segunda-feira, 28 de março de 2016

A escola pública forma leitores?


Após um conciso apanhado histórico, a professora e pesquisadora espanhola Teresa Colomer, no excelente trabalho Andar entre livros: a leitura literária na escola*, afirma:

"A escolarização da população e a sua extensão à etapa adolescente fez pensar que se poderiam ampliar as condutas culturais dos setores cultos minoritários aos demais setores da sociedade. A escola não era responsável unicamente por ensinar a ler, mas também de que todo o mundo o fizesse quando terminados seus estudos. Mas, tal como já assinalamos, os estudos sociológicos mostraram que depois de algumas décadas de extensão dos anos de frequência escolar, o efeito nos hábitos de leitura das sociedades ocidentais não havia sido o esperado. Na atualidade sabemos que aumentaram enormemente a quantidade e a percentagem social dos leitores ocasionais, mas também sabemos que existe uma tendência crescente à diminuição dos leitores assíduos".

O ensino de Literatura - melhor dizendo, o ensinar a ler Literatura - mudou muito, como não poderia deixar de ser, obviamente, ao longo dos anos. A leitura literária, em geral associada às "condutas culturais dos setores minoritários" (o que não significa associar a Literatura com as superfluidades de uma elite "burguesa") não se disseminou pela sociedade de massa, pós-industrial, globalizada, da qual hoje fazemos parte. Se "não era a única responsável por ensinar a ler" (e, reitero, ler Literatura), por que a escola é tão pressionada pelo restante do corpo social a assumir, solitariamente, essa incumbência? Mais: por que "o efeito nos hábitos de leitura" decorrente dessas "décadas de extensão dos anos de frequência escolar", implementados pelo Estado na maioria dos países do mundo, sendo caracterizados, principalmente, pela obrigatoriedade de matrícula e assiduidade a instituições construídas para esse propósito, não foi o que se esperava?

Repito: o livro de Teresa Colomer é excelente, não só pelo que propõe e pelo modo claro e elegante como a autora escreve, mas sobretudo pelas reflexões que nos obriga a fazer. E digo nós, referindo-me aos professores e educadores que atuam na escola pública de educação básica. Andar entre livros também me fez colocar em xeque minhas práticas e ações na tentativa (cada vez mais fracassada) de promover a leitura de obras literárias. O livro, ainda por cima, me encontrou num momento de grande desalento profissional e exaustão emocional após mais de vinte anos atuando em escolas públicas. Boa parte do que escreverei aqui nesta postagem será a mistura da análise de alguns pontos presentes em Andar entre livros com vários desabafos. Peço duplo perdão ao(à) eventual leitor(a): primeiro pelo texto longo, titubeante e lamuriento; depois, pela exacerbação do lado pessoal do blogueiro (aspecto que busco sempre minimizar, mas hoje não será possível).


Antes de prosseguir, preciso ser justo com a autora. O excerto citado anteriormente pode dar a impressão de que Teresa Colomer é pessimista em relação ao papel da escola no que se refere ao ensino/promoção da leitura literária. Não é. Poucos parágrafos após a afirmação citada acima, escreve ela:

"Apesar de tudo, os estudos de sociologia da leitura, centrados no âmbito escolar, mostram que a tarefa realizada pela escola não resulta inútil. Observa-se, por exemplo, que o nível de estudos alcançados é o fator que mais influi nos hábitos de leitura, que os alunos adquirem uma noção de hierarquia entre os textos que lhes ajudam a entender os mecanismos dos fenômenos socioculturais, ou que a função escolar de criar referentes coletivos parece ainda efetiva, já que nas pesquisas de hábitos se reflete o efeito dos títulos lidos nas aulas"

Embora Colomer afirme que seu livro não se resume a "uma proposta sobre didática da leitura", é só observar que, entre as três intenções manifestas do trabalho**, consolida-se fortemente no decorrer das páginas a ideia de que "a leitura de livros cria um itinerário prolongado ao longo de toda a escolaridade obrigatória". Esse itinerário é semelhante a uma escada com corrimão (a analogia é dela). Para a autora, "temos de saber 'onde [os estudantes] estão' para ajudá-los a ampliar progressivamente sua capacidade de fruição". E acrescenta, um pouco mais adiante:

"Talvez tenhamos de reconhecer que, para muitas pessoas, este último acesso à leitura só terá lugar no contexto escolar e como experiência pontual. Ler enriquece a todos até certo ponto, mas como diz o escritor catalão Emili Teixidor, para certas obras o leitor não apenas precisa de ajuda, mas um certo 'valor moral', uma disposição de ânimo de 'querer saber'. Nem todo mundo, nem sempre, o deseja. É útil pensar a educação literária como uma aprendizagem de percursos e itinerários de tipo e valor muito variáveis. A tarefa da escola é mostrar as portas de acesso".

Como se pode ver, embora não o diga explicitamente, Teresa Colomer confere à escola uma importante missão a desempenhar. Este blogueiro, contudo, deixou de acreditar nessa instituição há bastante tempo.

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Ivan Illich, o mais maldito dos pensadores da Educação, com sua verve polêmica e sua radicalidade característica, já disse*** que "a escola, fazendo com que os homens abdiquem da responsabilidade por seu crescimento próprio, leva muitos a uma espécie de suicídio espiritual". Suas palavras são como machadadas no crânio de nós, educadores profissionais:

"Todos aprendemos o como viver sem o auxílio da escola. Aprendemos a falar, pensar, amar, sentir, brincar, praguejar, fazer política e trabalhar sem interferência de professor algum. Mesmo as crianças que estão sob cuidados, dia e noite, de um professor não constituem exceção. Os órfãos, os excepcionais e os filhos de professores escolares adquirem a maioria de seus conhecimentos fora do processo 'educacional' planejado para eles. Os professores deram uma fracassada demonstração quando tentaram incrementar a aprendizagem dos pobres. Os pais pobres que desejam que seus filhos frequentem a escola não se interessam pelo que vão aprender tanto quanto pelo certificado e pelo dinheiro que irão ganhar. E os pais da classe média confiam seus filhos aos cuidados de um professor para resguardá-los de aprender o que os pobres aprendem na rua. As pesquisas educacionais vêm, crescentemente, demonstrando que as crianças aprendem a maior parte do que os professores pretendem ensinar-lhes dos seus grupos de amigos, das histórias em quadrinhos, de observações fortuitas e, sobretudo, da mera participação no ritual escolar. Os professores, na maioria dos casos, obstaculizam esta aprendizagem de assuntos pelo modo como eles as apresentam na escola".

Sei bem que os os pedagogos e professores que se julgam sérios não dão a mínima para a diatribe de Illich (defender uma sociedade desescolarizada). Mas hoje eu é que não estou dando a mínima para os pedagogos e professores que se julgam sérios... Alega-se a todo momento que frequentar a escola é fator de desenvolvimento. Em quase todo o mundo, mesmo em países da extrema periferia do capitalismo, as taxas de escolarização crescem ano a ano. Entretanto, a concentração de renda só faz aumentar e, segundo a OCDE, a distância entre ricos e pobres é a maior nos últimos 30 anos. Nessa toada, fica difícil descobrir exatamente de que forma a escola tem ajudado a tornar o mundo um lugar menos injusto ou para tentar diminuir a iniquidade da opressão econômica.

Alguém pode objetar: "mas a vivência escolar tem significado e importância maiores do que os números frios da economia podem medir". OK, mas tirando os nefelibatas encastelados no corpo docente dos cursos superiores de licenciatura Brasil afora, quem mais acha que as coisas estão bem encaminhadas nas unidades escolares? Principalmente quando se trata do fomento à leitura literária, a inutilidade das intervenções do professor, como Illich mencionou logo acima, é cada vez mais patente.

[Peraí... Por que raios trouxe Ivan Illich para este aranzel? Ah, lembrei-me! Por mais que suas invectivas contra a escola não tenham quase nenhum crédito, somente nelas é que encontro uma válvula de escape para a amargura que sinto todas as vezes ao entrar no ônibus para ir pro trabalho e afundar até as orelhas na "miséria modernizada"**** (termo com o qual o autor de Sociedade sem escolas definia o estágio em que profissionais, estudantes e comunidade escolar - atores de um drama chamado ESCOLA PÚBLICA, encenado 200 dias por ano - estão atolados). Sim, sei que estou sendo particularista e obtuso, ao me recusar a ver também histórias que podem demonstrar o valor da escola. Mas é que hoje só há desânimo, frustração e desgosto em mim. Não estou com nenhuma vontade de ser "gente boa".Pelo menos não hoje.]

Melhor voltar ao livro de Teresa Colomer.

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Ao discutir de que modo a instituição escolar estaria apta a estimular atos de ler e contribuir para o desenvolvimento de certas competências requeridas na leitura literária, Colomer considera que "pode-se afirmar, cada vez com maior segurança e de maneira cada vez mais pormenorizada, que a leitura compartilhada é a base da formação de leitores".

Verifica-se, porém, "a falta de participação sociofamiliar, posto que, frequentemente, não há adultos formando esse entrelaçamento socioafetivo [ligando o texto literário à criança/adolescente] em casa nem no entorno social". Onde então encontrar esses adultos dispostos a falar sobre livros, interessados em compartilhar suas leituras com grupos de crianças e adolescentes? Dentro das escolas, talvez? Acho que não.

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Ezequiel Theodoro da Silva, cujos artigos volta e meia abordam o tema de que estamos falando, acredita que ler é inerente à identidade do professor*****: "Professor, sujeito que lê, e leitura, conduta profissional, são termos indicotomizáveis - um nó que não se pode nem se deve desatar".

Entretanto, ele mesmo admite que

"No Brasil, a formação aligeirada - ou de meia tigela - dos professores, o aviltamento das suas condições de trabalho, o minguado salário e as políticas educacionais caolhas fazem com que os sujeitos do ensino exerçam a profissão sem serem leitores ou, então, sejam tão somente leitores pela metade, pseudoleitores, leitores nas horas vagas, leitores mancos, leitores de cabresto e outras coisas assim. Os resultados desse quadro lamentável e vergonhoso todos sabem: dependência de livros didáticos e outras receitas prontas, desatualização, redundância dos programas de ensino, homogeneização das condutas didáticas, repertório restrito, ausência de habilidades e competências de leitura, estagnação intelectual, etc.".

Numa pesquisa realizada em 2005, envolvendo professores do ensino fundamental de algumas cidades na região de Campinas (SP), Ezequiel Theodoro, entre outras descobertas, observou que:

"a maioria dos professores se desvincula ou diminui a frequência da leitura exatamente no momento em que atingem a sua maturidade intelectual (40 anos), ou seja, no momento em que a leitura seja talvez mais reveladora e profunda do que nas fases anteriores da sua vida".

"[Verificou-se] através do rol de questões do censo [realizado na pesquisa] que a leitura fica alijada dos hábitos de lazer dos professores. Pudemos verificar que prepondera no magistério a leitura de caráter utilitário, para o trabalho, bem dentro da sociedade liberal que promove e incentiva tão unicamente a produtividade do trabalhador, deixando pouco espaço para o lazer ou a recreação, para a leitura de fruição estética".

"Na esfera dos gêneros e tipos de escrita [preferidos pelos professores, de acordo com a pesquisa], o primeiro lugar aos jornais e revistas (à frente de outros materiais) pode indicar um hábito maior de frequentação aos textos da mídia, ao invés de textos científicos e literários, que seria de se esperar de profissionais cuja responsabilidade é promover o conhecimento e transmitir a herança cultural (o saber universal sistematizado) junto às novas gerações".

Nesses mais de 20 anos de trabalho em unidades escolares de ensino fundamental é muito raro conhecer colegas em cujas conversas surjam, espontaneamente, menções ao que estão lendo, aos últimos títulos que adquiriram num sebo ou livraria ou sugestões de livros que se deveria ler (por um motivo ou outro). De acordo com Ezequiel Theodoro da Silva, "a leitura coletiva de textos (professor com professor) é rara ou inexistente nas escolas".

Serão esses indivíduos capazes de auxiliar crianças e adolescentes nos seus "itinerários de [formação da] competência leitora" (para usar uma expressão cara a Teresa Colomer)?
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A escola pública forma leitores? Só agora me dou conta de que, talvez, essa não seja a pergunta certa (insisto em dizer escola pública, pois é nela que estão matriculados mais de 80% dos estudantes da educação básica. NOTA: Se alguém deseja fazer mudanças significativas nos métodos, conteúdos curriculares, concepções didáticas, etc., mudanças estas que cheguem à maioria da população, não dá pra passar ao largo desse fato)Mas por que esse pode não ser o questionamento adequado?

Embora praticamente todas as expectativas estejam voltadas para as unidades escolares em se tratando do assunto, a formação de leitores é um processo de longo prazo, intrincado muitas vezes, relacionado com outros fatores independentes do que se faz (ou se deixa de fazer) em sala de aula (por exemplo, a existência de leitores-modelo espalhados, em bom número, em diversos "postos" da sociedade).

Então, a pergunta adequada talvez fosse: a escola contribui para a formação de leitores? Bem, trata-se de uma instituição que fornece a seus frequentadores, bem ou mal, o meio necessário (alfabetização) para se decodificar o texto escrito. É suficiente? Considerando toda a problemática (mostrada acima) envolvendo o professor na sua condição de leitor - sem falar no ambiente hostil que caracteriza muitas unidades escolares, decorrente da difícil (e, às vezes, agressiva) relação entre estudantes, comunidade e trabalhadores dessas unidades - diria que o papel da escola na formação de leitores tem sido pouco significativo.

Começa mais uma semana de trabalho. Que merda!
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* COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007 [Tradução de Laura Sandroni]

** São elas 1) "traçar uma ponte entre a prática docente e as teorias que podem explicá-la e sustentá-la"; 2) "manter-se dentro dos limites da leitura dos livros, sem pretender abarcar todo o terreno da educação literária"; e 3) "destacar a unidade de ação entre as etapas educativas"

*** ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1973 [Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth]

**** Escreve Illich: "Poucos países permaneceram hoje vítimas da clássica pobreza que era estável e dificilmente vencível. A maioria dos países da América Latina atingiu o ponto de arrancada para o desenvolvimento econômico e consumo competitivo e, portanto, para a pobreza modernizada; seus habitantes aprenderam a pensar como ricos e viver como pobres. Suas leis prescreveram seis ou dez anos de obrigatoriedade escolar. Não só na Argentina, mas também no México e no Brasil, o cidadão médio define a educação adequada pelos padrões norte-americanos, mesmo que a possibilidade de conseguir escolaridade tão prolongada fique restrita a uma pequena minoria. Nesses países, a maioria já está amarrada à escola, isto é, está escolarizada num sentido de inferioridade para com os mais escolarizados".

***** SILVA, Ezequiel Theodoro da. O professor leitor. In: SANTOS, Fabiano dos; MARQUES NETO, José Castilho; RÖSING, Tania M. K. (Org.). Mediação de leitura: discussões e alternativas para a formação de leitores. São Paulo: Global, 2009. p. 23-36

BG de Hoje

Aroeira é uma daquelas canções que ouvi muito quando criança, mas só fui valorizá-la muito mais tarde (um de meus irmãos mais velhos possuía uma coletânea em vinil do GERALDO VANDRÉ). Não sei por que, estou pensando muito nessa faixa desde a semana passada.

terça-feira, 22 de março de 2016

Falou e disse...

"Hoje não parece ser a crítica, nem a argumentação, nem o raciocínio, nem a narração - refiro-me sempre à nossa estrutura de sentimento - mas, ao contrário, o consumo, o fugaz, a acumulação ilimitada, o fragmentário, o espetáculo [...] Vem à mente porque contradiz, bastante frontalmente, o que a leitura supõe. Que é sempre demora, construção prolongada do tempo, e da persistência, os dentes da atenção bem trincados em uma história, um tema, um pensamento. Ou seja, justo o contrário da fragmentação, da fugacidade e do 'surfar'. "

Graciela Montes (escritora argentina) 
Citada em COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007. p. 47-48

quarta-feira, 16 de março de 2016

Sobre A montanha mágica ou A importância das notas de rodapé (III)


"Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal em si? Não, isso seria deveras uma empresa tola [...] O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida; está inseparavelmente ligado a ela, como aos corpos no espaço. É também o elemento da música, que o mede e subdivide, carregando-o de interesse e tornando-o precioso".


Thomas Mann - A montanha mágica



Antes de reiniciar meus choramingos a respeito das (possíveis?, desejáveis?) notas de rodapé, não posso me esquivar de um ponto fundamental, provavelmente o mais importante em toda A montanha mágica*: a questão do tempo. Não nos determos pelo menos um pouco nesse tópico seria falhar miseravelmente em qualquer tentativa de abordagem da obra.

(Caso tenha interesse, a primeira parte desta série de textos está disponível aqui. E a segunda, aqui)

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Em muitas páginas do livro de Thomas Mann (como bom romance filosófico que é) surgem tentativas de conceitualização: nesse sentido, pequenos ensaios saborosamente especulativos são esboçados, cujos temas, os mais diversos, vão do hábito de fumar, passando por considerações a respeito de tosses, espirros e frieiras, a quadratura do círculo, até chegar a assuntos que se julgam mais elevados, tais como a definição do amor e uma tentativa de resposta à mãe de todos os questionamentos: o que é a vida? No início do sétimo (e último) capítulo, então - o mais ágil de todos os outros** e no qual a tão propalada ironia do escritor alemão mais se pode captar*** -, temos sem dúvida um mini-tratado sobre o tempo; sobre a relação deste com o exercício da narrativa e com o exercício da música; e, por fim, como é possível compará-las considerando o elemento temporal.

Quando me dei conta de que as 300 primeiras páginas do romance só cobrem sete semanas da trivial vidinha de Hans Castorp não pude refrear uma imprecisa sensação de logro, só dissipada à medida que já não me importava mais em ser "ludibriado" pela escrita meticulosa de Thomas Mann - desinteressada de elementos prosaicos, como açãoenredo, para empenhar-se na virtuosidade estilística (há, por exemplo, uma frase no quinto capítulo, quando Castorp mete-se a estudar fisiologia, cuja extensão - do início ao ponto final - é superior a 20 linhas impressas). Não é pouco o que se está a solicitar do leitor: é preciso que este mantenha de prontidão o distanciamento analítico-interpretativo para não se perder num esquema narrativo pouco habitual, no qual se prescinde de um entrecho pleno de acontecimentos. Afinal, o que torna mágica a montanha é o modo como todos - narrador, leitor, personagens - percebem e se colocam em relação ao tempo.

Além de tudo isso, não se pode esquecer de falar de música, tema frequente em diversas obras do escritor alemão. O protagonista d' A montanha mágica é um intenso apreciador dessa arte e chamava "regência" a seu modo de lidar com o fluxo de seus pensamentos e divagações solitárias (vale lembrar que ele próprio fantasiava ser maestro quando reproduzia os discos na vitrola recém-comprada pelo sanatório). O crítico literário George Steiner afirmou**** que "em suas ficções em prosa, ele [Thomas Mann] realizava a textura das formas musicais (a analogia tanto com Proust quanto com Joyce chama a atenção)". O romancista, por sua vez, numa carta ao filósofo Theodor Adorno enviada em dezembro de 1945, declarou*****: "É curioso: minha relação com a música tem alguma vocação, eu sempre entendi de música literária, sempre me senti meio que um músico, apliquei a técnica da trama musical no romance [...]". Naturalmente, a música aqui aludida é a de caráter clássico, erudito e lírico. Como este blogueiro nada conhece de teoria ou técnicas musicais e nem mesmo sabe orientar-se na história dessa encantadora arte, não vemos meios de nos aprofundarmos neste ponto. Volto então a pensar nas (possíveis?, desejáveis?) notas de rodapé.

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Já escrevera antes: para que se atinja suas camadas de significado mais profundas, A montanha mágica busca um leitor tão culto quanto o autor inscrito na narrativa. Um sujeito assim, entretanto, é algo cada vez mais raro hoje em dia... George Steiner, falando do intercâmbio entre Mann e Adorno, observa que "[...] a presunção recíproca de um saber polímata que abrange desde a Antiguidade até Beckett, de Palestrina a Webern, não faz mais parte de nosso mundo". Um livro dessa feitura (e outros como ele) estaria irremediavelmente fadado a ser lido e, quiçá, apreciado apenas por um público altamente especializado, de leitores profissionais (e, portanto, restrito), num futuro não muito distante? E por falar em público altamente especializado, fico só imaginando de que tamanho seria uma edição crítica d' A montanha mágica (um volume adicional seria acrescentado, certamente).

Mas e quanto aos leitores medianos (como este blogueiro)? Estamos condenados a boiar ao longo da obra, sem apanhar certas alusões, desconhecer determinadas referências ou mesmo não compreender um diálogo apenas por ter sido composto num idioma que não dominamos (como a crucial conversa - em francês - entre Hans Castorp e Claudia Chauchat, no final do quinto capítulo)? Não se poderia dispor de notas de rodapé explicativas que nos auxiliassem?

Bem... Num calhamaço desses, como fazer com que caibam tantas notas (porque talvez muitas fossem necessárias)? Como se manteria a boa disposição durante a leitura, tendo que ir e vir do texto às notas durante páginas e mais páginas? Como definir que passagem ou expressão precisaria ser explicada?

Já se vê que seria bem complicado incluir notas de rodapé num livro dessa natureza. Resta saber se uma empreitada dessas seria desejável. O que deve prevalecer: o ritmo de narração e a estrutura da obra como estabelecida pelo autor/editor ou a conveniência de determinado público (provavelmente, contudo, aquele a representar a maior parte dos indivíduos que ainda se dispõem a ler Literatura em nossas sociedades atuais)?

Deixo a pergunta para o(a) eventual leitor(a).
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* MANN, Thomas. A montanha mágica. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 [Tradução de Herbert Caro]

** O próprio narrador parece reconhecer isso quando escreve: "Prestemos ao tempo pelo menos tanta honra quanta ainda permite a natureza da nossa história! De todo o modo não sobra mais muita. A narração precipita-se, aos trambolhões, ou - se essa expressão, porventura, soa demais barulhenta - vai se deslizando com a rapidez do vento. Quem indica o nosso tempo é um ponteirozinho que saltita como se medisse segundos, mas cada vez que passa pelo vértice, friamente e sem demorar, significa sabe Deus o quê".

*** Principalmente nas engenhosas ocasiões em que o narrador dirige-se diretamente ao leitor.

****A observação de George Steiner mencionada nesta postagem foi extraída de um ensaio originalmente publicado no Times Literary Supplement, mas reproduzido (com tradução de Clara Allain) no (extinto) caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo, com o título Deus e o diabo na terra do sol, em 10 de novembro de 2002.

***** A carta foi reproduzida na mesma edição do caderno Mais! referida na nota precedente.
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Antes de terminar, quero fazer duas recomendações:

1) A TV Univesp dedicou um programa Literatura Fundamental ao livro de Thomas Mann sobre o qual acabamos de falar. O professor Jorge Mattos Brito de Almeida é o convidado.
Link para o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=v1ypNe9oYWM

2) O poeta e filósofo Antonio Cicero, no seu ótimo blog Acontecimentos (listado na coluna à direita como um dos preferidos da casa), reproduziu por lá há alguns anos uma apresentação que ele havia feito para a 3ª edição d' A montanha mágica publicada no Brasil.
Link para o texto: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/04/apresentao-de-montanha-mgica-de-thomas.html

BG de Hoje

Serei sincero: música clássica/erudita/lírica não é minha praia. Não tenho em minha modesta coleção de discos nenhum exemplar do gênero. Vou colocar uma composição dessas no BG apenas para fingir que sou inteligente e requintado. Só que vou escolher uma peça conhecidíssima, mesmo para quem não circula com desenvoltura na área da música clássica/erudita/lírica: trata-se da abertura da ópera Carmen, de GEORGES BIZET (no vídeo abaixo, executada pela Orquestra da Royal Opera House, de Londres, sob a regência do célebre maestro indiano Zubin Mehta). É oportuno dizer que Carmen é uma das obras que o personagem Hans Castorp mais ouvia no sanatório Berghof (embora o trecho descrito por Thomas Mann no livro seja outro).

sexta-feira, 4 de março de 2016

Sobre A montanha mágica ou A importância das notas de rodapé (II)


Hans Castorp, o personagem central d' A montanha mágica*, aos vinte e poucos anos, era "antes [de se considerar outros traços psicológicos] lerdo e pouco inspirado", segundo o narrador. Confirma-se ao longo dos quatro primeiros capítulos, sobretudo, que o jovem "era paciente por natureza e bem capaz de passar muito tempo sem nada fazer. Conforme nos recordamos, adorava esse lazer [um dos repousos prescritos aos internos do sanatório Berghof,] que nenhuma atividade atordoadora ousa obliterar, consumir, afugentar", mesmo sendo, naquela ocasião, só um visitante. O narrador empenha-se sempre "em apresentá-lo nem melhor nem pior do que era [...]"

Nos dois primeiros terços do romance, percebemos que o protagonista não é especialmente notável por sua personalidade, gestos ou atitudes (nem mesmo por sua aparência, convém acrescentar). É, pois, um típico "herói" da literatura produzida a partir do desencantado século XX. Estamos diante de um jovem burguês europeu do período anterior às duas grandes guerras mundiais, cioso (em demasia, até) do seu papel de "homem civilizado", a salvo dos apertos financeiros e agraciado pelo ócio decorrente de sua posição privilegiada no conjunto das classes sociais.

O espírito contemplativo e a índole afeita à passividade de Hans Castorp servem, no plano geral da obra, para que ele próprio, o narrador e, principalmente, outros personagens cuja influência faz-se sentir sobre o protagonista possam enveredar pelas brenhas da reflexão e do debate filosóficos. A esse respeito, vale a pena nos determos em duas figuras: Lodovico Settembrini e Leo Naphta.

Settembrini - mencionado na postagem inicial desta série - é um literato italiano, liberal (com alguns "arrepios" revolucionários), humanista e encomiasta do progresso científico. Todo o eurocentrismo e a defesa exclusivista da cultura ocidental na obra de Thomas Mann encontram-se concentradas nesse personagem. Settembrini alcunha Hans Castorp de "o filho enfermiço da vida". Em determinado momento da história descobrimos que o literato italiano é maçom.

Naphta, nascido no leste europeu, convertera-se ao catolicismo ao final de sua adolescência (seus pais eram judeus), integrando ulteriormente os quadros da ordem jesuíta. Reacionário ao extremo, tem grande interesse e admiração pela história e a cultura da Idade Média.

De acordo com o crítico literário George Steiner (e para minha total surpresa) ambos são inspirados no mesmo filósofo de carne e osso, o húngaro György Lukács, representando "não apenas sua própria sensibilidade complicada, mas também seu compromisso com uma interpretação dialética da vida"**. Pergunto: quantos leitores saberiam disso?

Não se trata de uma questão irrelevante: Settembrini e Naphta são chaves importantes para a devida compreensão do romance, pois emerge de suas perorações e controvérsias um considerável feixe de conceitos extraídos da Filosofia.

Nas conversas entre eles aparecem, de cambulhada (mas quase sempre apenas subentendidos no discurso) Platão, Locke, Diderot, Bacon, Hegel, Marx, Santo Agostinho, Rousseau, Hume, Schopenhauer, Comte... O resultado das discussões, não raro, termina em obscuridade, uma vez que "as posições [dos dois personagens] não somente eram opostas, como também se confundiam. Os adversários, ao invés de se limitar a combater-se reciprocamente, amiúde se contradiziam a si próprios", nos diz o narrador do romance.

A montanha mágica, como cheguei a aludir na postagem inicial desta série, em última instância, busca - para que se atinja suas camadas de significado mais profundas, quero dizer - um leitor tão culto quanto o autor inscrito na narrativa (não é o caso deste blogueiro). É por isso que notas explicativas numa obra como esta não soariam tão estapafúrdias num primeiro momento. Mas, quando pensamos um pouco melhor, vemos que talvez isso não fosse uma boa solução.

Concluo essa série na próxima postagem.
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* MANN, Thomas. A montanha mágica. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 [Tradução de Herbert Caro]

** A observação de George Steiner mencionada nesta postagem foi extraída de um ensaio originalmente publicado no Times Literary Supplement, mas reproduzido (com tradução de Clara Allain) no (extinto) caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo, com o título Deus e o diabo na terra do sol, em 10 de novembro de 2002.

BG de Hoje

Deve parecer estranho quando, ao tratar de um livro tão difícil quanto A montanha mágica, eu escolha para BG uma canção do KID ABELHA, grupo que geralmente não é levado a sério pela crítica musical. Pessoalmente, sempre gostei (e muito) da banda. E considero, sem nenhum receio de parecer exagerado ou ridículo, Nada tanto assim uma das melhores letras de música pop que conheço. Tem a leveza e a simplicidade desejáveis nesse tipo de composição, além de tematizar - a seu modo, claro - a difícil relação do tempo com a sobrecarga de informação que marca nossas vidas. E é interessante notar na letra a menção a formas e meios de comunicação hoje considerados obsoletos nesta era internética.