quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A meândrica afetação do discurso filosófico: lendo A barbárie, de Michel Henry (I)


Entre os recomendados aqui do blog (confira na coluna à direita da área das postagens) estão os quadrinhos do Existential Comics, uma maneira bem-humorada e didaticamente atraente de falar sobre Filosofia. Sigo-o também no Twitter. E foi lá no seu perfil que encontrei esta observação simples, mas que vem bem a calhar para o assunto de hoje: "Remember, if you read widely enough you will eventually find someone who defends whatever position you already wanted to believe anyway". [traduzindo: "Lembre-se, se você lê de forma ampla o suficiente, encontrará finalmente alguém que defende qualquer posição que você já quis acreditar de algum jeito"]. É possível dispor de sustentação filosófica para um sem-número de convicções, atitudes, condutas ou simples opiniões - combinem estas ou não com nossa cosmovisão, sejam estas ou não do nosso agrado. Basta, como se disse, ampliar o rol de livros e autores(as) com os quais se tem contato.

Admito que comprei A barbárie*, de Michel Henry, apenas pelo título. Tinha ido à livraria a caça de um outro volume, de uma autora bem diferente (a filósofa brasileira Márcia Tiburi). Enquanto esperava a atendente buscar aquilo que pedira, fiquei observando alguns exemplares expostos na loja (entre estes, o trabalho de que falaremos hoje). Perguntei o preço; estava em oferta. Decidi levar. Ficou parado um bom tempo numa de minhas estantes. Finalmente, resolvi lê-lo nas últimas semanas. Detestei.

Não é difícil ouvir/ler por aí que estamos ameaçados pela barbárie, cercados pela barbárie, precipitados na barbárie. Não seria, portanto, uma tarefa inútil definir melhor o que se quer dizer com o termo. Quando uso essa palavra tenho em mente certas questões: dado o atual estágio civilizatório, como ainda não conseguimos superar os entraves que nos impedem de garantir efetivamente os direitos humanos mais básicos para um contingente enorme de habitantes deste planeta? Dada a quantidade colossal de informação disponível - e facilmente acessível em certa medida - como há tanta ignorância em circulação? Por que mesmo as nações ricas - e as poucas centenas de indivíduos encastelados na elite econômica das nações pobres - agem de modo tão predatório (não raro, com altas doses de violência e desumanidade em seus atos)? E, nesse caso, a quem deveríamos chamar bárbaros?

Michel Henry, entretanto, não lida com nada disso.

Para ele, a ciência, enquanto técnica e um saber indissociável da linguagem matemática, é "a barbárie, a nova barbárie de nosso tempo". Mais: "ela não é somente a barbárie sob a forma extrema e mais inumana já conhecida pelo homem, é a loucura".

De acordo com o filósofo francês, testemunhamos

"um hiperdesenvolvimento do saber científico, acompanhado de uma atrofia da cultura, com sua regressão em certos domínios ou em todos os domínios ao mesmo tempo e, ao final desse processo, sua aniquilação. Ora, semelhante figuração não é nem ideal nem abstrata, é a do mundo em que vivemos, mundo ao qual acaba de surgir um novo tipo de barbárie, mais grave do que todas aquelas que a precederam, e em virtude da qual o homem corre o risco de desaparecer".

Ao longo de seu livro, Henry sempre menciona um suposto divórcio entre a ciência e a cultura: "A relação entre a ciência e a cultura é uma relação de exclusão recíproca".

O que o autor entende por cultura?

"O que é então cultura? Toda cultura é uma cultura da vida em seu duplo sentido, pois a vida constitui ao mesmo tempo o sujeito dessa cultura e seu objeto. É uma ação que a vida exerce sobre si mesma e pela qual ela se transforma, uma vez que é a própria vida que transforma e é transformada. 'Cultura' não designa nada mais. 'Cultura' designa a autotransformação da vida, o movimento por meio do qual ela não deixa de modificar a si mesma a fim de alcançar formas de realizações mais elevadas, a fim de crescer. Porém, se a vida é esse movimento contínuo de autotransformação e de autorrealização, ela é a própria cultura, ou pelo menos a traz inscrita em si e desejada por si como o que ela é".

Como se vê, um conceito que não remete às habituais definições antropológicas de cultura, noção que nos é familiar a partir da metade do século XX. Gostaria que o(a) eventual leitor(a) notasse outra coisa: a vagueza com que o autor se expressa. Sua ideia de cultura nos obriga então a verificar o que ele entende por vida.

"A vida de que falamos não se confunde, portanto, com o objeto de um saber científico, objeto cujo conhecimento seria reservado aos que estão de posse desse saber e que tiveram de adquiri-lo. É antes o que todo mundo sabe, sendo aquilo mesmo que somos. Mas como 'todo mundo', isto é, cada um como ser vivo, pode saber o que é a vida, a não ser na medida em que a vida sabe a si mesma e esse saber original de si constitui sua essência própria? Pois a vida se sente e se experimenta a si mesma, de modo que não há nada nela que ela não experimenta e não sinta. E isso porque o fato de sentir a si mesma é justamente o que faz dela a vida"

A coisa não melhora muito, não é mesmo? A precisão conceitual não é o forte do autor.

Diz-se que Michel Henry (leio isso na orelha do volume que tenho em mãos) foi "criador de um pensamento filosófico original, denominado fenomenologia da vida". Embora a fenomenologia - tal como concebida por Edmund Husserl, que identificava, aliás, uma crise nas ciências - tenha sido fundamental para a obra de filósofos excepcionais (Heidegger, Merleau-Ponty, Sartre), não se pode dizer, penso eu, que seja a mais compreensível das correntes filosóficas. É tarefa árdua muitas vezes descortinar o sentido por trás das palavras dos fenomenólogos. Observe este trecho do livro de Henry:

"A arte é a representação da vida. É porque a vida, por sua essência e pela vontade de seu ser mais íntimo, não se ex-põe jamais, nem se dis-põe na Dimensional extática da fenomenalidade, ou seja, na aparência do mundo, pois ela não pode exibir neste sua realidade própria, mas somente se representar nele, sob a forma de uma representação irreal, de uma 'simples representação'".

Hã? E que tal este?

"Enquanto autoafecção do êx-tase da exterioridade, a sensibilidade é por essência individual, pois a autoafecção constitui, como tal, a essência de toda ipseidade possível".

Pode-se alegar, claro, que A barbárie foi escrito para leitores especializados, pares profissionais do autor. Mas desconfio que Michel Henry não pretendia, com esse livro, suscitar apenas um bate-papo-cabeça restrito a seus colegas de departamento, entre uma e outra xícara de café (ou taça de vinho) após o expediente.

O(a) eventual leitor(a) desta postagem pode estar se perguntando a essa altura: será que vale a pena discutir texto tão pouco convidativo? Diria que sim, pela maneira como ele retrata bem um tipo de discurso filosófico - difundido, aliás, por uma parte dos acadêmicos e profissionais da área - que afasta muitas pessoas "não-iniciadas" da Filosofia, bem como serve de guarda-chuva ou cortina de fumaça para uma série de posicionamentos políticos-ideológicos que não querem, todavia, assumir-se na cena pública como tal.

Termino na próxima terça-feira.
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* HENRY, Michel. A barbárie. São Paulo: É Realizações, 2012 [Tradução: Luiz Paulo Rouanet]

BG de Hoje

Eu tinha uns 15-16 anos na primeira vez em que ouvi THE CLASH, Não era muito fã de rock naquela época (exceção ao Van Halen e Rolling Stones). Estava na casa de um colega da escola e ele colocou pra tocar uma coletânea da banda britânica: Police and Thieves era uma da faixas incluídas. Adorei. Só muito recentemente fui descobrir que essa canção foi gravada originalmente por Junior Murvin (e era um reggae).