quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Um conto de Cidinha da Silva


Semanas atrás, uma ex-colega de faculdade e eu conversávamos sobre como nos tornamos os leitores que hoje somos. Temos quase a mesma idade e um background parental similar: nossa infância passou-se entre as décadas de 1970-80 e nossas mães e pais, oriundos do interiorzão de Minas e a despeito das poucas oportunidades de educação formal/escolar disponíveis para eles, conseguiram se alfabetizar. 

Não eram, contudo, leitores de carteirinha (como várias pessoas de sua condição), o que não os impediu (penso sobretudo em minha mãe) de reconhecer o valor da leitura.

Minha ex-colega e eu não nos deparamos com muitos livros infantis durante a nossa meninice: havia pouquíssimas bibliotecas escolares e comprar esse tipo de produto era algo quase interdito (embora tenha ganhado, aos 12 anos, uma versão adaptada de 20.000 léguas submarinas, o que muito me orgulha até hoje). Diferentemente, porém, de R. (chamemos assim minha ex-colega*), havia uma boa quantidade de livros na casa da minha família, bem acima do que se podia esperar de pessoas pobres como nós.

Tendo cinco irmãos mais velhos possuidores desses objetos (e sendo pelo menos três deles - duas irmãs e um já falecido - leitores qualificados, se me permite a observação meio presunçosa), sempre me senti à vontade entre livros.

Foi nessa altura de nossa conversa que R. falou-me do lindo conto** A coleção de dicionários de capadura na estante, escrito por Cidinha da Silva***. Naturalmente, fui lê-lo. E adorei.

"Os livros têm duas serventias na família Silva dos Santos: dão o ar de pensamento da casa e são fonte preciosa para as pesquisas escolares dos três filhos", escreve a autora. São muitas as residências Brasil afora em que esses objetos figuram apenas como peças decorativas, para "dar um ar de pensamento" (meu pai, que nunca leu um livro na vida, conservou em sua casa alguns exemplares de obras de referência velhos e desatualizados até a sua morte). E muitos "Silvas dos Santos" só adquiriram livros em função das demandas dos filhos, cuja trajetória educacional se deu noutra conjuntura.

Entre mãe e filha - duas personagens do conto -, apesar da diferença de perspectivas, existe um afetuoso entendimento: embora a mãe, "semi-alfabetizada",  considere o "livro um artigo esquisito, de luxo, que ela se acostumou a ver nas casas das patroas", também sabe que a filha (e "todo mundo diz que ela é muito inteligente") "gosta deles, fala com eles, está sempre com eles". Assim se adquire do vendedor de porta em porta quatro volumes do dicionário Aurélio, que, colocados "ao lado dos outros livros", aumentam "o volume de pensamento da casa". É certo que a filha sabe o quanto de trabalho duro - trouxas de roupa para lavar e passar, salgados para entregar, enfim, "todos os ofícios das mães negras para oficiar" - está contido na aquisição daqueles objetos.

Essa história acionou uma série de lembranças na minha cabeça. Em apenas três páginas muito bem escritas, Cidinha da Silva conseguiu condensar uma experiência partilhada por muita gente que viveu (e ainda vive) nas periferias das cidades brasileiras. Se em algumas narrativas de Cada tridente em seu lugar - livro em que se encontra o conto discutido hoje - há uma certa perda de "vitalidade" (como observou Edimilson de Almeida Pereira, no prefácio da publicação), não é o caso de A coleção de dicionários de capadura na estante.

Também não é o caso do excelente conto Dublê de Ogum. Mas escreverei sobre esse texto noutra oportunidade.

Ah, e você pode conhecer mais sobre Cidinha da Silva visitando o blog da escritora:
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* Como não pedi permissão a ela para usar seu nome nesta postagem, faço tal opção.

** Embora o livro do qual provém essa narrativa seja classificado como uma reunião de crônicas, alguns de seus textos têm toda a feição de contos.

*** SILVA, Cidinha da. Cada tridente em seu lugar. 2 ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007


BG de Hoje

Nem sempre a primeira versão - refiro-me à gravação original - será lembrada como a melhor interpretação de determinada canção. Por exemplo, quando Johnny Cash gravou Hurt, da banda de rock pesado Nine Inch Nails, fez algo tão emocionante que Trent Reznor, autor da música, declarou que ela não mais lhe pertencia. Mudando completamente de praia: MARISA MONTE fez algo parecido no disco Memórias, crônicas e declarações de amor (2000) ao estabelecer a versão definitiva, penso eu, de Para ver as meninas, composta por PAULINHO DA VIOLA. Teresa Cristina também deu sua contribuição noutro registro lançado há poucos anos. Ficou bonito. Mas a versão de Marisa Monte é insuperável.