Em determinado momento do conto Erostrato*, de Jean-Paul Sartre, o personagem-narrador diz: "eu também, um dia, no fim de minha vida obscura, explodiria e iluminaria o mundo com uma chama violenta e fugaz como um clarão de magnésio".
O nome dele é Paul Hilbert. Trata-se de um insignificante funcionário, sexualmente frustrado, que tem medo dos outros e considera-se fraco. Como se vê, um cara igual a milhões mundo afora (inclusive, igual a este blogueiro). Entretanto, julga-se superior aos demais homens, pelo menos ao observá-los da sacada de um sexto-andar: "uma superioridade de posição, nada mais; estou colocado acima do humano que existe em mim e o contemplo".
Hilbert odeia as outras pessoas - mal suporta a proximidade física delas - e acredita ter razões sérias para isso. Quais seriam? Não ficam claras ao longo da narrativa. Mas ele nos diz que é fácil imaginá-las. Por quê? Deixo a pergunta em suspensão.
O personagem-narrador sente-se diferente dos outros indivíduos, todos potenciais opositores:
Ao comprar um revólver, "tudo começou a ir melhor". E noites depois, veio-lhe a singela "ideia de atirar em homens". Não queria fazer nada de forma irrefletida. Treinou um pouco e buscou fazer transparecer sua decisão, de forma velada.
Hilbert excitava-se tremendamente com a perspectiva de descarregar seu revólver nos outros. Simular em pensamento a situação "era uma brincadeira muito enervante; minhas mãos tremiam; por fim, eu me via obrigado a tomar um conhaque no Dreher para me refazer". Seu ato futuro lhe parecia uma obra de arte: "Encarado de certo ângulo é atroz, mas, por outro lado, dá ao instante que passa uma força e uma beleza consideráveis". O massacre se tornaria um "mineral resplandecente".
Numa carta destinada a 102 escritores franceses - o momento mais sensacional do conto - Hilbert, numa comparação com os destinatários, vê, entre estes e o remetente, apenas "uma pequena diferença de gosto". E reclama, demonstrando que mesmo um sujeito abjeto e perturbado como ele tenta dar algum significado para a existência: "Mas tudo passa como se tivésseis a graça e eu não. Sou livre para gostar ou não de lagosta à americana, mas, se não gosto dos homens, sou um miserável e não posso encontrar lugar ao sol. Monopolizaram o sentido da vida".
Por acaso, fica conhecendo o caso de Eróstrato, habitante de Éfeso, que, no século IV a. C., pôs em chamas o templo de Ártemis, no mesmo dia do nascimento de Alexandre Magno. Com isso, Eróstrato quis entrar para a história. Preso, foi condenado à tortura e seu nome foi proibido de ser pronunciado a partir de então, sob pena de morte a quem o fizesse. Hilbert fica encorajado: "Havia mais de dois mil anos que ele estava morto e sua ação ainda brilhava, como um diamante negro".
O resultado do "crime-obra-de-arte" do personagem-narrador nada tem de grandioso e termina de modo infame. Mas o que me interessa no momento é a resposta que gostaria de dar à pergunta formulada anteriormente (por que seria fácil para nós, leitores do conto de Sartre, imaginar as "razões sérias" que levam Hilbert a odiar as outras pessoas?).
Seria complicado formular explicitamente essas razões, mas algo menos evasivo pode ser dito. Vários de nós, que gostamos de nos ver como "gente de bem" ou com "alma de humanistas", experimentamos, com maior ou menor intensidade, a mesmíssima sensação de ódio em relação a outras pessoas, mesmo que estes indivíduos não nos tenham feito, direta ou indiretamente, qualquer malefício. Faça um breve exame de consciência. Não é fácil sentir esse ódio? Se temos ou não desejo ou intenção de matar os outros, aí já é outra conversa.
Na próxima postagem, começo a falar do livro O tempo e o cão, de Maria Rita Kehl.
O nome dele é Paul Hilbert. Trata-se de um insignificante funcionário, sexualmente frustrado, que tem medo dos outros e considera-se fraco. Como se vê, um cara igual a milhões mundo afora (inclusive, igual a este blogueiro). Entretanto, julga-se superior aos demais homens, pelo menos ao observá-los da sacada de um sexto-andar: "uma superioridade de posição, nada mais; estou colocado acima do humano que existe em mim e o contemplo".
Hilbert odeia as outras pessoas - mal suporta a proximidade física delas - e acredita ter razões sérias para isso. Quais seriam? Não ficam claras ao longo da narrativa. Mas ele nos diz que é fácil imaginá-las. Por quê? Deixo a pergunta em suspensão.
O personagem-narrador sente-se diferente dos outros indivíduos, todos potenciais opositores:
"Sabia que eles eram meus inimigos, mas eles não o sabiam. Amavam-se uns aos outros, ajudavam-se; e me teriam ajudado, ocasionalmente, porque acreditavam que eu era semelhante a eles. Mas se pudessem adivinhar a mais ínfima parcela da verdade teriam me batido".
Ao comprar um revólver, "tudo começou a ir melhor". E noites depois, veio-lhe a singela "ideia de atirar em homens". Não queria fazer nada de forma irrefletida. Treinou um pouco e buscou fazer transparecer sua decisão, de forma velada.
Hilbert excitava-se tremendamente com a perspectiva de descarregar seu revólver nos outros. Simular em pensamento a situação "era uma brincadeira muito enervante; minhas mãos tremiam; por fim, eu me via obrigado a tomar um conhaque no Dreher para me refazer". Seu ato futuro lhe parecia uma obra de arte: "Encarado de certo ângulo é atroz, mas, por outro lado, dá ao instante que passa uma força e uma beleza consideráveis". O massacre se tornaria um "mineral resplandecente".
Numa carta destinada a 102 escritores franceses - o momento mais sensacional do conto - Hilbert, numa comparação com os destinatários, vê, entre estes e o remetente, apenas "uma pequena diferença de gosto". E reclama, demonstrando que mesmo um sujeito abjeto e perturbado como ele tenta dar algum significado para a existência: "Mas tudo passa como se tivésseis a graça e eu não. Sou livre para gostar ou não de lagosta à americana, mas, se não gosto dos homens, sou um miserável e não posso encontrar lugar ao sol. Monopolizaram o sentido da vida".
Por acaso, fica conhecendo o caso de Eróstrato, habitante de Éfeso, que, no século IV a. C., pôs em chamas o templo de Ártemis, no mesmo dia do nascimento de Alexandre Magno. Com isso, Eróstrato quis entrar para a história. Preso, foi condenado à tortura e seu nome foi proibido de ser pronunciado a partir de então, sob pena de morte a quem o fizesse. Hilbert fica encorajado: "Havia mais de dois mil anos que ele estava morto e sua ação ainda brilhava, como um diamante negro".
O resultado do "crime-obra-de-arte" do personagem-narrador nada tem de grandioso e termina de modo infame. Mas o que me interessa no momento é a resposta que gostaria de dar à pergunta formulada anteriormente (por que seria fácil para nós, leitores do conto de Sartre, imaginar as "razões sérias" que levam Hilbert a odiar as outras pessoas?).
Seria complicado formular explicitamente essas razões, mas algo menos evasivo pode ser dito. Vários de nós, que gostamos de nos ver como "gente de bem" ou com "alma de humanistas", experimentamos, com maior ou menor intensidade, a mesmíssima sensação de ódio em relação a outras pessoas, mesmo que estes indivíduos não nos tenham feito, direta ou indiretamente, qualquer malefício. Faça um breve exame de consciência. Não é fácil sentir esse ódio? Se temos ou não desejo ou intenção de matar os outros, aí já é outra conversa.
Na próxima postagem, começo a falar do livro O tempo e o cão, de Maria Rita Kehl.
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* SARTRE, Jean-Paul. Erostrato. In: ____________. O muro. 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 65-83 [tradução de H. Âlcantara Silveira].
BG de Hoje
Ao contrário do personagem do conto de Sartre, a canção do BG fala justamente da proximidade afetiva entre as pessoas: a belíssima Pai e mãe, de GILBERTO GIL.