segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O desaparecimento da esfera pública: lendo A condição humana, de Hannah Arendt (III)


"É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não se poderia esperar de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Esse caráter de surpreendente impresciência é inerente a todo início e a toda origem. Assim, a origem da vida a partir da matéria inorgânica é uma infinita improbabilidade dos processos inorgânicos, como o é o surgimento da Terra, do ponto de vista dos processos do universo, ou a evolução da vida humana a partir da vida animal. O novo sempre acontece em oposição à esmagadora possibilidade das leis estatísticas e à probabilidade que, para todos os fins práticos e cotidianos, equivale à certeza: assim, o novo sempre aparece na forma de um milagre. O fato de o homem ser capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável"

Hannah Arendt - A condição humana

 
Até agora, nas duas postagens referentes ao livro de Hannah Arendt (disponíveis aqui e aqui), vimos que, a partir da distinção entre trabalho, obra e ação, a autora situa a condição de possibilidade da liberdade na última (os membros das sociedades modernas, todavia, encontram-se quase que inteiramente absorvidos pelo primeiro e conformam-se, na maioria dos casos, apenas com o desfrute dos objetos fabricados graças à segunda). Vimos também que a hipertrofia do trabalho fez com que a vida privada dos indivíduos sobrepujasse o domínio público, tornando-nos menos responsáveis e comprometidos com o mundo comum do qual todos somos parte. Uma vez que os ideais de conforto e saciedade (apenas para mim e para aqueles pertencentes a meu círculo privado, bem entendido) passaram a ser a única meta buscada pelos indivíduos em sociedade, terminei o último texto perguntado-me de onde poderiam vir outros ideais, orientadores de gestos e atitudes não-privativas, relacionados com o bem público e com a política para além de seu sentido ordinário (concebida em sentido mais amplo, a política não se reduz às tecnicalidades da administração estatal ou ao preenchimento de cargos na burocracia governamental através de eleições periódicas, como estamos bovinamente acostumados; a política deveria "inspirar os homens a ousarem o extraordinário", diria a pensadora alemã)

A condição humana não fornece uma resposta direta a esse questionamento, mas indica de quem se poderia esperar a modelagem desses outros ideais: os novos seres humanos a nascer.

Segundo Hannah Arendt ¹, "cada homem é único, de sorte que a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo". Cada indivíduo, ao ingressar na humanidade, procurará, em sua trajetória de vida, responder a pergunta fundamental: quem é você?. Para Arendt,  "essa revelação de quem alguém é está implícita tanto em suas palavras quanto em seus feitos", Nessa procura, os seres humanos agem: colocam-se (inclusive fisicamente, posicionando seus corpos) no espaço público, dão-se a ver, buscam ser reconhecidos como pertencentes e merecedores de ocupar o mesmo domínio comum a todos e, desse modo, possibilitar a formação do espaço-entre - intangível, mas não irreal - da teia das relações humanas. Tais ações, porém (e isso é importantíssimo), pouco significariam se ocorressem na ausência discursiva. Como afirma a filósofa,

"desacompanhada do discurso, a ação perderia não só o seu caráter revelador, como, e pelo mesmo motivo, o seu sujeito, por assim dizer: em lugar de homens que agem teríamos robôs executores a realizar coisas que permaneceriam humanamente incompreensíveis. A ação muda deixaria de ser ação, pois não haveria mais um ator; e o ator, realizador de feitos, só é possível se for, ao mesmo tempo, o pronunciador de palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada pela palavra, e embora seu ato possa ser percebido em seu aparecimento físico bruto, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante por meio da palavra na qual ele se identifica como o ator, anuncia o que faz, fez e pretende fazer".

É na esfera pública, no espaço-entre, que os seres humanos vivenciam suas estórias (a autora usa em seu texto o termo inglês story, diferente de history). Para o ator - ou seja, o indivíduo empenhado em determinada ação - a significação completa de seus atos (e, portanto, das estórias em que figura) lhe escapa. O resultado das grandes ações políticas, já dissemos, são imprevisíveis. "A ação só se revela plenamente para o contador da estória [storyteller], ou seja, para o olhar retrospectivo do historiador, que realmente sempre soube melhor o que aconteceu do que os próprios participantes", escreve ela.

Porém, como o significado da ação e do discurso - "as mais altas atividades do domínio público", nas palavras de Arendt - reside em seu "próprio cometimento, e não em sua motivação ou em seu resultado", as sociedades modernas foram progressivamente desistindo da política em favor dos benefícios (materializados, pode-se dizer) provenientes do trabalho e da obra,

"Preocupada desde cedo com produtos tangíveis e lucros demonstráveis, e mais tarde obcecada com o funcionamento suave e com a sociabilidade, a idade moderna não foi a primeira a denunciar a ociosidade da ação e do discurso, em particular, e da política em geral. O exaspero ante a tripla frustração da ação - a imprevisibilidade dos resultados, a irreversibilidade do processo e o anonimato dos autores - é quase tão antigo quanto a história escrita [...] Essa tentativa de substituir a ação pela fabricação é visível em todos os argumentos contra a 'democracia', os quais, por mais consistentes e razoáveis que sejam, sempre se transformam em argumentos contra os elementos essenciais da política".
Se houver alguma maneira de resgatar o valor da politica, é nos seres humanos vindouros que se deve apostar.

Num artigo publicado na revista Filosofia Ciência e Vida ², Vitor Bartoletti Sartori  nos lembra que Hannah Arendt, ao longo de seu livro,

"destaca que vivemos em um mundo em que a todo momento são acrescidas novas possibilidades em virtude do simples fato de novos indivíduos, sem vínculos com o mundo presente, serem trazidos ao convívio social. Nesse sentido, em diálogo com Agostinho de Hipona (354- 430), a autora de A condição humana aponta que, pelo simples fato de diariamente haver nascimentos de indivíduos únicos, existe a possibilidade do advento de algo extraordinário. 
Nesse sentido, eles não devem, assim, se voltar às suas potencialidades mais autênticas no ser-para-a-morte de Martin Heidegger (1889-1976) - devem mirar cada nascimento com admiração única. Se o autor de Ser e tempo enfatiza a finitude da vida e dos indivíduos configurados enquanto uma existência concreta, um ser-aí, que se conforma enquanto ser-no-mundo, a autora alemã [...] liga a vida humana finita ao dom da vida, ao dom de poder trazer à realidade efetiva do mundo um novo ente de características únicas, que poderiam, no limite, dar ensejo à mudança, a algo como um novo começo para a humanidade".

E Sartori acrescenta mais adiante:

"Arendt liga o nascimento ao extraordinário, defendendo que cada nascimento é, em verdade, um grande 'acontecimento' (termo que apropria de Heidegger, diga-se de passagem), ao contrário do que se daria em seu mestre, que liga a autenticidade, com as devidas mediações, à morte, e não ao nascimento".

O(a) eventual leitor(a) talvez se lembre de que, na primeira postagem desta série sobre A condição humana, registrei que há constantes referências a Jesus Cristo no livro da pensadora alemã. Apesar da perspectiva secular assumida pela autora neste trabalho, entende-se, dada a influência do cristianismo na formação das sociedades ocidentais, o porquê das menções à figura basilar dessa religião. E que mito seria mais adequado do que o nascimento de Jesus para ilustrar o quanto a natalidade pode ser extraordinária?

Não se tem garantia alguma de que novos indivíduos serão capazes de estabelecer um domínio público do mundo, significativo e aberto a todos os seres humanos. Para ser sincero, não ponho confiança alguma nisso. A humanidade, entretanto, sempre pode surpreender - para o pior, mas também para o melhor.

Em Entre o passado e o futuro ³, livro publicado antes de A condição humana, Arendt  já escrevera:

"A história, em contraposição com a natureza, é repleta de eventos; aqui, o milagre do acidente e da infinita improbabilidade ocorre com tanta frequência que parece estranho até mesmo falar de milagres. Mas o motivo dessa frequência está simplesmente no fato de que os processos históricos são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa humana, pelo initium que é o homem enquanto ser que age. Não é, pois, nem um pouco supersticioso, e até mesmo um aviso de realismo, procurar pelo imprevisível e pelo impredizível, estar preparado para quando vierem e esperar 'milagres' na dimensão da política. E, com quanto mais força penderem os pratos da balança em favor do desastre, mais miraculoso parecerá o ato que resulta na liberdade, pois é o desastre e não a salvação que acontece sempre automaticamente e que parece sempre portanto irresistível. 
Objetivamente, isto é, vendo do lado de fora e sem levar em conta que o homem é um início e um inciador, as possibilidades de que o amanhã seja como o hoje são sempre esmagadoras. Não tão esmagadoras, é verdade, mas quase tanto como as possibilidades de que não surgisse nunca uma Terra dentre as ocorrências cósmicas, de que nenhuma vida se desenvolvesse a partir de processos inorgânicos, e de que não emergisse homem algum da evolução da vida animal. A diferença decisiva entre as 'infinitas improbabilidades' sobre as quais se baseia a realidade de nossa vida terrena e o caráter miraculoso inerente aos eventos que estabelecem a realidade histórica está em que, na dimensão humana, conhecemos o autor dos 'milagres'. São homens que os realizam - homens que, por terem recebido o dúplice dom da liberdade e da ação, podem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito".

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Penso que não seria adequado encerrar esta série sem pelos menos apresentar uma crítica à Hannah Arendt.

Como já havia dito na primeira postagem, a autora alemã ataca vários pontos do pensamento marxista, entre estes a paradoxal ausência de uma reflexão mais aprofundada, na obra de Marx, sobre como se formariam comunidades políticas dentro do comunismo. O ensaísta e crítico literário Marshall Berman, no excepcional livro Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade , faz o seguinte comentário a esse respeito:

"Essa crítica a Marx levanta um autêntico e urgente problema humano. Entretanto, Arendt não obtém resultados melhores que os de Marx na sua tentativa de resolvê-lo. Aqui [n'A condição humana], como em muitos de seus livros, tece uma esplêndida retórica em torno da vida e ação públicas, mas não deixa claro em que consistem essa vida e essa ação - salvo a ideia de que a vida política não inclui as atividades cotidianas das pessoas, seu trabalho e suas relações de produção. (Essas são atribuídas aos 'cuidados domésticos', um âmbito subpolítico, que Arendt considera como desprovido da capacidade de criar valores humanos). Ela nunca esclarece o que homens e mulheres modernos podem partilhar, além de retórica sublime. Arendt tem razão em afirmar que Marx jamais desenvolveu uma teoria da comunidade política e que isso é um problema sério. Porém, a questão é que, dado o impulso niilista do moderno desenvolvimento pessoal e social, não está claro que fronteiras políticas o homem moderno pode criar".

Berman também afirma que o século XX produziu um "desolador achatamento do pensamento social". A análise teórica da vida moderna, segundo ele, dividiu-se em "duas antíteses estéreis": de um lado a " 'modernolatria' " e, do outro, o " 'desespero cultural' " - no qual, junto com Ezra Pound, José Ortega & Gasset, Michel Foucault e Herbert Marcuse (entre outros) estaria Hannah Arendt. Para esses pensadores, "toda a vida moderna parece oca, estéril, rasa, 'unidimensional', vazia de possibilidades humanas: tudo o que se assemelha a liberdade ou beleza é na verdade um engodo, destinado a produzir escravização e horror ainda mais profundos". Não sei se concordo inteiramente com o ensaísta nessa passagem; afinal, consigo perceber traços de esperança em A condição humana - ainda que seja uma esperança lançada para as gerações futuras.

Na próxima semana - última postagem do ano - escreverei sobre a série televisiva Mr. Robot

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¹ ARENDT, Hannah. A condição humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013 [Tradução de Roberto Raposo]

² SARTORI, Vitor Bartoletti. Questão de gênero. Filosofia Ciência e Vida, São Paulo, ano VII, n. 94, mai. 2014. p. 15-23

³ ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2011 [Tradução de Mauro W. Barbosa]

BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986 [Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioruitti]


BG de Hoje

Cruzada - linda, lindíssima canção resultante da parceria entre TAVINHO MOURA e Márcio Borges - foi gravada originalmente, por Beto Guedes, se não me engano. Zizi Possi (uma cantora que eu adoro) também colocou-a num disco seu. Mas nenhuma versão, penso, ficou tão perfeita quanto a do BOCA LIVRE. No vídeo abaixo, o cantor Renato Braz encaixa-se como uma luva na apresentação.