"Não é que o homem-massa seja idiota. Ao contrário, o atual é mais rápido, tem mais capacidade intelectiva que o de qualquer outra época. Mas essa capacidade não lhe serve de nada; a rigor, a vaga sensação de possuí-la só serve para ele fechar-se ainda mais em si, e não para usá-la. Consagra definitivamente a coleção de tópicos, preconceitos, pedaços de ideias ou, simplesmente, palavras vazias que ao acaso foi amontoando em seu interior, e, com uma audácia que só se explica pela ignorância, quer impô-las em qualquer lugar: [...] não é que o vulgo pense que é excepcional e não vulgar, mas sim que o vulgar proclama e impõe o direito da vulgaridade, ou a vulgaridade como um direito".
José Ortega y Gasset - A rebelião das massas
AVISO: O texto a seguir, para ser melhor compreendido, pressupõe a leitura da primeira postagem anteriormente publicada desta série, disponível aqui.
Antes de prosseguir, quero esclarecer um ponto.
Vivemos, de forma irreversível talvez, em sociedades de massa e todos nós, momentaneamente ou na maior parte do tempo (essa é justamente a questão), comportamo-nos como homens-massa. Não se trata de algo do tipo eles X nós.
Voltemos agora ao livro de José Ortega y Gasset.
É preciso, contudo, indicar primeiramente qual a perspectiva cultural assumida n' A rebelião das massas (da qual discordo, aliás) para prosseguirmos a discussão.
Sem meias-palavras: José Ortega y Gasset considera - como muitos pensadores de seu tempo - que a Europa e o "European way of life" são (ou deveriam ser) os faróis e os guias supremos da cultura universal. O século XX, entretanto, testemunhou um abalo profundo na crença de uma suposta superioridade cultural europeia, modificando os referenciais (antes aceitos sem qualquer questionamento) utilizados para definir o que se entendia por arte, religião, moralidade, conhecimento e outros conceitos (entre eles, a própria noção de cultura). De acordo com a visão do filósofo, a cultura europeia precisa ser defendida pois está sob ameaça.
Convém observar que é um sestro inseparável do pensamento conservador a opinião de que tudo o que é considerado certo ou sagrado por esse mesmo pensamento está, de alguma maneira, prestes a "decair". Discordo do posicionamento de Gasset em relação à dinâmica cultural porque seu ponto de vista induz a pensar que toda mudança civilizacional é ameaçadora simplesmente por ser mudança. Mas concordo noutro ponto. E é isso que nos interessa aqui.
Hoje é mais claro do que nunca que a cultura europeia (da qual, vale dizer, os norte-americanos são hoje os "herdeiros" mais poderosos, mesmo vivendo noutro continente) não é a condutora inconteste da cultura universal, mas é difícil negar que, durante séculos, ela in-formou o Ocidente. Consideremos o caso da filosofia e da ciência (e também no desdobramento dessa última em saber técnico/tecnológico). Ambas subjazem nossos sistemas educacionais, econômicos e jurídicos (para citar apenas esses três) e decorrem do acúmulo de reflexões e experiências desenvolvidas historicamente dentro da tradição cultural europeia. Pois bem. Se é legítimo e fundamental, à luz do atual contexto sociopolítico, questionar e contrapor-se à supremacia cultural europeia (e à dos EUA, como indiquei acima), não é razoável, por outro lado, negligenciar o que essa tradição nos legou. Legado que se expressa, por exemplo, no método científico, essência, obviamente, da atividade dos cientistas, da qual provêm, por sua vez, os objetos que satisfazem tanto o homem-massa atual.
A propósito, observemos este excerto de A rebelião das massas:
O homem-massa contemporâneo está constantemente alegre com os dispositivos eletrônicos, com a velocidade dos veículos, com uma maior e mais diversificada oferta de alimentos, com a liberdade proporcionada pelos mecanismos democráticos**. Mas não demonstra a menor disposição para compreender como tais benefícios tornaram-se possíveis. Ou seja, o homem-massa parece não estar apto a empreender o esforço necessário para que o modelo civilizatório vigente (do qual ele extrai sua alegria) perdure e se amplie. Não se sente responsável por ele; utiliza-o "como se fosse natureza" e não percebe que está diante de um artifício resultante de intenso processo de racionalização e intelectualização.
Termino na próxima postagem.
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* ORTEGA y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [Tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro]
** Não se está esquecendo, nesse texto, que milhões de pessoas não podem partilhar dessa alegria pelo aterrador fato de se encontrarem na miséria e na opressão. Na verdade, esse estado de coisas, revelador de uma tremenda injustiça e de uma impiedosa desigualdade, é mais um motivo para considerar a alegria dos homens-massa muito estranha e despropositada.
Essa canção já foi BG no blog. Mas é que estou cada vez mais fascinado com o som desse grupo. BAND OF SKULLS, Sweet Sour.
Antes de prosseguir, quero esclarecer um ponto.
Vivemos, de forma irreversível talvez, em sociedades de massa e todos nós, momentaneamente ou na maior parte do tempo (essa é justamente a questão), comportamo-nos como homens-massa. Não se trata de algo do tipo eles X nós.
Voltemos agora ao livro de José Ortega y Gasset.
Quero reiterar que o filósofo espanhol empenhou-se em não circunscrever o termo massa num sentido exclusivamente político. Como ele explica em A rebelião das massas*, "A vida pública não é apenas política e sim, ao mesmo tempo e até antes, intelectual, moral, econômica, religiosa, compreende todos os hábitos coletivos, inclusive o modo de se vestir e o modo de se divertir". O comportamento do homem-massa (e lembro que todos nós, em algum momento, somos esse indivíduo) pode ser identificado em várias facetas de sua vida, não só naquelas em que a ação política se faz mais evidente (como, por exemplo, protestos e manifestações). Dito isso, interessa-me no momento deter-me apenas na compleição intelectual do homem-massa.
É preciso, contudo, indicar primeiramente qual a perspectiva cultural assumida n' A rebelião das massas (da qual discordo, aliás) para prosseguirmos a discussão.
Sem meias-palavras: José Ortega y Gasset considera - como muitos pensadores de seu tempo - que a Europa e o "European way of life" são (ou deveriam ser) os faróis e os guias supremos da cultura universal. O século XX, entretanto, testemunhou um abalo profundo na crença de uma suposta superioridade cultural europeia, modificando os referenciais (antes aceitos sem qualquer questionamento) utilizados para definir o que se entendia por arte, religião, moralidade, conhecimento e outros conceitos (entre eles, a própria noção de cultura). De acordo com a visão do filósofo, a cultura europeia precisa ser defendida pois está sob ameaça.
Convém observar que é um sestro inseparável do pensamento conservador a opinião de que tudo o que é considerado certo ou sagrado por esse mesmo pensamento está, de alguma maneira, prestes a "decair". Discordo do posicionamento de Gasset em relação à dinâmica cultural porque seu ponto de vista induz a pensar que toda mudança civilizacional é ameaçadora simplesmente por ser mudança. Mas concordo noutro ponto. E é isso que nos interessa aqui.
Hoje é mais claro do que nunca que a cultura europeia (da qual, vale dizer, os norte-americanos são hoje os "herdeiros" mais poderosos, mesmo vivendo noutro continente) não é a condutora inconteste da cultura universal, mas é difícil negar que, durante séculos, ela in-formou o Ocidente. Consideremos o caso da filosofia e da ciência (e também no desdobramento dessa última em saber técnico/tecnológico). Ambas subjazem nossos sistemas educacionais, econômicos e jurídicos (para citar apenas esses três) e decorrem do acúmulo de reflexões e experiências desenvolvidas historicamente dentro da tradição cultural europeia. Pois bem. Se é legítimo e fundamental, à luz do atual contexto sociopolítico, questionar e contrapor-se à supremacia cultural europeia (e à dos EUA, como indiquei acima), não é razoável, por outro lado, negligenciar o que essa tradição nos legou. Legado que se expressa, por exemplo, no método científico, essência, obviamente, da atividade dos cientistas, da qual provêm, por sua vez, os objetos que satisfazem tanto o homem-massa atual.
A propósito, observemos este excerto de A rebelião das massas:
"Já começa a ser difícil atraírem-se discípulos para os laboratórios de ciência pura. E isso acontece quando a indústria atinge o seu maior desenvolvimento e quando as pessoas mostram o maior interesse pelo uso de aparelhos e medicamentos criados pela ciência [...] O que significa uma situação tão paradoxal? [...] Significa que o homem hoje dominante é um primitivo, um Naturmensch, emergindo no meio de um mundo civilizado. O mundo é civilizado, mas seu habitante não o é: nem sequer vê a civilização nele, mas a utiliza como se fosse natureza. O novo homem deseja o automóvel e desfruta dele, mas crê que é um fruto espontâneo de uma árvore do Éden. No fundo de sua alma desconhece o caráter artificial, quase inverossímil, da civilização e não estenderá seu entusiasmo pelos aparelhos até os princípios que os tornam possíveis [...] O homem-massa atual é, de fato, um primitivo, que entrou pelos bastidores no velho cenário da civilização".
O homem-massa contemporâneo está constantemente alegre com os dispositivos eletrônicos, com a velocidade dos veículos, com uma maior e mais diversificada oferta de alimentos, com a liberdade proporcionada pelos mecanismos democráticos**. Mas não demonstra a menor disposição para compreender como tais benefícios tornaram-se possíveis. Ou seja, o homem-massa parece não estar apto a empreender o esforço necessário para que o modelo civilizatório vigente (do qual ele extrai sua alegria) perdure e se amplie. Não se sente responsável por ele; utiliza-o "como se fosse natureza" e não percebe que está diante de um artifício resultante de intenso processo de racionalização e intelectualização.
Termino na próxima postagem.
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* ORTEGA y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [Tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro]
** Não se está esquecendo, nesse texto, que milhões de pessoas não podem partilhar dessa alegria pelo aterrador fato de se encontrarem na miséria e na opressão. Na verdade, esse estado de coisas, revelador de uma tremenda injustiça e de uma impiedosa desigualdade, é mais um motivo para considerar a alegria dos homens-massa muito estranha e despropositada.
BG de Hoje
Essa canção já foi BG no blog. Mas é que estou cada vez mais fascinado com o som desse grupo. BAND OF SKULLS, Sweet Sour.