Bíblia em ação (Geográfica Editora, 2013, 5 ª edição) não é um bom entretenimento.
Trata-se de uma adaptação, para os quadrinhos, de episódios bíblicos que vão do velho ao novo testamento.
Claro que HQ não é apenas entretenimento; elevou-se em termos estéticos e hoje, todos sabemos, está em pé de igualdade com outras formas de arte narrativa.
Entretanto, justamente por se persistir numa concepção empobrecida do que significam os quadrinhos atualmente, adaptam-se determinados textos (considerados difíceis) para o formato de HQ, com o intuito de "facilitar" sua leitura. Parece ser o caso dessa Bíblia em ação.
O responsável pelo trabalho, Sérgio Cariello - apresentado como "artista completo desde a infância" - possui um traço e um enquadramento que nos remetem às pequenas sagas de super-heróis produzidas nos anos 1970 e início da década seguinte, muito presentes nas publicações standard das megaempresas do setor, Marvel e DC (estúdios, aliás, nos quais Cariello trabalhou). Percebe-se, no desenho do adaptador, a nítida influência de artistas como Tony DeZuniga e John Buscema (este último conhecido por ilustrações de Thor, Surfista Prateado e Conan, o bárbaro). Não sei dizer se estamos diante de uma homenagem à "escola" de narração quadrinística representada por esses desenhistas renomados, mas é perceptível, logo de saída, que o estilo de Sérgio Cariello não dialoga com a produção de quadrinhos de vanguarda.
A caracterização visual dos personagens não foge de uma receita já testada. Todos apresentam traços fisionômicos, tons de pele e cabelos que, acredito, não são nada condizentes com o que seria de se esperar de povos autóctones do Oriente Médio e adjacências (para se ter ideia, os egípcios ilustrados estão mais para anglo-saxões...). A figura de Jesus, por exemplo, repete a mesma imagem consagrada pela iconografia religiosa desde a baixa Idade Média (até a túnica branca e o manto azul) e que é reproduzida à exaustão nos folhetos das Testemunhas de Jeová ou nos desenhos animados nada criativos usados para catequese e evangelização.
O maior problema do livro, porém, são as poucas cenas de ação. Falta considerável, pois a publicação quer transpor os episódios bíblicos para a estética das histórias em quadrinhos de super-heróis, como se pode depreender a partir de seu prefácio:
"E, se a palavra ' herói ' normalmente remete a figuras como o Super-Homem, que é capaz de lançar um carro pelos ares com um simples sopro, que dizer de Deus, que criou todo o universo e a vida com um simples sopro? Super-Homem pode salvar o dia com sua força, mas Jesus salvou o mundo inteiro com sua morte!"
A comparação com o personagem kriptoniano acima citado não é, portanto, fortuita. Mas o livro decepciona o leitor que buscava ação. Passagens que poderiam ser empolgantes (como o episódio Sansão e Dalila, ou a luta de Davi contra Golias, ou ainda as imagens impactantes do apocalipse) são pouco destacadas. Por outro lado, mais de 84 páginas são dispensadas à teologização e institucionalização do cristianismo após a morte e alegada ressurreição do Cristo (o que pode até ser importante para o crente*, mas que, do ponto de vista de uma narrativa quadrinística que se propõe a ser de ação, acaba tendo resultado decepcionante).
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Antes de encerrar esta postagem gostaria de aproveitar a ocasião para tentar esclarecer um posicionamento que passarei a exprimir em todos os momentos nos quais me sentir obrigado a manifestá-lo.
Ouço com frequência: "ateus são arrogantes". E mais: são metidos a donos da verdade e se acham mais inteligentes do que os outros (ou, pelo menos, mais do que aqueles que acreditam em divindades e/ou entes sobrenaturais).
Não tenho procuração para falar em nome de todos os ateus. Portanto irei expor apenas o que penso e como me coloco diante dessas críticas, supondo, entretanto, que essa exposição e essa colocação sejam familiares a outros descrentes similares a mim.
Sendo ateu, procuro também ser cético. E um cético é alguém que, para aceitar algo, precisa antes ter evidências razoáveis sobre a plausibilidade desse algo. A certeza sobre as coisas do mundo precisa ser construída racionalmente e, à vezes, nem sequer é atingida, permanecendo no campo da provisória incerteza. Ou seja, o cético e o ateu têm dúvidas profundas sobre diversos aspectos de nossa realidade.
Para uma boa parte dos crentes, contudo, parece não ser assim. Com impudente presunção, declaram conhecer uma verdade definitiva por meio da fé. Ou seja, têm certeza absoluta sobre o principal fundamento da realidade, apresentando para tanto evidências muito frágeis (e, muitas vezes, não apresentando nenhuma, a não ser o próprio sentimento ou desejo pessoal).
Quem é o arrogante, nesse caso? Quem está se comportando como "dono da verdade"?
Quanto à reclamação de que os ateus se acham mais inteligentes, digo o seguinte: por exigirem melhores evidências para considerar algo verdadeiro ou digno de crença, os ateus esforçam-se um pouco mais para compreender como o mundo é. Para isso, leem mais, estudam mais, não aceitando sem mais nem menos aquilo que está escrito num conjunto de textos ao qual se atribuiu caráter sagrado ou aquilo que está contido no discurso de um sacerdote ou outro representante de alguma organização religiosa. Aliás, a acomodação intelectual é algo que me desagrada muito em algumas pessoas. Não quero dizer com isso que ateus são mais inteligentes do que crentes; apenas vejo algumas indicações de que os primeiros são geralmente menos inertes intelectualmente do que os segundos. Deixo claro que isso é apenas uma impressão pessoal, não uma comprovação empírica.
Para finalizar. O livro hoje aqui discutido chegou às minhas mãos na forma de um presente de aniversário. Tenho imenso amor e respeito por quem me deu esse presente. Apesar disso, não posso deixar de perceber nesse gesto um resquício da atitude presunçosa e o ar superior de alguns daqueles que acreditam em divindades e dos quais acabei de falar. Para essas pessoas, o ateu sofre de uma espécie de "patologia" que pode ser "curada" mediante "doses" repetidas de proselitismo religioso ou com "pílulas" extraídas do livro considerado (por eles) sagrado. Há nessa atitude um menosprezo da parte do crente em relação ao ponto de vista do ateu (que, diga-se de passagem, desenvolveu-o, em muitos casos, através de um longo processo, legítimo e autônomo, de elaboração e reelaboração de suas convicções). Gostaria de deixar claro que essa atitude proselitista, mesmo querendo ser "do bem", tem um quê da disposição autoritária de quem não convive bem com o pensamento divergente. Vou, a partir de agora, declarar meu desagrado com isso todas as vezes em que o proselitismo religioso vier me incomodar.
* O termo crente está sendo usado nesta postagem com o significado de "aquele que acredita numa divindade", em oposição ao termo ateu ("aquele que não acredita em nenhuma"). Assim, crente, neste contexto, designa todos os que acreditam em Deus, independentemente da denominação religiosa da qual fazem parte.
BG de Hoje
Direto ao ponto: FAITH NO MORE e o propositalmente tosco clipe de Everything's ruined.