terça-feira, 14 de maio de 2013

O abandono da musicalidade



A poesia brasileira, do Modernismo em diante, abandonou a musicalidade. Assim, peremptória, uma afirmação como essa é descabida e leviana. Para prová-la, precisaria realizar estudo aprofundado. Como está implícito que não o farei, vou tentar tornar mais compreensível o que disse. Antes, porém, reproduzo abaixo um poema de Gonçalves Dias*, do qual gosto muito.

"NÃO ME DEIXES!

Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
A corrente, onde bela se mirava...
'Ai, não me deixes, não!

'Comigo fica ou leva-me contigo
'Dos mares à amplidão,
'Límpido ou turvo, te amarei constante
'Mas não me deixes, não!'

E a corrente passava: novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
'Ai, não me deixes, não!'

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
'Ai, não me deixes, não!'

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
'Não me deixaste, não!"

Ao ler esse texto, não são suas imagens ou sua tristeza piegas que me interessam, mas sim sua sonoridade, cadência e ritmo. Os versos - alternância de decassílabos e linhas menores - são carregados de musicalidade (aliás, a melhor característica da poesia de Gonçalves Dias, no geral).

Os poetas do Modernismo, e ulteriores, renunciaram completamente aos elementos rítmicos do poema? Claro que não. Mas após as (então) vanguardas do início do século XX, "libertados" da exigência da metrificação, os autores passam a dedicar menos tempo ao artesanato na composição de suas obras. Isso sem falar que muitos acataram o "fim do ciclo histórico do verso", propalado no manifesto concretista, como um imperativo estético.

. . . . . . .

Penso haver outros dois motivos para o abandono da musicalidade em parte significativa da atual produção poética:

1) Talvez seja ridículo - ou anacrônico - para um poeta contemporâneo e para os (raríssimos) leitores atuais de poesia concentrarem-se em textos "arrumadinhos", como Não me deixes!. Equivocadamente, a meu ver, poemas desse tipo são considerados ultrapassados, incompatíveis com o "novo" (seja lá o que isso for).

2) Muitos que escrevem poemas hoje em dia, estranhamente, não tem por hábito ler outros poetas - do passado ou mesmo contemporâneos. Veja o caso de Carlito Azevedo. Numa entrevista dada a Elisabeth Orsini** (disponível aqui) o poeta carioca disse: "Gosto de todas as formas de divulgação de poesia, mas odeio ler poesia, acho entediante". Odiar não implica deixar de ler (ele deve fazê-lo, imagino, ao menos por "dever de ofício" - até porque atua como editor). Mas muitos por aí, com "menos nome" do que Azevedo, julgam inventar a roda a cada escrito produzido. Resultado: falam apenas para si mesmos. Não me interessam.

Sugiro que leiam Gonçalves Dias. Acho que não faria mal.
__________
*  DIAS, Gonçalves. Não me deixes!. In: __________. Os melhores poemas de Gonçalves Dias. 2 ed. São Paulo: Global, 1997 [seleção de José Carlos Garbuglio]

**  Entrevistando três poetas. Disponível em <http://www.jornaldepoesia.jor.br/eorsini01c.html>. Acesso em 10/05/2013


BG de Hoje

Uma das canções mais tristes da MPB: Na batucada da vida, de ARY BARROSO (com letra de LUIZ PEIXOTO). Inesquecível na voz de ELIS REGINA. OBS: No vídeo, a apresentação é aberta com um trecho de João Valentão, de Dorival Caymmi.