quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Contra o desespero e o absurdo: um poema (3)

"Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a gerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes. sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan". *

Existe uma bela frase, costumeiramente atribuída a René Descartes: "a leitura é uma conversa com os homens mais célebres dos séculos passados". Aprecio a concepção do ato de ler como um diálogo. "Caminhas entre mortos e com eles conversas/ sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito". Os leitores e seus fantasmas indispensáveis... Jorge Luís Borges falava dos escritores reencarnados nas suas próprias obras. Às vezes... melhor dizendo, quase sempre, sinto-me melhor e mais à vontade na companhia desses mortos: Drummond é um deles. Estão nas prateleiras e me convidam para o bate-papo; de minha parte, a expectativa é enorme. Vários deles me falam mais ao espírito do que o amigo mais dileto. Serei eternamente grato: são a família que escolhi. Tornam minha existência mais suportável.


* ANDRADE, Carlos Drummond de. Elegia 1938. In: _________________. Sentimento do mundo. 13 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001