Hoje trato do capítulo III da Segunda Parte d'O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha *, intitulado Do ridículo arrazoado que houve entre Dom Quixote, Sancho Pança e o Bacharel Sansão Carrasco.
Antes, dois esclarecimentos:
1) O escritor, como se sabe, valeu-se de um "estratagema" para dar corpo a seu romance, tal como foi inicialmente pensado: atribuiu ele a autoria do texto "original" a um tal Cide Hamete Benengeli, obscuro sábio mouro. Desse modo, Cervantes seria apenas o "recontador" da história, eximindo-se do que por ventura fosse considerado disparate por parte do público.
2) Dom Quixote, no mesmo ano de sua publicação (1605), foi reeditado seis vezes e traduzido para outros idiomas com uma rapidez incomum na época. O sucesso estrondoso motivou o aparecimento de uma segunda parte falsa. Por esta razão, Cervantes lançou, em 1615, sua própria continuação das aventuras do Cavaleiro da Triste Figura e seu escudeiro falador. Essa sequência, portanto, foi produzida sob condições especialíssimas: o livro ao qual se ligava era comentado e conhecido e isso se refletiu na Segunda Parte.
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Apesar da vetustez de que se revestem as obras clássicas, Dom Quixote não deixa de ser um livro engraçado, sobretudo nas passagens em que o protagonista e Sancho Pança se estrepam clamorosamente. Na conversa com Sansão Carrasco, os personagens procuram saber que façanhas foram contadas no livro a respeito deles e quais destas se destacam:
"Nisso - respondeu o bacharel - há diferentes opiniões, como há diversos gostos: uns preferem a aventura dos moinhos de vento que a Vossa Mercê lhe pareceram briareus e gigantes; outros a das azenhas; este a descrição dos dois exércitos, que depois se viu serem dois rebanhos de carneiros; aquele encarece a do morto que levavam a enterrar a Segóvia; diz um que a todos se avantaja a da liberdade dos galeotes; outro, que nenhuma iguala a dos dois gigantes beneditinos, com a pendência do valoroso biscainho".
NOTA: Na próxima (e última) postagem desta série escreverei sobre a "aventura da liberdade dos galeotes" (capítulo XXII, da "Primeira Parte"), que acho sensacional.
Sancho e Quixote dão-se conta, então, que não só os "altos", mas principalmente os "baixos" decorrentes de suas ações foram "registrados" sem condescendência por Cide Hamete Benengeli.
Peço atenção para este trecho, por gentileza:
" - Com tudo isso - respondeu o bacharel -, dizem alguns que leram a história que folgariam se se tivessem esquecido os autores de algumas da infinitas pauladas que em diferentes recontos deram no Senhor Dom Quixote.
- E a verdade da história? - perguntou Sancho.
- Poderiam deixá-las [as pauladas] em silêncio por equidade - notou Dom Quixote -, pois as ações que não mudam nem alteram o fundo verdadeiro da história, não há motivo para se escreverem, logo que redundem em menosprezo do protagonista. À fé que não foi tão pio Enéias como Virgílio o pinta, nem tão prudente Ulisses como refere Homero.
- Assim é - redarguiu Sansão -, mas uma coisa é escrever como poeta, e outra como historiador: o poeta pode contar ou cantar as coisas não como foram, mas como deviam ser, e o historiador há de escrevê-las, não como deveriam ser, mas como foram, sem acrescentar nem tirar à verdade a mínima coisa.
- Pois se esse senhor mouro anda a dizer verdades - disse Sancho - é, bem certo que entre as pauladas que apanhou meu amo se contem as minhas também, porque nunca a Sua Mercê lhe tomaram a medida das costas que ma não tomassem a mim de todo o corpo: mas não há que maravilhar-me, pois como diz o mesmo senhor meu, da dor da cabeça hão de participar os membros".
Cide Hamete Benengeli não seria um poeta mas um historiador. E, segundo pensa o bacharel Carrasco, está por isso mesmo mais próximo da "verdade". No entanto, nesse "ridículo arrazoado" (como o denomina Cervantes), estamos diante de três interlocutores que não são, eles próprios, "verdadeiros": são seres ficcionais saídos da cabeça de Cervantes, que brinca com este conceito tão solene - a verdade -, dentro das possibilidades que as convenções literárias de seu tempo lhe ofereciam. E é importante destacar que, não à toa, é Sancho Pança quem faz o alerta sobre "a verdade da história".
Encerro o assunto na próxima semana.
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* CERVANTES DE SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Abril Cultural, 1981 [tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo: notas de José Maria Castro Calvo, traduzidas por Fernando Nuno Rodrigues]
BG de Hoje
Poucos são os que discordam desta afirmação: JIMI HENDRIX foi o maior guitarrista da história. E penso não ser necessário buscar sua genialidade nas estripulias psicodélicas que gravou; basta ouvir um blues maravilhosamente tocado, como é o caso de Red House .