"Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas". *
Exemplaridade:
vive-se em busca dela. Não se encontra. O trabalho (etimologicamente, a
palavra tem origem num antigo instrumento de tortura, o tripalium)
não é espaço de realização, nem de reconhecimento. A mediocridade e a
mesquinhez sufocam. É simplesmente de sobrevivência que falo: não sou
exigente, nem perdulário. Administro meus sonhos com moderação. E sigo
inquieto, angustiado. A publicidade e o entretenimento globalizado me
dizem o tempo todo que eu não valho nada. Estarão certos? De um
determinado ponto de vista, sim. Os parques... Entre os viciados em
crack que hoje os frequentam, ouço risadas infantis. Eles e diversos
outros não têm ideia de quem é aquela estátua ali colocada. UMA NOTA: Ferreira Gullar, na sua coluna de domingo (07/02/10), na Folha de S. Paulo,
ao comentar sobre o vandalismo recorrente com que é "tratada" a estátua
de Carlos Drummond de Andrade, no calçadão da avenida Atlântica, no Rio
de Janeiro, escreve: "saquear a estátua de um poeta é coisa de gente demasiado ignorante". OUTRA NOTA: Carlos Drummond de Andrade, mesmo em seu ceticismo, consegue ser bem-humorado: "À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze/ ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas".
Heroismo
de figura inerte e sem vida. Mitificação. Mistificação. Não, as
bibliotecas não são sinistras; não posso dizer o mesmo de mim.