Antes de falar sobre o romance de Cervantes (mais especificamente, sobre um de seus capítulos), gostaria de mencionar algumas observações sobre o ato de ler, recentemente ditas por Alberto Manguel, ensaísta argentino (radicado no Canadá), por quem tenho muita admiração.
Em entrevista concedida à revista Língua Portuguesa* (disponível aqui), ao ser perguntado se "ler de fato nos melhora", ele responde por meio de um caso pessoal:
"Fiz o secundário no Colégio Nacional de Buenos Aires, em meio à ditadura. Foi um professor de literatura de lá que me inspirou a escrever. Ele me fez descobrir a função humanizante da literatura, que a ficção é uma mentira que conta a verdade e a experiência dos personagens é, no fundo, a nossa experiência. Veja, os alunos desse colégio fizeram forte oposição aos militares. Pouco depois eu saí do país, mas soube que muitos de meus colegas foram denunciados, torturados e mortos. Uns vinte anos depois, voltei à Argentina para uma festa de ex-colegas. E descobri, chocado, que aquele professor era o informante dos torturadores. Ler em si mesmo não é mais que uma atividade essencial. Mas o valor do ato está dado pelo uso que fazemos da leitura".
E Manguel, prossegue, mais à frente:
"Minha primeira reação foi rechaçar a literatura associada àquele professor. Mas percebi que a literatura é uma forma de manter a atenção entre duas margens [...] há leituras que permitem fazer uso da memória da experiência do mundo. Nesse caso, ler melhora nossa maneira de atuar".
"A ficção é uma mentira que conta a verdade". "Ler melhora nossa maneira de atuar". Gostaria que o(a) leitor(a) mantivesse essas duas ideias em seu espírito enquanto acompanha minha exposição.
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O capítulo XXII do Dom Quixote ** (Da liberdade que Dom Quixote deu a muitos desditados, que iam levados contra sua vontade onde eles por si não quereriam ir) é marcado pelo humor burlesco. Mas não só isso.
Vai o fidalgo da Mancha pela estrada, acompanhado de Sancho Pança, quando surge uma guarnição militar levando condenados a remar nas galés. Dom Quixote quer saber de cada um "a causa da sua desgraça". Os presos vão informando, a maioria deles fazendo chacota (um dos guardas já antecipara a Dom Quixote que "essa gente põe gosto em fazer e assoalhar velhacarias"). Após ouvir os relatos, o cavaleiro andante toma uma decisão fora do comum: resolve libertar todos os galeotes, "porque dura coisa lhe parece o fazerem-se escravos indivíduos que Deus e a natureza fizeram livres". Após uma refrega, todos são soltos e seu libertador exige que os libertados relatem o ocorrido perante a Senhora Dulcinéia del Toboso. Obviamente, os agora fugitivos se recusam e enchem Dom Quixote e Sancho Pança de pedradas.
Acho esse capítulo engraçadíssimo, principalmente ao ler o modo como os presos se expressavam e a ingenuidade com que o cavaleiro os ouvia. Entretanto, há também aqui o reconhecimento da liberdade como um valor supremo e uma crítica, ainda que discreta, às autoridades que se colocam muito distantes das pessoas sobre as quais seu poder recai.
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Nunca existiu Dom Quixote (em carne e osso, quero dizer). E se algo não tem concretude física, para muita gente, não passa de bobagem. Ou não passa de mentira. Mas, para mim, há verdade nas coisas que diz e faz o Cavaleiro da Triste Figura (e também seu escudeiro, como não?). Tendo sido um leitor contumaz das novelas fantasiosas que apreciava, Dom Quixote tornou-se, mesmo amalucado, uma "pessoa" que agia da melhor forma possível em relação aos outros.
É este também o meu sonho de leitor
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* A leitura do mundo. Revista Língua Portuguesa, São Paulo, n. 63, p. 10-14, jan. 2011 (Editora segmento) [Entrevista concedida a Luiz Costa Pereira Júnior]
** CERVANTES DE SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Abril Cultural, 1981 [tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo: notas de José Maria Castro Calvo, traduzidas por Fernando Nunes Rodrigues]
BG de Hoje
Na postagem anterior, indiquei um guitarrista de rock (o maior deles, aliás) tocando blues. Falo de outro hoje: Jack White, dos WHITE STRIPES, arrebentando em Ball and Biscuit.