terça-feira, 19 de junho de 2012

O "esconderijo" dos acadêmicos ou Culpa e vida intelectual (II)



Ao final da postagem anterior deixei no ar as seguintes questões - por que falar em contradição? E por que falar em culpa? - na tentativa de entender melhor o que vem a ser um intelectual.

Para achar uma resposta satisfatória e dar prosseguimento à discussão, "convido" Jean-Paul Sartre, um dos últimos pensadores que lograram conferir ao intelectual uma imagem de atuação pública reconhecida.

Num de seus ensaios mais famosos* (produto de conferências realizadas em 1965), o filósofo francês parte das censuras e das críticas mais difundidas sobre os intelectuais e encontra nestas um ponto comum:

" [...]  o intelectual é alguém que se mete no que não é da sua conta  e que pretende contestar o conjunto das verdades recebidas, e das condutas que nelas se inspiram, em nome de uma concepção global do homem e da sociedade - concepção hoje em dia impossível, portanto abstrata e falsa, já que as sociedades de crescimento se definem pela extrema diversificação dos modos de vida, das funções sociais, dos problemas concretos".

Sartre, problematizando essa visão, busca apontar os limites e as falhas de um modelo educacional tecnicista, hegemônico na atualidade  (e cujo ponto culminante é a superespecialização em cada campo do conhecimento) : sua intenção é recuperar a importância da formação dita humanista e, desse modo, "salvar" o papel dos intelectuais nas sociedades contemporâneas.

Esse papel, contudo, está imerso em contradições. Diz o filósofo francês:
 
"Ele  [o intelectual]  é 'humanista' desde a infância: isso significa que o fizeram acreditar que todos os homens eram iguais. Ora, quando ele se vê, toma consciência de ser, em si mesmo, a prova da desigualdade das condições humanas. Ele possui um poder social que decorre de seu saber vertido a uma prática. Mas ele chegou a esse saber - filho de funcionário, de alto assalariado ou de representante das profissões liberais - enquanto herdeiro: a cultura já estava em sua família antes de ele nascer - nascer em sua família ou nascer na cultura é a mesma coisa. E, se ele se origina das classes trabalhadoras, só pôde ter sucesso pela única razão de que um sistema de seleção complexo e  jamais justo  eliminou a maior parte de seus camaradas. De qualquer maneira, ele é possuidor de um privilégio injustificado, mesmo - e, num certo sentido, sobretudo - se venceu brilhantemente todas as provas. Esse privilégio - ou monopólio do saber - está em radical contradição com o igualitarismo humanitário. Em outros termos, a ele deveria renunciar. Mas, como ele  é  esse privilégio, não pode renunciar a ele sem se abolir, o que contradiz o instinto de vida tão profundamente enraizado na maior parte dos homens".

Ao introduzir o componente classe social em sua análise, Jean-Paul Sartre nos lembra que a cultura (e, nesse contexto, pode-se entender o termo no mesmo sentido de conhecimento formalizado)  não está imune aos condicionamentos econômicos. Condicionamentos estes que geram desigualdades entre os seres humanos - das quais a própria existência dos intelectuais é prova, pois seu acesso aos bens culturais é  "jamais justo". Uma tomada de consciência dessa natureza pode gerar, no indivíduo em que esta surge, um pesado sentimento de culpa, em bom número de casos...

Que fazer, então? Continuo na próxima postagem.
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* SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994 [tradução de Sérgio Goes de Paula]

BG de Hoje

Quando estou prestes a encerrar mais um dia de trabalho, um pouco cansado e meio desanimado (é o caso agora), penso apenas no momento em que estiver lá em casa. Chegando, vou abrir uma lata de cerveja e ouvir canções pra recuperar as forças. Uma dessas é a linda  Red Hill Mining Town,  do U2