segunda-feira, 6 de maio de 2013

Quero distância dos "virtuosos"



Um breve artigo escrito por Bertrand Russel na década de 1920 tem muito a dizer nesses nossos tempos em que o pensamento reacionário, quase sempre de mãos dadas com o fundamentalismo religioso, dá as caras em roupagens para todos os gostos.

Em O recrudescimento do puritanismo*, o filósofo inglês, embora reconheça alguns serviços prestados por essa doutrina à humanidade, em épocas pregressas, percebe um problema atual, diretamente relacionado à "combinação de ordem com liberdade para as minorias". Para Russell, "este problema requer uma perspectiva diferente da dos puritanos: ele precisa de tolerância e concórdia em vez de fervor moral. E a concórdia nunca foi o ponto forte dos puritanos".

Na contemporaneidade, segundo o articulista,

"Pode-se definir um puritano como um homem que pensa que certos tipos de atos, mesmo sem efeitos prejudiciais visíveis a outras pessoas, a não ser ao agente, são inerentemente pecaminosos e, por serem um pecado, devem ser evitados pelos meios mais eficazes - a lei criminal se possível e, caso contrário, a opinião pública endossada pela pressão econômica".

Com a ressalva de que muitos atos - avaliados como pecaminosos pelos puritanos - não têm efeitos prejudiciais nem sequer a seus agentes, a definição de Russell descreve razoavelmente o modo de pensar de muita gente que, no início de um novo milênio, protestaria, raivosa, se fosse chamada de puritana.

Russell considera que a ótica puritana enfraqueceu-se no século XIX, mas "com a deterioração generalizada do liberalismo [...] retomou o fundamento perdido e pressagia uma nova tirania tão opressiva quando a da Idade Média".

Um outro elemento negativo dessa forma antidemocrática e carola de ver a vida é apontado pelo pensador inglês. Destaco:

"Há outro argumento mais geral que se opõe ao ponto de vista puritano. A natureza humana, tal como foi concebida, implica que as pessoas insistirão em obter algum prazer na vida. Grosso modo, para propósitos práticos, os prazeres devem ser divididos entre aqueles que se baseiam essencialmente nos sentidos e os que são, sobretudo, mentais. O moralista tradicional elogia os últimos porque não os considera prazeres. Sua classificação, claro, não é cientificamente defensável e em muitos casos ele tem dúvidas. Os prazeres advindos das artes pertencem aos sentidos ou à mente? Se ele for na verdade rígido, condenará a arte in toto, como Platão e os Pais da Igreja; se ele for mais ou menos latidudinário, tolerará a arte se tiver um 'propósito espiritual', o que significa em geral uma arte de má qualidade".

O autor também não deixa de assinalar que "os que vivem sob o domínio do puritanismo tornam-se excessivamente ávidos pelo poder" (as "bancadas evangélicas" que o digam), acrescentando: "É claro, em pessoas virtuosas, o amor ao poder camufla-se na benevolência de praticar o bem, mas isso representa uma diferença ínfima quanto aos seus efeitos sociais". Russell é implacável: "A indignação moral é uma das forças mais nocivas do mundo moderno, ainda mais porque pode sempre ser desviada para usos sinistros por aqueles que controlam a propaganda**".

O final do artigo, embora contenha observações hoje triviais, merece ser reproduzido em sua quase totalidade:

"O mundo está cada vez mais populoso, e a dependência em relação aos nossos vizinhos torna-se mais íntima. Nessas circunstâncias a vida não pode ser tolerável, salvo se aprendermos a deixar os outros sozinhos em todos os aspectos que não constituam uma preocupação imediata e evidente para a comunidade. Devemos aprender a respeitar a privacidade alheia e a não impor nossos padrões morais aos outros. O puritano imagina que seu preceito moral é  o  paradigma moral; ele não percebe que outras épocas e países, e mesmo outros grupos em seu próprio país têm padrões morais diferentes dos seus - padrões que esses têm tanto direito de exercer quanto ele de exercer o seu. Infelizmente, o amor ao poder, que é a consequência natural da autonegação puritana, torna os puritanos mais decididos em suas ações do que as outras pessoas e, por isso, é mais difícil lhes resistir. Esperemos que uma educação mais abrangente e um conhecimento maior da humanidade possam gradualmente enfraquecer o ardor dos nossos dominantes por demais virtuosos".

Na próxima postagem, depois de muito tempo, volto a falar de poesia, destacando Gonçalves Dias.
 
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* RUSSELL, Bertrand. O recrudescimento do puritanismo. In: _________. Ensaios céticos. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 114-120 [tradução de Marisa Mota] 

** Vale lembrar que o termo propaganda tinha um sentido bem específico - político-ideológico - no período entre-guerras, que é quando Russel publica este artigo.

BG de Hoje

Como (quase) todo adolescente brasileiro do meu tempo, ouvi LEGIÃO URBANA até  quase furar os discos. Na adultícia (que palavra medonha), perdi o interesse. A banda de Brasília, liderada por Renato Russo, voltou a ser assunto por causa de filmes recentemente produzidos e a ela relacionados. E mesmo desinteressado hoje, ainda acho Baader-Meinhoff blues, do primeiro disco do grupo, uma ótima canção.