segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

O desaparecimento da esfera pública: lendo A condição humana, de Hannah Arendt (II)


"O que torna a sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de pessoas envolvido, ou ao menos não fundamentalmente, mas o fato de que o mundo entre elas perdeu seu poder de congregá-las, relacioná-las e separá-las. A estranheza de tal situação assemelha-se a uma sessão espírita na qual determinado número de pessoas, reunidas em torno de uma mesa, vissem subitamente, por algum truque mágico, desaparecer a mesa entre elas, de sorte que duas pessoas sentadas em frente uma à outra já não estariam separadas, mas tampouco teriam qualquer relação entre si por meio de algo tangível".


Hannah Arendt - A condição humana



A professora Maria Cristina Müller, da Universidade Estadual de Londrina, numa entrevista publicada em abril de 2013 na revista Filosofia Ciência e Vida*, considera que

"As sociedades deixam de ser livres quando esquecem que a diversidade de opiniões e de pontos de vista representa uma das garantias da existência do próprio domínio político do mundo; qualquer tentativa de uniformização e de eliminação da dimensão da pluralidade pode levar à fatal perda da liberdade e à consequente dominação. Considero, portanto, a maior contribuição de Hannah Arendt à Política contemporânea o resgate do sentido da política para um mundo que desacreditou da própria capacidade humana de um mundo comum e da Política".

Em ordem cronológica de publicação, A condição humana é posterior As origens do totalitarismo, trabalho no qual Hannah Arendt se perguntava como foi possível a implementação de regimes tão iníquos quanto o nazismo e o stalinismo. Embora A condição humana tenha sua motivação própria, não seria descabido dizer que as reflexões ali apresentadas funcionam também como uma advertência para tentarmos não seguir os rumos que nos conduziram aos terríveis eventos tratados em As origens do totalitarismo. Como observou Maria Cristina Müller na passagem acima, a pluralidade inerente à condição humana, caracterizada pela diversidade de opiniões e de pontos de vista, é essencial para o exercício da liberdade. O nazismo e o stalinismo, além das atrocidades cometidas, visaram a uniformização da opinião e impediram a espontaneidade própria da ação política. Como experiências que marcaram profundamente o século XX - e com adeptos fanáticos ainda no século XXI - , esses regimes totalitários encontraram no descrédito e no esvaziamento da política o ambiente propício para se disseminar. A condição humana leva-nos a pensar no valor das coisas que deveriam dizer respeito a todos nós, o espaço público que deveríamos construir (tendo em conta a pluralidade), o domínio político do mundo ao qual deveríamos acorrer.

Na mesma entrevista, a professora da Universidade Estadual de Londrina assevera que

"A importância do domínio público se apresenta por ser o espaço mundano do aparecimento dos homens, o espaço onde a espontaneidade é possível e onde a Política - o espaço entre-os-homens - floresce. Portanto, Política e liberdade se identificam. A pluralidade humana faz com que os indivíduos sintam-se pertencentes à humanidade, coadjuvantes no mundo do qual também fazem parte. A pluralidade não permite que a solidão domine e destrua a capacidade humana de sentir-se pertencente a um mundo que agrega singularidade e pluralidade. Talvez seja isso que concede a cada indivíduo a responsabilidade para com o outro e para com o mundo".

É no domínio público que os seres humanos podem realmente aparecer, no sentido fenomenológico; podem ser percebidos, vistos e ouvidos por outros sujeitos dotados de consciência. Só no domínio público, no espaço entre-os-homens, podemos nos sentir pertencentes a algo mais relevante do que a trivialidade de nossas vidinhas domésticas e mais significativo do que a frivolidade de nossas ambições particulares. Quando conseguimos construir esse espaço entre-os-homens (e não é fácil), quando conseguimos vislumbrar um mundo comum do qual fazemos parte e pelo qual somos, sob variados aspectos, responsáveis, a Política (em seu sentido maior) e a liberdade podem ter lugar.

Na postagem anterior, entretanto, escrevera que os seres humanos hoje não parecem interessados na construção de um mundo comum e me perguntei como isso aconteceu. Há algo que possamos fazer a respeito?

Antes, porém, um pouco de ficção científica.

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A Netflix, no dia 25 de novembro, lançou a série brasileira 3%. No futuro ali imaginado, o país se divide entre o Continente (onde vivem os milhões e milhões de pobres e miseráveis) e o Mar Alto (lar dos endinheirados). A porcentagem do título refere-se àqueles que, através de uma competição brutal, conseguem sair do Continente e alcançar o Mar Alto. Ainda não tive oportunidade de assistir ao programa.

Essa história me lembra o filme norte-americano Elysium (direção de Neill Bloomkamp, 2013), cujo elenco, aliás, conta com atores brasileiros (Alice Braga e Wagner Moura). Também uma distopia futurística (a narrativa se passa no ano de 2159), Elysium apresenta-nos um habitat bastante confortável, construído por e para os ricaços, localizado na órbita de nosso planeta, com tudo o que de melhor a tecnologia avançada pode oferecer. Enquanto isso, na Terra, permanecem os bilhões de "não-privilegiados", comendo o pão que o diabo amassou. Como havia gostado muito de Distrito 9 - outro trabalho (muito bom, por sinal) do diretor sul-africano Neill Bloomkamp -, esperava um pouco mais de Elysium. Embora não tenha ficado plenamente satisfeito, é um filme acima da média.

Presente nos dois mundos do futuro retratados ficcionalmente, tanto em 3% quanto em Elysium, o abismo de desigualdade socioeconômica não é algo estranho para nós, habitantes do mundo real do presente.
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Pensemos, por exemplo, no que impulsionou protestos como o Occupy Wall Street (#OWS). Nascido no Zuccotti Park, em Manhattan (NY), o movimento ramificou-se noutras partes do planeta, opondo-se, sobretudo, à influência e ao poder desproporcional das corporações empresariais (o que enfraquece a autoridade do Estado e a soberania dos governos), ao compromisso apenas com os lucros, demonstrado pelos investidores no mercado financeiro e pelo setor bancário, além de denunciar a (cada vez mais gritante) desigualdade econômica e social. Quanto a este último ponto, basta saber que a riqueza detida pelos 62 bilionários mais ricos da Terra equivale a tudo o que possui a metade mais pobre da população mundial para admitir que esses manifestantes não estão vendo chifre em cabeça de cavalo.

A abissal fratura entre a riqueza e a pobreza globais (tema, convém ressaltar, nem mesmo mencionado de passagem em A condição humana) revela-nos que as tentativas de atingir um entendimento mínimo, comunal, sobre como conduzirmos esse planeta (pelo menos para que ele não se deteriore de vez e se torne inabitável) talvez nunca ultrapassem a dimensão da utopia e cheguem ao plano da realidade. Acrescido a tudo isso, testemunhamos a hipertrofia da esfera privada da existência, ao mesmo tempo em que constatamos o amesquinhamento  do domínio público, comprometendo ainda mais o valor da ação política. Sobre este último ponto, Hannah Arendt tem muito a dizer.

Peço a atenção (e a paciência) do(a) eventual leitor(a) para o seguinte excerto de A condição humana. É longo, mas julgo-o importante para nossa discussão posterior:

"A verdade bastante incômoda de tudo isso é que o triunfo do mundo moderno sobre a necessidade se deve à emancipação do trabalho, isto é, ao fato de que o animal laborans foi admitido no domínio público; e, no entanto, enquanto o animal laborans continuar de posse dele, não poderá existir um verdadeiro domínio público, mas apenas atividades privadas exibidas à luz do dia. O resultado é aquilo que eufemisticamente é chamado de cultura de massas; e o seu arraigado problema é uma infelicidade universal, devida, de um lado, ao problemático equilíbrio entre o trabalho e o consumo e, de outro, à persistente demanda do animal laborans de obtenção de uma felicidade que só pode ser alcançada quando os processos vitais de exaustão e de regeneração, de dor e de alijamento da dor, atingem um perfeito equilíbrio. A universal demanda de felicidade e a infelicidade extensamente disseminada em nossa sociedade (e que são apenas os dois lados da mesma moeda) são alguns dos mais persuasivos sintomas de que já começamos a viver em uma sociedade de trabalho que não tem suficiente trabalho para mantê-la contente. Pois somente o animal laborans, e não o artífice e nem o homem de ação, sempre demandou ser 'feliz' ou pensou que homens mortais pudessem ser felizes.
[...]
Quanto mais fácil se tornar a vida em sociedade de consumidores ou trabalhadores, mais difícil será preservar a consciência das exigências da necessidade que a compele, mesmo quando a dor e o esforço, as manifestações externas da necessidade, são quase imperceptíveis. O perigo é que tal sociedade, deslumbrada pela abundância de sua crescente fertilidade e presa ao suave funcionamento do processo interminável, já não seria capaz de reconhecer a sua própria futilidade - a futilidade de uma vida que 'não se fixa nem se realiza em assunto algum que seja permanente, que continue a existir depois de terminado [seu] trabalho' ".

Tenhamos em mente que a filósofa escreveu isso na década de 1950, pensando no modelo de organização social existente na Europa ocidental e nos EUA (para onde imigrou antes do início da 2ª Guerra Mundial). Ainda assim, considero válidas suas reflexões pois, mesmo em países situados na periferia do capitalismo, como o Brasil, nota-se, ainda que não em todo o conjunto da população, essa ausência de percepção da dor e do esforço dentro da necessidade que caracteriza o trabalho contemporâneo, bem como avistam-se alguns traços dessa "abundância" e do "suave funcionamento" mencionados por Arendt.

O termo em latim (animal laborans) usado pela autora não é gratuito. Contraposto a outra expressão latina - homo faber, com a qual ela designa o lado humano envolvido com a obra e o artifício necessários para a fabricação dos objetos de nosso mundo -, animal laborans representa todos nós, submersos no (e reduzidos ao) ciclo do trabalho. Não podemos abrir mão dele (morreríamos); muitas das decisões - vitais - que tomamos são baseadas nele (inclusive porque grande parte destas depende do alcance da renda proporcionada por ele). Queremos a "felicidade". Como não a encontramos no espaço público (não é esse o seu propósito), terreno agonístico da política, tentamos alcançá-la voltando-nos cada vez mais para a "segurança" de nossa intimidade, protegendo-nos nas pequenas alegrias domésticas e familiares, alimentadas pelo consumo de coisas, produtos e serviços, com o que pensamos estar melhorando nossa "qualidade de vida" (e, no atual contexto digital, em que, equivocadamente, penso eu, acreditamos haver mais interconexão entre os indivíduos, fazemos questão de esfregar na cara do outro o quanto estamos "seguros" e "felizes", postando milhares e milhares de fotos de nossa vida privada nas ditas redes sociais). Quanto ao mundo exterior, o mundo comunal sobre o qual deveríamos demonstrar alguma responsabilidade, não é da nossa conta! Que se exploda!

É claro que nós, humanos, necessitamos de um território nosso, um refúgio do mundo público, até mesmo para que o ciclo metabólico exigido pelo trabalho possa ocorrer em paz e nossa participação política seja potencializada. Entretanto, hoje contentamo-nos apenas com a satisfação imediata decorrente das "recompensas" do trabalho. Como bem observou o professor Adriano Correia, da Universidade Federal de Goiás,***,

"Não há espaço para a política onde não há uma dimensão de grandeza que transcenda o mero estar vivo e os deleites que ele envolve, onde a liberdade não se sobreponha à saciedade. Os ideais de abundância de vida confortável e da saciedade se afirmaram em face de todos os outros na modernidade. Com a vitória do animal laborans, é a existência do próprio mundo, como obra do homem, que está em questão, sob a permanente ameaça de ser tragado pelos processos mobilizados para a satisfação das necessidades, sempre pululantes e fonte de intensa experiência prazerosa do mero estar vivo".

Estamos, urgentemente, precisando forjar novos ideais. Mas de onde viriam eles?

Encerro esta série de textos sobre A condição humana na próxima segunda-feira.
__________
* Arendt extraordinária. Filosofia Ciência e Vida, São Paulo, ano VI, n. 81, abr. 2013. p. 5-13

** ARENDT, Hannah. A condição humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013 [Tradução de Roberto Barroso]

*** O professor Adriano Correia realizou a revisão técnica de A condição humana acima referenciada. É dele também a Apresentação do livro: provém desta a observação citada na postagem.

BG de Hoje

A banda 4 NON BLONDES teve (com o perdão do clichê) uma carreira meteórica. Seu primeiro - e único - disco, Bigger, Better, Faster, More! (1992), vendeu horrores, puxado, claro, pelo hipermegahit What's Up. A vocalista, líder e principal compositora do grupo, Linda Perry, partiu para um trabalho solo, não muito bem sucedido, infelizmente (sua carreira como compositora e produtora musical, no entanto, decolou). Seu modo de cantar, unindo entusiasmo, vigor e uma dose de ironia, me lembra muito a falecida (e saudosa) cantora brasileira Cássia Eller. Comprei Bigger, Better, Faster, More! na época do lançamento. Tem muita coisa boa ali (acabei perdendo o vinil numa dessas malditas festas avacalhadas da minha juventude e, até hoje, não achei a versão em CD para comprar). Outra canção daquele álbum que fez um relativo sucesso radiofônico foi a belíssima Spaceman. Caso o(a) eventual leitor(a) tenha lido o prólogo de A condição humana irá perceber que o tema da ida ao espaço sideral, como modo de fugir da Terra e seus problemas, está presente, tanto neste trecho do livro de Hannah Arendt quanto na letra de Spaceman. E eu, que não sonho em viajar pelo universo, também me pergunto, agora já sem esperança: "Is there a better life for me?"