quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Contra o desespero e o absurdo: um poema (1)



Convivo com este poema há muitos anos:

ELEGIA 1938
Carlos Drummond de Andrade
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,

sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina

e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas

sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


Elegia 1938
faz parte do livro Sentimento do mundo*, publicado pela primeira vez em 1940. Assinala a "transição" para a "fase social" da obra de Carlos Drummond de Andrade, como se convencionou dividir a poesia do autor mineiro.

Sendo direto: é o meu poema favorito, aquele que gosto de dizer quando, às vezes, sou tomado pelo desespero e tenho a sensação de que o absurdo é a realidade reinante.

Nos anos 1940, Drummond tornou-se o "poeta público", o "poeta político", principalmente após o surgimento de A rosa do povo. Ainda assim, não conheço melhor escritor para falar da solidão, sensação tão característica desse nosso mundo "inabitável" e, paradoxalmente, "cada vez mais habitado", para lembrar outro verso do escritor **.

Também sobre solidão nos fala esse maravilhoso Elegia 1938, assunto deste blog nas próximas postagens.


* ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. 13 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001

** Do poema O sobrevivente