"É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não se poderia esperar de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Esse caráter de surpreendente impresciência é inerente a todo início e a toda origem. Assim, a origem da vida a partir da matéria inorgânica é uma infinita improbabilidade dos processos inorgânicos, como o é o surgimento da Terra, do ponto de vista dos processos do universo, ou a evolução da vida humana a partir da vida animal. O novo sempre acontece em oposição à esmagadora possibilidade das leis estatísticas e à probabilidade que, para todos os fins práticos e cotidianos, equivale à certeza: assim, o novo sempre aparece na forma de um milagre. O fato de o homem ser capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável"
Hannah Arendt - A condição humana
Até agora, nas duas postagens referentes ao livro de Hannah Arendt (disponíveis aqui e aqui), vimos que, a partir da distinção entre trabalho, obra e ação, a autora situa a condição de possibilidade da liberdade na última (os membros das sociedades modernas, todavia, encontram-se quase que inteiramente absorvidos pelo primeiro e conformam-se, na maioria dos casos, apenas com o desfrute dos objetos fabricados graças à segunda). Vimos também que a hipertrofia do trabalho fez com que a vida privada dos indivíduos sobrepujasse o domínio público, tornando-nos menos responsáveis e comprometidos com o mundo comum do qual todos somos parte. Uma vez que os ideais de conforto e saciedade (apenas para mim e para aqueles pertencentes a meu círculo privado, bem entendido) passaram a ser a única meta buscada pelos indivíduos em sociedade, terminei o último texto perguntado-me de onde poderiam vir outros ideais, orientadores de gestos e atitudes não-privativas, relacionados com o bem público e com a política para além de seu sentido ordinário (concebida em sentido mais amplo, a política não se reduz às tecnicalidades da administração estatal ou ao preenchimento de cargos na burocracia governamental através de eleições periódicas, como estamos bovinamente acostumados; a política deveria "inspirar os homens a ousarem o extraordinário", diria a pensadora alemã)
A condição humana não fornece uma resposta direta a esse questionamento, mas indica de quem se poderia esperar a modelagem desses outros ideais: os novos seres humanos a nascer.
Segundo Hannah Arendt ¹, "cada homem é único, de sorte que a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo". Cada indivíduo, ao ingressar na humanidade, procurará, em sua trajetória de vida, responder a pergunta fundamental: quem é você?. Para Arendt, "essa revelação de quem alguém é está implícita tanto em suas palavras quanto em seus feitos", Nessa procura, os seres humanos agem: colocam-se (inclusive fisicamente, posicionando seus corpos) no espaço público, dão-se a ver, buscam ser reconhecidos como pertencentes e merecedores de ocupar o mesmo domínio comum a todos e, desse modo, possibilitar a formação do espaço-entre - intangível, mas não irreal - da teia das relações humanas. Tais ações, porém (e isso é importantíssimo), pouco significariam se ocorressem na ausência discursiva. Como afirma a filósofa,
É na esfera pública, no espaço-entre, que os seres humanos vivenciam suas estórias (a autora usa em seu texto o termo inglês story, diferente de history). Para o ator - ou seja, o indivíduo empenhado em determinada ação - a significação completa de seus atos (e, portanto, das estórias em que figura) lhe escapa. O resultado das grandes ações políticas, já dissemos, são imprevisíveis. "A ação só se revela plenamente para o contador da estória [storyteller], ou seja, para o olhar retrospectivo do historiador, que realmente sempre soube melhor o que aconteceu do que os próprios participantes", escreve ela.
Porém, como o significado da ação e do discurso - "as mais altas atividades do domínio público", nas palavras de Arendt - reside em seu "próprio cometimento, e não em sua motivação ou em seu resultado", as sociedades modernas foram progressivamente desistindo da política em favor dos benefícios (materializados, pode-se dizer) provenientes do trabalho e da obra,
Num artigo publicado na revista Filosofia Ciência e Vida ², Vitor Bartoletti Sartori nos lembra que Hannah Arendt, ao longo de seu livro,
"desacompanhada do discurso, a ação perderia não só o seu caráter revelador, como, e pelo mesmo motivo, o seu sujeito, por assim dizer: em lugar de homens que agem teríamos robôs executores a realizar coisas que permaneceriam humanamente incompreensíveis. A ação muda deixaria de ser ação, pois não haveria mais um ator; e o ator, realizador de feitos, só é possível se for, ao mesmo tempo, o pronunciador de palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada pela palavra, e embora seu ato possa ser percebido em seu aparecimento físico bruto, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante por meio da palavra na qual ele se identifica como o ator, anuncia o que faz, fez e pretende fazer".
É na esfera pública, no espaço-entre, que os seres humanos vivenciam suas estórias (a autora usa em seu texto o termo inglês story, diferente de history). Para o ator - ou seja, o indivíduo empenhado em determinada ação - a significação completa de seus atos (e, portanto, das estórias em que figura) lhe escapa. O resultado das grandes ações políticas, já dissemos, são imprevisíveis. "A ação só se revela plenamente para o contador da estória [storyteller], ou seja, para o olhar retrospectivo do historiador, que realmente sempre soube melhor o que aconteceu do que os próprios participantes", escreve ela.
Porém, como o significado da ação e do discurso - "as mais altas atividades do domínio público", nas palavras de Arendt - reside em seu "próprio cometimento, e não em sua motivação ou em seu resultado", as sociedades modernas foram progressivamente desistindo da política em favor dos benefícios (materializados, pode-se dizer) provenientes do trabalho e da obra,
"Preocupada desde cedo com produtos tangíveis e lucros demonstráveis, e mais tarde obcecada com o funcionamento suave e com a sociabilidade, a idade moderna não foi a primeira a denunciar a ociosidade da ação e do discurso, em particular, e da política em geral. O exaspero ante a tripla frustração da ação - a imprevisibilidade dos resultados, a irreversibilidade do processo e o anonimato dos autores - é quase tão antigo quanto a história escrita [...] Essa tentativa de substituir a ação pela fabricação é visível em todos os argumentos contra a 'democracia', os quais, por mais consistentes e razoáveis que sejam, sempre se transformam em argumentos contra os elementos essenciais da política".Se houver alguma maneira de resgatar o valor da politica, é nos seres humanos vindouros que se deve apostar.
Num artigo publicado na revista Filosofia Ciência e Vida ², Vitor Bartoletti Sartori nos lembra que Hannah Arendt, ao longo de seu livro,
"destaca que vivemos em um mundo em que a todo momento são acrescidas novas possibilidades em virtude do simples fato de novos indivíduos, sem vínculos com o mundo presente, serem trazidos ao convívio social. Nesse sentido, em diálogo com Agostinho de Hipona (354- 430), a autora de A condição humana aponta que, pelo simples fato de diariamente haver nascimentos de indivíduos únicos, existe a possibilidade do advento de algo extraordinário.
Nesse sentido, eles não devem, assim, se voltar às suas potencialidades mais autênticas no ser-para-a-morte de Martin Heidegger (1889-1976) - devem mirar cada nascimento com admiração única. Se o autor de Ser e tempo enfatiza a finitude da vida e dos indivíduos configurados enquanto uma existência concreta, um ser-aí, que se conforma enquanto ser-no-mundo, a autora alemã [...] liga a vida humana finita ao dom da vida, ao dom de poder trazer à realidade efetiva do mundo um novo ente de características únicas, que poderiam, no limite, dar ensejo à mudança, a algo como um novo começo para a humanidade".
E Sartori acrescenta mais adiante:
"Arendt liga o nascimento ao extraordinário, defendendo que cada nascimento é, em verdade, um grande 'acontecimento' (termo que apropria de Heidegger, diga-se de passagem), ao contrário do que se daria em seu mestre, que liga a autenticidade, com as devidas mediações, à morte, e não ao nascimento".
O(a) eventual leitor(a) talvez se lembre de que, na primeira postagem desta série sobre A condição humana, registrei que há constantes referências a Jesus Cristo no livro da pensadora alemã. Apesar da perspectiva secular assumida pela autora neste trabalho, entende-se, dada a influência do cristianismo na formação das sociedades ocidentais, o porquê das menções à figura basilar dessa religião. E que mito seria mais adequado do que o nascimento de Jesus para ilustrar o quanto a natalidade pode ser extraordinária?
Não se tem garantia alguma de que novos indivíduos serão capazes de estabelecer um domínio público do mundo, significativo e aberto a todos os seres humanos. Para ser sincero, não ponho confiança alguma nisso. A humanidade, entretanto, sempre pode surpreender - para o pior, mas também para o melhor.
Em Entre o passado e o futuro ³, livro publicado antes de A condição humana, Arendt já escrevera:
"A história, em contraposição com a natureza, é repleta de eventos; aqui, o milagre do acidente e da infinita improbabilidade ocorre com tanta frequência que parece estranho até mesmo falar de milagres. Mas o motivo dessa frequência está simplesmente no fato de que os processos históricos são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa humana, pelo initium que é o homem enquanto ser que age. Não é, pois, nem um pouco supersticioso, e até mesmo um aviso de realismo, procurar pelo imprevisível e pelo impredizível, estar preparado para quando vierem e esperar 'milagres' na dimensão da política. E, com quanto mais força penderem os pratos da balança em favor do desastre, mais miraculoso parecerá o ato que resulta na liberdade, pois é o desastre e não a salvação que acontece sempre automaticamente e que parece sempre portanto irresistível.
Objetivamente, isto é, vendo do lado de fora e sem levar em conta que o homem é um início e um inciador, as possibilidades de que o amanhã seja como o hoje são sempre esmagadoras. Não tão esmagadoras, é verdade, mas quase tanto como as possibilidades de que não surgisse nunca uma Terra dentre as ocorrências cósmicas, de que nenhuma vida se desenvolvesse a partir de processos inorgânicos, e de que não emergisse homem algum da evolução da vida animal. A diferença decisiva entre as 'infinitas improbabilidades' sobre as quais se baseia a realidade de nossa vida terrena e o caráter miraculoso inerente aos eventos que estabelecem a realidade histórica está em que, na dimensão humana, conhecemos o autor dos 'milagres'. São homens que os realizam - homens que, por terem recebido o dúplice dom da liberdade e da ação, podem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito".
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Penso que não seria adequado encerrar esta série sem pelos menos apresentar uma crítica à Hannah Arendt.
Como já havia dito na primeira postagem, a autora alemã ataca vários pontos do pensamento marxista, entre estes a paradoxal ausência de uma reflexão mais aprofundada, na obra de Marx, sobre como se formariam comunidades políticas dentro do comunismo. O ensaísta e crítico literário Marshall Berman, no excepcional livro Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade ⁴, faz o seguinte comentário a esse respeito:
"Essa crítica a Marx levanta um autêntico e urgente problema humano. Entretanto, Arendt não obtém resultados melhores que os de Marx na sua tentativa de resolvê-lo. Aqui [n'A condição humana], como em muitos de seus livros, tece uma esplêndida retórica em torno da vida e ação públicas, mas não deixa claro em que consistem essa vida e essa ação - salvo a ideia de que a vida política não inclui as atividades cotidianas das pessoas, seu trabalho e suas relações de produção. (Essas são atribuídas aos 'cuidados domésticos', um âmbito subpolítico, que Arendt considera como desprovido da capacidade de criar valores humanos). Ela nunca esclarece o que homens e mulheres modernos podem partilhar, além de retórica sublime. Arendt tem razão em afirmar que Marx jamais desenvolveu uma teoria da comunidade política e que isso é um problema sério. Porém, a questão é que, dado o impulso niilista do moderno desenvolvimento pessoal e social, não está claro que fronteiras políticas o homem moderno pode criar".
Berman também afirma que o século XX produziu um "desolador achatamento do pensamento social". A análise teórica da vida moderna, segundo ele, dividiu-se em "duas antíteses estéreis": de um lado a " 'modernolatria' " e, do outro, o " 'desespero cultural' " - no qual, junto com Ezra Pound, José Ortega & Gasset, Michel Foucault e Herbert Marcuse (entre outros) estaria Hannah Arendt. Para esses pensadores, "toda a vida moderna parece oca, estéril, rasa, 'unidimensional', vazia de possibilidades humanas: tudo o que se assemelha a liberdade ou beleza é na verdade um engodo, destinado a produzir escravização e horror ainda mais profundos". Não sei se concordo inteiramente com o ensaísta nessa passagem; afinal, consigo perceber traços de esperança em A condição humana - ainda que seja uma esperança lançada para as gerações futuras.
Na próxima semana - última postagem do ano - escreverei sobre a série televisiva Mr. Robot
¹ ARENDT, Hannah. A condição humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013 [Tradução de Roberto Raposo]
² SARTORI, Vitor Bartoletti. Questão de gênero. Filosofia Ciência e Vida, São Paulo, ano VII, n. 94, mai. 2014. p. 15-23
³ ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2011 [Tradução de Mauro W. Barbosa]
⁴ BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986 [Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioruitti]
BG de Hoje
Cruzada - linda, lindíssima canção resultante da parceria entre TAVINHO MOURA e Márcio Borges - foi gravada originalmente, por Beto Guedes, se não me engano. Zizi Possi (uma cantora que eu adoro) também colocou-a num disco seu. Mas nenhuma versão, penso, ficou tão perfeita quanto a do BOCA LIVRE. No vídeo abaixo, o cantor Renato Braz encaixa-se como uma luva na apresentação.