domingo, 28 de agosto de 2011

"Eu sou a vovó do livro": Tatiana Belinky e a leitura como exemplaridade





Meses atrás, postei texto alusivo aos 80 anos de Ruth Rocha, minha forma de homenagear essa representante fundamental da nossa Literatura Infanto-Juvenil

Mas, e Tatiana Belinky (perguntou-me, outro dia, uma ex-colega de trabalho)? A escritora e tradutora - nonagenária! - não merece também reconhecimento? Claro que sim.

Já havia escrito sobre ela (clique aqui), quando tratei do livro autobiográfico Transplante de menina, no qual a autora narra sua infância, desde o nascimento na Rússia até a chegada a São Paulo, na década de 1930. Motivo para uma brincadeira, na entrevista concedida ao Almanaque Brasil de Cultura Popular*(disponível aqui): "Sou mais brasileira do que vocês. Estou no Brasil há 75 anos [a matéria foi publicada em 2004] e vocês não".

Nesta mesma entrevista, ela relata sua progressiva familiaridade com diversos idiomas: o letão e o russo ("heranças" nativas), o alemão, o francês, o inglês e, obviamente, o português. E dispara: "a gente aprende mais lendo do que decorando mesóclises e outras barbaridades".

Conta-nos sua experiência com o teatro infantil e com a (então incipiente) televisão: não custa lembrar que a escritora foi a primeira a roteirizar textos de Monteiro Lobato (na época, para a extinta TV Tupi).

E embora sua produção autoral seja considerável, sempre valorizei mais a imensa contribuição de Tatiana Belinky na área da tradução.

Recordemos, por exemplo, os trabalhos que fez, nos anos 1980, para a Coleção Asa Delta. Em "Causos" russos**, apresentou a muitos leitores brasileiros (a este blogueiro, por exemplo) as historietas humorísticas de Mikhail Zochtchenko. Em Salada russa***, reuniu narrativas breves de autores destacados com Pushkin, Liermontov, Turgueniev, Tolstoi, Tchekhov e Gorki. É também dela a tradução que se encontra no lindíssimo A feira anual de Sorotchinski**** (de Nicolai Gógol), publicado pela Ática.

Mais recentemente, em Um caldeirão de poemas*****, o público infantil pode conhecer textos da própria Tatiana Belinky e outros, de anônimos a autores afamados, como Emily Dickinson, Walt Whitman, Edward Lear, Goethe, Heine, Lewis Carroll... Todos convenientemente vertidos para o português e acompanhados de ótimas ilustrações.

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E antes de encerrar, gostaria de destacar mais um trecho da entrevista acima mencionada. Diante da pergunta "como escrever bem para criança?", Belinky amplia sua resposta e acaba falando sobre algo que julgo indispensável para aqueles que militam no campo da promoção da leitura:

"Precisa expor o livro à criança, expor a criança ao livro. Tem que levá-la à biblioteca; ter livros em casa; ler para ela; ela ver a gente lendo. Nunca vi meus pais sem livro na mão [...]. Eu sou a vovó do livro. Quero que me vejam com o livro na mão". [grifos meus]

As ações de promoção da leitura e aquelas que intentam contribuir para a formação do leitor não serão bem sucedidas, penso eu, enquanto os agentes - professores, bibliotecários, pais e mães, etc. - não se tornarem referênciasmodelos ou exemplos de leitores para os sujeitos com os quais convivem, interagem e/ou trabalham.

* "Precisa expor o livro à criança, expor a criança ao livro". Almanaque Brasil de Cultura Popular, São Paulo, Ano 6, v. 64, jul. 2004, p. 20-24

** ZOCHTCHENKO, Mikhail M. "Causos" russos. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1988 [tradução de Tatiana Belinky] (Coleção Asa Delta)

*** TOLSTOI, Leon et alSalada russa. 3 ed. São Paulo: Paulus 1988 [tradução de Tatiana Belinky] (Coleção Asa Delta)

**** Um caldeirão de poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 [poemas traduzidos, adaptados ou escritos por Tatiana Belinky]

***** GÓGOL, Nicolai. A feira de Sorotchinski. 2 ed. São Paulo: Ática, 1993 [Adaptado por Sybil G. Schönfeldt e traduzido por Tatiana Belinky]

BG de Hoje

Milagres do povo, de CAETANO VELOSO, inicia-se com um verso antitético: "Quem é ateu e viu milagres como eu". Canção forte, tratando de aspectos caros à negritude brasileira, seja ela religiosa ou não (como é meu caso): "Quem descobriu o Brasil?/ Foi o negro que viu a crueldade bem de frente/ e ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente" OBS: O vídeo foi extraído do saudoso programa Chico e Caetano.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O que lamento em Borges





"[Borges] Citou-me um verso no qual dizia ter cometido o pior de todos os pecados possíveis ao homem, o de não ter sido feliz".
Álvaro Alves de Faria - Borges: o mesmo e o outro

Há poucos dias fui buscar livros que encomendei na excelente Livraria do Psicólogo e do Educador de BHNOTA: Faço questão de incluir o merchandising (não remunerado, esclareço) pois tenho sido muito bem atendido por lá. Estou comprando aos poucos - beeeeem aos poucos - algumas das obras de Jorge Luis Borges, reeditadas pela Companhia das Letras. E consegui agora adquirir O livro dos seres imaginários e O livro de areia.

Falar do escritor argentino sem certa reverência é bastante difícil. Leia-se, por exemplo, o verbete dedicado a ele na Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe*:

"Um dos alicerces fundadores da literatura latino-americana do século XX, assegurou a renovação e, ao mesmo tempo, a retomada das raízes da cultura ocidental ao continente". E mais adiante: "[...] instaurou uma metamorfose estética à qual a narrativa será para sempre grata".

Entretanto, o mesmo verbete considera que, ao lado da erudição impressionante, Borges "manteve uma linearidade política conservadora diante da realidade política de seu país", apoiando inclusive o regime ditatorial militar.

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Em postagem publicada meses atrás, falando sobre Monteiro Lobato, critiquei postura assumida por parte do público leitor, que acostumou-se a idealizar a figura dos escritores, chegando quase a mitificá-los. E, reconheço, às vezes também incorro nesse erro.

Falo disso porque, recentemente, acabei de ler um bom livrinho (o diminutivo aqui só se refere ao número de páginas - menos de 80) que ajuda a lembrar que Jorge Luis Borges, a despeito da genialidade, era, antes de mais nada, um simples mortal. E com opiniões detestáveis, absurdas, asquerosas.

Em Borges: o mesmo e o outro**, de Álvaro Alves de Faria, composto a partir de uma entrevista realizada em Buenos Aires, no ano de 1976, o tom reverente não é abandonado, mas o autor não ameniza as declarações do escritor argentino, como essa, por exemplo:

"A raça negra é inferior em tudo. A raça negra nada fez, nada faz. Se não existissem negros a história do mundo não mudaria em nada. O negro é uma raça que só sabe viver da imitação das coisas dos homens brancos. Os negros não servem para nada".

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Seria o caso de deixar de ler Borges? Não farei isso. Mas quero lembrar a mim mesmo que os artistas, no sentido mais pleno do termo, são muitas vezes tão desprezíveis e odiosos quanto qualquer outro ser humano.


* Jorge Luis Borges. In: SADER, Emir et al. (Coord.). Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, 2006. p. 204-205


**  FARIA, Álvaro Alves de. Borges: o mesmo e o outro. São Paulo: Escrituras, 2001 (Coleção Ensaios Transversais)

BG de Hoje

Graças a meu irmão mais velho, comecei a curtir rock'n'roll (curiosamente, hoje em dia, ele não é mais tão ligado em música). Era eu ainda criança e gostava de ouvir um álbum duplo, ao vivo, da cantora JANIS JOPLIN, pertencente a ele. Achava aquele som maravilhoso. Tanto que passei a admirar todos os cantores que, do mesmo modo que Joplin, interpretam cada canção como se fossem morrer de um mal súbito assim que terminarem de cantar. Embora não seja um rock típico, muito me emociona Kozmic Blues.



segunda-feira, 22 de agosto de 2011

"Mas de tudo, terrível, fica um pouco..."


Embora A rosa do povo não seja meu livro predileto de Carlos Drummond de Andrade (sempre gostei mais de Brejo das Almas e Sentimento do Mundo), nele podem ser encontrados alguns dos poemas mais bem elaborados, do ponto de vista da forma, na obra do itabirano (e o caminho progressivo na burilação do texto poético, penso eu, atingirá o ápice no trabalho ulterior, Claro Enigma). Entre os textos inesquecíveis de A rosa do povo - inesquecível, no meu caso, em sentido literal; sei dizê-lo de cor, mesmo tendo tomado doses e doses de cachaça - está Resíduo*. Poucas vezes li algo tão bonito falando sobre a dissolução de tudo que existe, da precariedade e insegurança da existência, das lembranças como sinônimo de tormento.

Chega de falação desnecessária: ao poema, pois:

RESÍDUO

De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este sorriso infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob ti mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Resíduo. In: A rosa do povo. 40 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 92-95

BG de Hoje

O amor é um jogo de azar... Simples, direto: precisa acrescentar mais alguma coisa? AMY WINEHOUSELove is a losing game.



quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O ato de escrever: vaidade, autoafirmação ou compartilhamento de saber? (2)



"A vaidade está de tal forma arraigada no coração do homem que um soldado, um criado, um cozinheiro, um malandro, se gaba e pode ter seus admiradores; e os próprios filósofos pretendem o mesmo. E os que escrevem contra isso querem a glória de escrever bem, e os que os leem querem ter a glória de os ter lido; e eu, que escrevo isto, talvez tenha essa vontade, e talvez os que me lerem..."

 Pascal - Pensamentos*


"Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento".
Carlos Drummond de Andrade, no poema América**


Comecemos falando do poema*** de João Cabral de Melo Neto citado na postagem anterior, cujos dois primeiros versos compõem uma pergunta que o poeta tentará responder com o próprio texto: "Por que é o mesmo o pudor/ de escrever e defecar?"


Escrever, neste caso, refere-se à escrita literária (mais precisamente, à produção do poema). Este é um dos textos que, a meu ver, melhor se ajustam à concepção cabralina do fazer poético. E este fazer, para João Cabral, nada tem de especialmente sublime ou inefável. Daí a magistral comparação entre o momento da geração/elaboração do texto literário (algo supostamente elevado, enobrecedor) com a cagada (aqui no sentido literal, necessidade fisiológica culturalmente associada àquilo que é reles, sórdido).

Na segunda estrofe, João Cabral nos diz que "escrever é estar no extremo/ de si mesmo [...]" ; é estar completamente nu. Daí o pudor. Mas atenção: essa vergonha aparece apenas porque o escritor/poeta não quer que outras pessoas "vejam/ o que deve haver de esgar,/ de tiques, de gestos falhos,/ de pouco espetacular/ na torta visão de uma alma/ no pleno estertor de criar". Essas reações - mais uma vez a comparação - assemelham-se às que acontecem quando estamos sentados nos vasos sanitários. E vale lembrar que alguns escritores/poetas (que, na minha opinião, são os piores) gostam de alardear que sua escrita provém, não da atividade assídua, rotineira, mas  de um "dom" singular.

No último grupamento de versos, o autor dá-se conta de um paradoxo: "o pudor de fazer/ é impudor de publicar". Deve ser por isso que há tanta merda em prosa e verso jogada na web (sendo este blog amostra inequívoca de matéria excrementícia) ... Tenciono, porém, falar de outro assunto a partir de agora.

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Sempre desconfio de quem não reconhece em si próprio a vaidade. Blaise Pascal (já citado na epígrafe deste texto), um dos filósofos que melhor refletiu sobre essa característica humana (e não vou me deter aqui sobre as razões que o levaram a isso), afirmara:

"Curiosidade não é senão vaidade. O mais das vezes, não se quer aprender senão para falar do que se sabe. Não viajaríamos por mar, só pelo prazer de ver, se não quiséssemos dizer algo a respeito e não esperássemos comunicar nossas impressões".

Partindo dessa passagem, e pensando no ato de escrever para além da atividade artística/ profissional, gostaria de discutir com o(a) leitor(a) o que podemos intuir hoje em dia sobre esse ato, com o advento dos blogs e, principalmente, das chamadas redes sociais, esses novos espaços da escrita, cada vez mais populares, influentes e despudorados, em certo sentido (principalmente as redes), levando em consideração o que esses "lugares" podem representar em termos de exibição vaidosa, necessidade de autoafirmação e desejo de compartilhamento de algum saber.

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Marcelo Coelho, recentemente, na sua (ótima) coluna da Folha de S. Paulo**** (disponível aqui), ao comentar sobre as futilidades que infestam o Facebook (e preciso admitir: "contribuo" com um bocado delas), disse ficar "aflito de ver as pessoas postando de 15 em 15 minutos, durante toda a extensão do dia. A falta do que fazer nunca deu tanto trabalho".

Admitindo sua rabugice, Coelho, no entanto, acaba vendo uma função para a rede social: seria uma "função fática", quando o que se quer é apenas enviar sinais de existência, do tipo "olha, eu tô aqui!". E percebendo que a "utilidade" do Facebook (e por consequência, parte significativa da sua lucratividade) está também ligada à ferramenta curtir, faz uma observação com a qual concordo plenamente: "Reparei que não existe, entretanto, a ferramenta oposta. O ' não curti ', que sem dúvida eu empregaria com relativa frequência, não está previsto".

E isso talvez seja bom: evitam-se brigas, que seriam ainda mais banais do que as próprias postagens.

Com tudo isso quero dizer o seguinte: na minha avaliação, o Facebook (como outros "serviços" na web, inclusive a blogosfera) é, para muitas pessoas, apenas um espaço de exibicionismo vaidoso. Entretanto, cabe perguntar: quem não é vaidoso? O problema, penso eu, é que essa rede social e os blogs (assim como o Twitter ou o Orkut) podem nos mostrar como determinadas pessoas são superficiais e a gente não percebia... Mas, pensando bem,  isso pode até ser útil: não tenho problema nenhum em "deletar" da minha lista de contatos (e também do meu convívio fora da web) pessoas que me encham o saco com seu narcisismo.

Porém, reconheço que, para muita gente, esses "serviços" criados na/pela rede mundial de computadores ajudam no caminho da autoafirmação de alguns indivíduos, como já pude comprovar com conhecidos próximos a mim, cuja aceitação de si mesmos está se tornando menos traumática.

Não seria o caso, por fim, de especular, de modo otimista (embora eu seja cronicamente pessimista), que estejamos plasmando talvez uma nova forma de gerar conhecimento, compartilhando, através desses "serviços", novas formas de saber? Quero lembrar o verso de Drummond citado na segunda epígrafe desse texto: "portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento".

O que pensa o(a) leitor(a) dessas lucubrações?

P.S. Vale muito também ler o que escreveu Rachel Nunes (clique aqui) a respeito das ideias de Marshall McLuhan, difundidas pelo clássico livro O Meio é a Mensagem, e que, de certo modo, se relaciona com o que discuti acima.

__________
PASCAL, Blaise. Pensamentos. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [tradução de Sérgio Milliet] (Coleção Os pensadores)

** ANDRADE, Carlos Drummond de. América. In: A rosa do povo. 40 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 150-155

*** MELO NETO, João Cabral de. Exceção: Bernanos, que se dizia escritor de sala de jantar. In: A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 90-91 [Este poema integra o livro Museu de Tudo, publicado originalmente em 1974]

***** COELHO, Marcelo. Curti (não curti) isso. Folha de S. Paulo, São Paulo, 10 ago. 2011, Caderno Ilustrada, p. 12


BG de Hoje

Os recentes "protestos" ou "desordens" (os termos variam de acordo com a posição ideológica do observador) ocorridos em Londres lembraram-me uma famosa canção do CLASH (misturando punk e reggae), The guns of Brixton (aliás, um dos distritos colocados em polvorosa nesses dias). Claro que o momento histórico era distinto deste e a banda não falava exatamente da mesma coisa, mas mesmo assim quis incluir este BG.




sábado, 13 de agosto de 2011

O ato de escrever: vaidade, autoafirmação ou compartilhamento de saber? (1)


Num de seus melhores escritos* (apenas em minha opinião, claro), o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto fez extraordinária reflexão sobre o ato de escrever. Por enquanto, apenas reproduzo o poema; falarei dele (e de um assunto relacionado) mais adiante.

EXCEÇÃO: BERNANOS, QUE SE DIZIA ESCRITOR DE SALA DE JANTAR

Por que é o mesmo o pudor
de escrever e defecar?
Não há o pudor de comer,
de beber, de incorporar,
e em geral tem mas pudor
quem pede do que quem dá.
Então por que quem escreve,
se escrever é afinal dar,
evita gente por perto
e procura se isolar?

Escrever é estar no extremo
de si mesmo, e quem está
assim se exercendo nessa
nudez, a mais nua que há,
tem pudor de que outros vejam
o que deve haver de esgar,
de tiques, de gestos falhos,
de pouco espetacular
na torta visão de uma alma
no pleno estertor de criar.

(Mas no pudor do escritor
o mais curioso está
em que o pudor de fazer
é impudor de publicar:
com o feito, o pudor se faz
se exibir, se demonstrar,
mesmo nos que não fazendo
profissão de confessar,
não fazem para se expor
mas dar a ver o que há.)

Convido o(a) leitor(a) a refletir junto comigo nesta e na próxima postagem.
__________
* MELO NETO, João Cabral de. Exceção: Bernanos, que se dizia escritor de sala de jantar. In: A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 90-91 [Esse poema integra o livro Museu de Tudo, publicado originalmente em 1974)

BG de Hoje

No chamado movimento grunge, por razões óbvias, sempre gostei mais dos grupos que não se distanciavam do heavy metal tradicional. Caso do SOUNDGARDEN (e do Alice in Chains, minha banda predileta, claro). Além do mais, o quarteto contava com o guitarrista "zen" Kim Thayil e o excepcional cantor Chris Cornell. Em Blow up the outside world (canção feita sob medida para os permanentemente-putos-com-a-vida, como é o meu caso), Cornell escreveu uma das suas melhores letras. OBS: Abaixo, competente versão ao vivo.


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Dom Quixote e o sonho do leitor (3)



Antes de falar sobre o romance de Cervantes  (mais especificamente, sobre um de seus capítulos), gostaria de mencionar algumas observações sobre o ato de ler, recentemente ditas por Alberto Manguel, ensaísta argentino (radicado no Canadá), por quem tenho muita admiração.

Em entrevista concedida à revista Língua Portuguesa*  (disponível aqui), ao ser perguntado se "ler de fato nos melhora", ele responde por meio de um caso pessoal:

"Fiz o secundário no Colégio Nacional de Buenos Aires, em meio à ditadura. Foi um professor de literatura de lá que me inspirou a escrever. Ele me fez descobrir a função humanizante da literatura, que a ficção é uma mentira que conta a verdade e a experiência dos personagens é, no fundo, a nossa experiência. Veja, os alunos desse colégio fizeram forte oposição aos militares. Pouco depois eu saí do país, mas soube que muitos de meus colegas foram denunciados, torturados e mortos. Uns vinte anos depois, voltei à Argentina para uma festa de ex-colegas. E descobri, chocado, que aquele professor era o informante dos torturadores. Ler em si mesmo não é mais que uma atividade essencial. Mas o valor do ato está dado pelo uso que fazemos da leitura".

E Manguel, prossegue, mais à frente:

"Minha primeira reação foi rechaçar a literatura associada àquele professor. Mas percebi que a literatura é uma forma de manter a atenção entre duas margens [...] há leituras que permitem fazer uso da memória da experiência do mundo. Nesse caso, ler melhora nossa maneira de atuar".

"A ficção é uma mentira que conta a verdade".  "Ler melhora nossa maneira de atuar". Gostaria que o(a) leitor(a) mantivesse essas duas ideias em seu espírito enquanto acompanha minha exposição.

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O capítulo XXII do Dom Quixote **  (Da liberdade que Dom Quixote deu a muitos desditados, que iam levados contra sua vontade onde eles por si não quereriam ir) é marcado pelo humor burlesco. Mas não só isso.

Vai o fidalgo da Mancha pela estrada, acompanhado de Sancho Pança, quando surge uma guarnição militar levando condenados a remar nas galés. Dom Quixote quer saber de cada um "a causa da sua desgraça". Os presos vão informando, a maioria deles fazendo chacota (um dos guardas já antecipara a Dom Quixote que "essa gente põe gosto em fazer e assoalhar velhacarias"). Após ouvir os relatos, o cavaleiro andante toma uma decisão fora do comum: resolve libertar todos os galeotes, "porque dura coisa lhe parece o fazerem-se escravos indivíduos que Deus e a natureza fizeram livres".  Após uma refrega, todos são soltos e seu libertador exige que os libertados relatem o ocorrido perante a Senhora Dulcinéia del Toboso. Obviamente, os agora fugitivos se recusam e enchem Dom Quixote e Sancho Pança de pedradas.

Acho esse capítulo engraçadíssimo, principalmente ao ler o modo como os presos se expressavam e a ingenuidade com que o cavaleiro os ouvia. Entretanto, há também aqui o reconhecimento da liberdade como um valor supremo e uma crítica, ainda que discreta, às autoridades que se colocam muito distantes das pessoas sobre as quais seu poder recai.

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Nunca existiu Dom Quixote (em carne e osso, quero dizer). E se algo não tem concretude física, para muita gente, não passa de bobagem. Ou não passa de mentira. Mas, para mim, há verdade nas coisas que diz e faz o Cavaleiro da Triste Figura (e também seu escudeiro, como não?). Tendo sido um leitor contumaz das novelas fantasiosas que apreciava, Dom Quixote tornou-se, mesmo amalucado, uma "pessoa" que agia da melhor forma possível em relação aos outros.

É este também o meu sonho de leitor
__________
* A leitura do mundo. Revista Língua Portuguesa, São Paulo, n. 63, p. 10-14, jan. 2011 (Editora segmento) [Entrevista concedida a Luiz Costa Pereira Júnior]

** CERVANTES DE SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Abril Cultural, 1981 [tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo: notas de José Maria Castro Calvo, traduzidas por Fernando Nunes Rodrigues]


BG de Hoje

Na postagem anterior, indiquei um guitarrista de rock  (o maior deles, aliás)  tocando blues. Falo de outro hoje: Jack White, dos WHITE STRIPES, arrebentando em  Ball and Biscuit.

domingo, 7 de agosto de 2011

Dom Quixote e o sonho do leitor (2)



Hoje trato do capítulo III da Segunda Parte d'O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha *,  intitulado Do ridículo arrazoado que houve entre Dom Quixote, Sancho Pança e o Bacharel Sansão Carrasco.

Antes, dois esclarecimentos:

1) O escritor, como se sabe,  valeu-se  de  um "estratagema"  para  dar corpo a  seu romance, tal como foi inicialmente pensado:  atribuiu ele a autoria do texto "original" a um tal Cide Hamete Benengeli, obscuro sábio mouro. Desse modo, Cervantes seria apenas  o "recontador" da história, eximindo-se do que por ventura fosse considerado disparate por parte do público.

2)  Dom Quixote,  no mesmo ano de sua publicação (1605), foi reeditado seis vezes e traduzido para outros idiomas com uma rapidez incomum na época. O sucesso estrondoso motivou o aparecimento de uma segunda parte falsa. Por esta razão, Cervantes lançou, em 1615, sua própria continuação das aventuras do Cavaleiro da Triste Figura e seu escudeiro falador. Essa sequência, portanto, foi produzida sob condições especialíssimas: o livro ao qual se ligava era comentado e conhecido e isso se refletiu na Segunda Parte.

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Apesar da vetustez de que se revestem as obras clássicas, Dom Quixote não deixa de ser um livro engraçado, sobretudo nas passagens em que o protagonista e Sancho Pança se estrepam clamorosamente. Na conversa com Sansão Carrasco, os personagens procuram saber que façanhas foram contadas no livro a respeito deles e quais destas se destacam:

"Nisso - respondeu o bacharel - há diferentes opiniões, como há diversos gostos: uns preferem a aventura dos moinhos de vento que a Vossa Mercê lhe pareceram briareus e gigantes; outros a das azenhas; este a descrição dos dois exércitos, que depois se viu serem dois rebanhos de carneiros; aquele encarece a do morto que levavam a enterrar a Segóvia; diz um que a todos se avantaja a da liberdade dos galeotes; outro, que nenhuma iguala a dos dois gigantes beneditinos, com a pendência do valoroso biscainho".

NOTA: Na próxima (e última) postagem desta série escreverei sobre a "aventura da liberdade dos galeotes"  (capítulo XXII, da "Primeira Parte"), que acho sensacional.

Sancho e Quixote dão-se conta, então, que não só os "altos", mas principalmente os "baixos" decorrentes de suas ações foram "registrados" sem condescendência por Cide Hamete Benengeli.

Peço atenção para este trecho, por gentileza:

" - Com tudo isso - respondeu o bacharel -, dizem alguns que leram a história que folgariam se se tivessem esquecido os autores de algumas da infinitas pauladas que em diferentes recontos deram no Senhor Dom Quixote. 
 - E a verdade da história? - perguntou Sancho. 
- Poderiam deixá-las [as pauladas] em silêncio por equidade - notou Dom Quixote -, pois as ações que não mudam nem alteram o fundo verdadeiro da história, não há motivo para se escreverem, logo que redundem em menosprezo do protagonista. À fé que não foi tão pio Enéias como Virgílio o pinta, nem tão prudente Ulisses como refere Homero. 
- Assim é - redarguiu Sansão -, mas uma coisa é escrever como poeta, e outra como historiador: o poeta pode contar ou cantar as coisas não como foram, mas como deviam ser, e o historiador há de escrevê-las, não como deveriam ser, mas como foram, sem acrescentar nem tirar à verdade a mínima coisa. 
- Pois se esse senhor mouro anda a dizer verdades - disse Sancho - é, bem certo que entre as pauladas que apanhou meu amo se contem as minhas também, porque nunca a Sua Mercê lhe tomaram a medida das costas que ma não tomassem a mim de todo o corpo: mas não há que maravilhar-me, pois como diz o mesmo senhor meu, da dor da cabeça hão de participar os membros".

Cide Hamete Benengeli não seria um poeta mas um historiador. E, segundo pensa o bacharel Carrasco, está por isso mesmo mais próximo da "verdade". No entanto, nesse "ridículo arrazoado" (como o denomina Cervantes), estamos diante de três interlocutores que não são, eles próprios, "verdadeiros": são seres ficcionais saídos da cabeça de Cervantes, que brinca com este conceito tão solene - a  verdade -, dentro das possibilidades que as convenções literárias de seu tempo lhe ofereciam. E é importante destacar que, não à toa, é Sancho Pança quem faz o alerta sobre "a verdade da história".

Encerro o assunto na próxima semana.
__________
* CERVANTES DE SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. São Paulo: Abril Cultural, 1981 [tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo: notas de José Maria Castro Calvo, traduzidas por Fernando Nuno Rodrigues]

BG de Hoje

Poucos são os que discordam desta afirmação: JIMI HENDRIX foi o maior guitarrista da história. E penso não ser necessário buscar sua genialidade nas estripulias psicodélicas que gravou; basta ouvir um blues maravilhosamente tocado, como é o caso de  Red House .


segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Dom Quixote e o sonho do leitor (1)



Considero as páginas finais do Dom Quixote * uma traição.

Ah, e não estou nem aí por dar spoiler.

Antes de morrer, Dom Quixote chama seus conhecidos mais próximos, além de um médico, e se propõe a ditar seu testamento. Em conversa com a sobrinha, ele diz:

"As misericórdias [...] são as que neste momento Deus teve comigo, sem as impedirem, como disse, os meus pecados. Tenho o juízo já livre e claro, sem as sombras caliginosas da ignorância com que o ofuscou a minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros das cavalarias. Já conheço os seus disparates e os seus embelecos e só me pesa ter chegado tão tarde este desengano, que não me desse tempo para me emendar, lendo outros que fossem luz da alma. Sinto-me, sobrinha, à hora da morte; quereria passá-la de modo que mostrasse não ter sido tão má a minha vida que deixasse renome de louco, pois, apesar de o ter sido, não quereria confirmar essa verdade expirando".

A "leitura dos detestáveis livros das cavalarias" significou tempo perdido. Pior: insanidade. Melhor seria ter lido "outros que fossem luz da alma" (e quais seriam estes?). O personagem imortal de Cervantes, nesse último capítulo, acaba traindo a todos nós, insaciáveis e devotados leitores de ficção.

Seus próprios leitores.

. . . . . .

Já escrevi, em outras oportunidades, que a ficção nos redime da realidade. A Literatura é muito superior à existência justamente por tornar esta menos insuportável. Poemas e narrativas são muitas vezes desagradáveis, é verdade; a vida, entretanto, é assim o tempo todo, segundo penso.

Viver ou ler?

De forma "simpática" (e um tanto anódina), eu poderia responder: viver lendo.

Do fundo de mim, contudo, ouço o grito:  "LER!  LER É A ÚNICA VIDA QUE VALE A PENA SER VIVIDA! TODO O RESTO É CANALHICE E SORDIDEZ "

Por ora, voltemos ao livro de Cervantes.

. . . . . .

Na primeira parte do romance  (capítulos XLIX e L), o amalucado Cavaleiro da Triste Figura mantém discussão com um cônego que acompanhava a comitiva a levar Dom Quixote de volta à casa. O religioso fica estupefato com a persistente crença do outro nas aventuras narradas nos livros de cavalaria. E exorta o fidalgo da Mancha a procurar "verdades grandiosas e feitos tão reais como denodados" na Sagrada Escritura e nos relatos façanhosos de potentados do passado. Por fim, acha estranhíssimo que um homem com tanto entendimento possa desperdiçar sua atenção com tais inutilidades livrescas. Dom Quixote, então, defende a fantasia literária:

"Cale-se Vossa Mercê, não diga semelhante blasfêmia, e creia-se, que nisto lhe aconselho o que deve fazer como discreto; senão, leia-os, e veja o prazer que a sua leitura lhe dá [...]. Creia-me Vossa Mercê, e, como já lhe disse, leia estes livros, e verá como lhe desterram a melancolia e lhe melhoram a condição, se acaso a tiver má. Eu de mim sei que depois de me ter metido a cavaleiro andante, sou bravo, comedido, liberal, bem-criado, generoso, cortês, audaz, brando, paciente, sofredor de trabalhos, de prisões, de encantamentos [...]"

Quase todo o Dom Quixote - com exceção do capítulo final e das novelas paralelas inseridas nele - é a narração de uma "existência" consagrada à experiência literária, imersa num plano em que as exigências do real se digladiam com as recompensas da imaginação. E não é raro que esta última vença.

Não é este o sonho de todo leitor?

Prossegue na próxima postagem.
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* CERVANTES DE SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. São Paulo: Abril Cultural, 1981 [tradução de Viscondes de Castilho e Azevedo; notas de José Maria Castro Calvo, traduzidas por Fernando Nuno]

BG de Hoje

GUNS'N'ROSES é uma banda detestável, sob vários ângulos. Mas já fui jovem. Jovem e besta. Mais besta do que hoje. E já tive discos do grupo. Naquela época, uma garota de quem gostava muito me desprezava completamente. Ela tinha razão. Mas o rejeitado dificilmente aceita as coisas à luz dos fatos. Ficava puto (sem razão) e, em casa, ouvia a versão acústica de You're Crazy (ótima, aliás), remoendo o despeito...