobreza global, não importando a carga individual de cada trabalhador. Completando esse quadro desolador, salários estão sendo vaporizados numa velocidade impressionante, esvaziados de poder aquisitivo, comprometidos pelo endividamento.
Captar dinheiro para determinadas atividades ficou muito difícil; há menos dinheiro disponível para as pessoas comuns. Isso explica a disseminação do crowdfunding, prática adotada para financiar uma variedade de projetos: construção de abrigos para refugiados, espetáculos artísticos, viagens de atletas em competição, produção de filmes, gravação de discos, publicação de livros... E também a realização de reportagens investigativas - no Brasil, o Diário do Centro do Mundo tem adotado essa estratégia.
Pode-se também simplesmente pedir doações. É o que sempre fizeram várias entidades de alcance mundial.
O problema é que muitas pessoas sabedoras da importância de contribuir com essas ações e projetos não o fazem. E não porque não queiram, mas porque estão elas cada vez mais sem ter de onde tirar.
Há cinco meses deixei de doar para a Unicef (e olha que se trata apenas de R$40,00 mensais). Nas últimas eleições municipais não ajudei sequer com um real a campanha do PSOL e não paguei minha mensalidade sindical várias vezes em 2016. Meu salário - única fonte de renda de que disponho - está achatado há pelo menos quatro anos, sem qualquer ganho real em relação à inflação. Não há qualquer indicativo de melhora; vem aí a PEC 55 (ex-PEC 241) que congelará os investimentos em educação durante 20 anos, com impacto direto na remuneração dos servidores públicos do setor em todo o país (caso deste blogueiro), graças ao efeito cascata esperado nos estados e municípios. Por mais que queira colaborar, não tenho dinheiro pra isso.
Meu pessimismo, contudo, pode ser injustificado (não creio). Quem sabe volte a ter algum ganho salarial no futuro. Se assim for, farei questão de contribuir para entidades como Médicos sem Fronteiras e assinar publicações que respeito (e cuja perspectiva me interessa), como o Guardian, o jornal brasileiro Nexo e as revistas Carta Capital e Caros Amigos. Por enquanto, porém, só posso me aproveitar desses veículos, pois não quero ser engolido pelo mau jornalismo da mídia hegemônica (e para se ter ideia de como são canalhas, a Associação Nacional de Jornais - entidade que congrega o oligopólio de imprensa brasileiro, controlado pelas mesmas famílias há décadas e décadas - quer restringir a atuação de sites como BBC, El País e outros, cuja prestação de serviço jornalístico têm sido melhor do que as Folhas, Vejas, Estadões e Globos da vida).
Nas próximas postagens, abordarei o livro A condição humana, de Hannah Arendt.
** Não se trata, pelo menos nesse momento, de um julgamento ou reprimenda moral por parte do blogueiro.
Sendo sincero, senti um pouco de vergonha de mim mesmo na primeira vez em que vi esse recado - e experimentei a mesma sensação todas as vezes seguintes em que topei com ele. The Guardian foi fundado em 1821 (portanto, está perto de completar 200 anos em atividade!). É um dos mais tradicionais veículos da imprensa europeia, respeitado mundialmente. Entretanto, todo o seu prestígio e qualidade, ao que parece, são insuficientes para manter-se no negócio.
Revistas e jornais impressos foram diretamente impactados pela internet. Alguns títulos não mais circulam em papel, sobrevivendo apenas na versão online; outros simplesmente deixaram de existir. Os exemplares foram ficando mais magros e várias páginas são ocupadas exclusivamente por campanhas publicitárias, demonstrando que as redações atualmente têm menos importância do que os departamentos comerciais. As vendas avulsas são ínfimas e os assinantes, cada vez mais raros (quem você conhece que ainda recebe em casa Istoé ou O Globo, por exemplo? Chega a ser constrangedor o número de e-mais do tipo mala-direta enviados pela editora Abril me pedindo para voltar a comprar seus produtos, dos quais hoje quero distância). Como esses empreendimentos se sustentarão? Essa não é uma questão menor porque, a despeito da venalidade e do mau-caratismo de determinadas empresas, a imprensa, institucionalmente falando, é elemento vital para a democracia.
O atual estágio tecnológico faculta ao indivíduo não pagar pelo ganha-pão de muitos profissionais, por exemplo, no campo da arte e do entretenimento - de fotógrafos(as) a figurinistas, passando por artistas gráficos, tradutores(as), revisores(as), roteiristas, atores e atrizes, compositores(as), cantores(as), musicistas, escritores(as), cinegrafistas, iluminadores **. Começamos também a nos "acostumar" a pensar o trabalho dos(as) jornalistas como algo que não envolve custos ou remuneração. E não há sinais, pelo menos no curto prazo, de mudança nesse cenário. Para não fecharem as portas, restam aos veículos jornalísticos poucas alternativas. Uma delas, perfeitamente aceitável e nobre, é contar com a contribuição financeira daqueles leitores dispostos (e sensibilizados) a ponto de ajudar. Mas isso não é nada, nada simples.
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Uma das grandes armadilhas do capitalismo é convencer as pessoas de que todos podem ter seu lugar ao sol. Basta perseverança e trabalho duro. Não é preciso ser um perito em economia para não levar isso muito a sério. A tendência atual é de maior concentração de renda na mão de poucos, gerando mais desigualdade, sem diminuir a pobreza global, não importando a carga individual de cada trabalhador. Completando esse quadro desolador, salários estão sendo vaporizados numa velocidade impressionante, esvaziados de poder aquisitivo, comprometidos pelo endividamento.
Captar dinheiro para determinadas atividades ficou muito difícil; há menos dinheiro disponível para as pessoas comuns. Isso explica a disseminação do crowdfunding, prática adotada para financiar uma variedade de projetos: construção de abrigos para refugiados, espetáculos artísticos, viagens de atletas em competição, produção de filmes, gravação de discos, publicação de livros... E também a realização de reportagens investigativas - no Brasil, o Diário do Centro do Mundo tem adotado essa estratégia.
Pode-se também simplesmente pedir doações. É o que sempre fizeram várias entidades de alcance mundial.
O problema é que muitas pessoas sabedoras da importância de contribuir com essas ações e projetos não o fazem. E não porque não queiram, mas porque estão elas cada vez mais sem ter de onde tirar.
Há cinco meses deixei de doar para a Unicef (e olha que se trata apenas de R$40,00 mensais). Nas últimas eleições municipais não ajudei sequer com um real a campanha do PSOL e não paguei minha mensalidade sindical várias vezes em 2016. Meu salário - única fonte de renda de que disponho - está achatado há pelo menos quatro anos, sem qualquer ganho real em relação à inflação. Não há qualquer indicativo de melhora; vem aí a PEC 55 (ex-PEC 241) que congelará os investimentos em educação durante 20 anos, com impacto direto na remuneração dos servidores públicos do setor em todo o país (caso deste blogueiro), graças ao efeito cascata esperado nos estados e municípios. Por mais que queira colaborar, não tenho dinheiro pra isso.
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Nas próximas postagens, abordarei o livro A condição humana, de Hannah Arendt.
** Não se trata, pelo menos nesse momento, de um julgamento ou reprimenda moral por parte do blogueiro.
BG de Hoje
Sei que essa canção já foi BG aqui no blog, mas é que a acho tão linda, com seu uso portentoso de um órgão de igreja e os belos vocais - além, é claro, da letra emocionante - que não pude resistir em buscá-la mais uma vez: ARCADE FIRE, My body is cage.