domingo, 8 de setembro de 2024

Pausa

NO RAIN

All I can say is that my life is pretty plain
I like watching the puddles gather rain
And all I can do
Is just pour some tea for two
And speak my point of view
But it's not sane
It's not sane

I just want someone to say to me
I'll always be there when you wake
You know, I'd like to keep my cheeks dry today
So stay with me and I'll have it made

And I don't understand why I sleep all day
And I start to complain that there's no rain
And all I can do is read a book to stay awake
And it rips my life away, but it's a great escape
Escape
Escape
Escape

All I can say is that my life is pretty plain
You don't like my point of view and I'm insane
It's not sane
It's not sane

I just want someone to say to me
I'll always be there when you wake
You know, I'd like to keep my cheeks dry today
So stay with me and I'll have it made



No Rain foi lançada em 1993. É uma canção de que gosto muito. Sua autoria foi creditada a todos os membros do Blind Melon - Brad Smith, Christopher Thorn, Glenn Graham, Rogers Stevens e (o falecido vocalista) Shannon Hoon -, mas sabe-se que o baixista Smith foi quem a escreveu quase sozinho. É fácil notar que a levada de No Rain - alegrinha e alto-astral - contrasta diretamente com a letra, que relata um estado depressivo (e o compositor Brad Smith confirmou que essa é mesmo a temática). Há, porém, um outro tópico nela: a solidão ("I just want someone to say to me/I'll always be there when you wake"), condição que vem sendo apontada como um dos grandes males atuais e do qual acredito que não conseguirei me livrar. 

Não estou elevando essa letra à categoria de poema, nada disso; cito-a neste momento porque representa bem meu estado de espírito nos últimos oito, nove anos. Minha cabeça (minha vida em geral) está uma imensa pilha de merda. E, olhando ao redor, sinto cada vez mais desesperança no país em que vivo e no mundo em geral. 

É muito difícil atualizar o blog. Preciso dar um tempo de novo. Espero voltar.
 

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A violência e o sexo

"Assim como Sade, ele podia conceber que o amor não existisse e que o sexo viesse do mesmo desejo que leva o homem a matar. Mas, assim como o amor burguês era insustentável a longo prazo (e o fim do sexo no casamento lhe parecia uma prova cabal), também o prazer do assassinato não podia sobreviver aos segundos do gozo. Ele estava entre a cruz e a caldeirinha".

O narrador, em Simpatia pelo demônio, de Bernardo Carvalho

 

 

Somente no último mês de julho consegui assistir a série Killing Eve.

Sempre soube do burburinho em torno da produção britânica, mas, na época (2019, acho), eu não era assinante do streaming que a exibia aqui no Brasil (Globoplay). Quando o programa chegou à Netflix, a coisa ficou mais fácil. 

Estou entre os espectadores que vibraram com as duas sensacionais primeiras temporadas e que depois se decepcionaram com as duas últimas, sobretudo aquele episódio final horrível (terá sido um efeito da pandemia?).

As belíssimas locações, os cenários, os personagens atrativos (pelo menos o foram nas duas primeiras temporadas), os toques de humor desconcertantes e mórbidos, as performances das atrizes principais (particularmente Jodie Comer), entre outros ingredientes, explicam o interesse que a série despertou. Entretanto, gostaria de ressaltar um outro aspecto de Killing Eve

Óbvio que a violência é um componente importante nas histórias ali contadas - afinal, uma das protagonistas é uma psicopata cuja profissão é justamente matar pessoas. O sexo, entretanto, é um outro elemento muito bem explorado, mesmo que quase não haja cenas representando o ato.

A começar por Villanelle, constantemente reclamando de tédio. Ser bem paga, vestir-se esplendorosamente bem, viajar por importantes cidades europeias - além do êxtase que devia experimentar na execução dos assassinatos -, tudo isso mostra-se insuficiente para aplacar seu fastio. Como costuma acontecer com os psicopatas, os outros seres humanos são para ela apenas objetos ou peças às vezes úteis para alcançar certas finalidades (entre estas, a satisfação sexual), exceção para Konstantin e, claro, Eve Polastri, pelos quais demonstra emoções diferentes. É na tensão, inclusive erótica, entre ela e Eve que acontecem alguns dos momentos mais marcantes da série. 

A propensão para o sexo, no princípio, não parece ser um traço acentuado em Eve, mas isso vai mudar, à medida que, por meio de avanços e recuos, as coisas se intensificam na sua busca por Villanelle. Ela também ficará mais violenta: a mulher que atira na cabeça de um dos líderes dos "12" na última temporada difere daquela analista do MI5/MI6 dos primeiros episódios, brilhante mas meio desajeitada, observando fotos e relatórios dentro de um escritório mixuruca. E o espectador concorda com a criminosa quando ela diz a certa altura que Eve só se tornou uma pessoa mais interessante por causa dela, Villanelle.

E o que dizer da personagem Carolyn Martens (ótima atuação de Fiona Shaw), com amantes que ocuparam (e ocupam) cargos na diplomacia e nas agências de inteligência estrangeiras, aos quais ela poderá recorrer - ou usar - se necessário?

Estava marginalmente pensando nisso - não tem muito a ver, eu sei - enquanto lia Simpatia pelo demônio, romance de Bernardo Carvalho publicado em 2016 pela Companhia das Letras.

No mesmo ano de lançamento, o escritor deu uma curta entrevista para o Correio Braziliense. Quando perguntado se era possível dizer que o livro é sobre as relações de domínio, afirmou:

"Toda relação amorosa tem um pouco a questão do poder. Em toda questão sexual e afetiva, querendo ou não, o poder está embutido. Nas relações sexuais, sobretudo nas fantasias sexuais, a coisa do poder está muito presente, da pessoa que se submete e da outra que domina, isso faz parte das perversões, das taras".

Nunca pesquisei a respeito, mas suponho que a associação entre sexo e poder deve ser o tema central de diversos textos, ficcionais ou não, assim como a associação entre sexo e violência (pois o poder muitas vezes se manifesta violentamente).

Em Simpatia pelo demônio, são contadas duas histórias, vividas pelo mesmo personagem (o Rato) : a tentativa do pagamento de um resgate numa zona de guerra em algum lugar do Oriente Médio e um relacionamento amoroso que culmina na derrocada de um dos sujeitos. 

Carvalho é conhecido por conjugar diferentes vozes narrativas em alguns de seus livros. Neste romance, contudo, temos, aparentemente, um único narrador em terceira pessoa. Digo aparentemente  porque há uma certa mudança de registro quando se olha para determinadas partes da narrativa. Na primeira (A agência humanitária) e na última (O resgate), em que a ação predomina, o leitor depara-se com um narrador mais convencional, direto. Nas três partes intermediárias (sobretudo em Perdeu), o tom adotado me pareceu ligeiramente mais zombeteiro (sem ser cômico, porém) e o foco passa a ser o sofrimento e a desilusão do Rato após conhecer e se apaixonar pelo - assim alcunhado - chihuahua. A marca, digamos, cosmopolita do autor permanece, situando os acontecimentos em diferentes lugares do planeta: Berlim, Rio de Janeiro, Nova York, uma região não especificada do Oriente Médio...

No livro, o protagonista acabou seguindo, em seu malogrado caso,  

"o manual do homem de meia-idade que, inconformado com a decadência natural, termina por se adiantar à morte, achando que está renovando um contrato com a vida. Tendo reduzido a vida a uma série de desilusões, só lhe resta um remédio para voltar a viver: nascer de novo, se apaixonar de novo, mas com a intensidade de um inocente - pela primeira vez, o que é impossível"

Acaba ficando a mercê de um parceiro mais jovem (o chihuahua), narcisista e maldoso, acostumado a manipular seus amantes. O Rato trabalhava em uma agência humanitária que atuava em áreas de conflito armado pelo mundo. Escrevera uma tese de doutorado em que se debruçava sobre as causas da violência. Nada disso conseguiu salvá-lo de um relacionamento altamente destrutivo: "O Rato havia se preparado profissionalmente para as guerras, mas era um amador nas questões amorosas [...] A valentia na guerra encobria uma vulnerabilidade íntima e irremediavelmente imatura. Corria menos riscos na guerra do que na vida amorosa".

Em um trecho do livro, o narrador nos diz que, durante uma viagem de cerca de dois anos, algo aconteceu ao personagem central, ainda jovem, que o levou "a buscar a violência e a combatê-la de perto". Não nos é revelado o que aconteceu nesse período. A motivação estava mais ligada a "uma fuga e um desvio do que lhe era insuportável" do que qualquer outra justificativa. Para o Rato, "era mais fácil combater o mal onde ele já se encontrava definido e circunscrito", como nas diversas zonas de guerra espalhadas pelo globo. Mas o que fazer quando o mal nos chega de forma insidiosa, em alguém que (falsamente) não oferece perigo e que (pelo menos na superfície) parece ter afeição por nós?

Ainda que não figure entre os meus favoritos na obra de Bernardo Carvalho, Simpatia pelo demônio está muito longe de ser um livro que se lê apenas para desenfadar-se. Penso em trazê-lo de volta aqui assim que eu der conta de outras leituras proteladas.

BG de Hoje 

O heavy metal (um gênero de que gosto, aliás) costuma ser muito repetitivo, não conseguindo escapar de certos clichês (mas, para ser franco, que vertente não é assim dentro da indústria musical?). De vez em quando, porém, aparecem grupos com um tipo de approach que, se não significa algo totalmente distinto do som habitual, pelo menos traz algum frescor. Foi o caso da banda nova-iorquina HELMET, que lá na década de 1990, explodiu com o disco Meantime, com destaque para a excelente faixa Unsung

quinta-feira, 25 de julho de 2024

"As novas tecnologias alteraram em definitivo a textura da ignorância"


A essa altura, dá pra dizer que o recurso veio para ficar aqui no Besta Quadrada.

Apesar de ser um espaço profuso em citações - afinal, faz parte da proposta do blog -, eu não costumava reproduzir integralmente  os textos de outras pessoas. 

Mas isso mudou nos últimos sete anos, mais ou menos. Agora, toda vez que leio um artigo (não tão longo) publicado num veículo jornalístico, num site, etc. e trata de uma questão da maneira que acho que deveria ser tratada, não hesito muito em replicar em meu espaçozinho na web. É o caso deste excepcional escrito que se segue.

 

SOBRE A IGNORÂNCIA ARTIFICIAL *

                                                                                                                                      Eugênio Bucci

Quando alguém tenta imaginar o que seja a ignorância, a primeira imagem que lhe ocorre é o vazio. De fato, enquanto o saber tem para nós o aspecto de casa cheia e feliz, o não-saber é seu oposto: um lugar macambúzio, desocupado e triste. O conhecimento lembra uma constelação de fagulhas inspiradoras, como um salão de janelas amplas, ensolaradas, cheio de gente bonita indo de um lado para o outro; a estultice é sombra e mutismo, um galpão deserto, escuro, sem ninguém e sem utilidade.

O espírito dos sábios cintila em signos vibrantes, representações abstratas e sensibilidade de muitas claves; a massa cinzenta de quem não sabe nada é só um pedaço de carne amorfa, incapaz de qualquer contemplação. Portanto, é com acerto que temos o costume de dizer que as pessoas cultas têm uma vida interior rica e ativa, ao passo que os boçais têm a cabeça oca. Nada mais justo. Nada mais preciso. Nada mais óbvio.

Ocorre que isso mudou drasticamente. As novas tecnologias alteraram em definitivo a textura da ignorância. Ela não é mais o que sempre foi, não é mais uma cabeça oca, e já não decorre da escassez de informação e de conhecimento. Na era digital, ela decorre do inverso: o excesso de desinformação, de bugigangas do entretenimento, de quinquilharias imaginárias e de fanatismos virtuais.

Hoje, a ignorância não é uma casa inabitada, desprovida de ideias, mas uma edificação repleta de baboseiras desarticuladas, uma gosma de densidade pesada que ocupa todos os espaços. E é pisca-piscante: revestida de milhões de luzes feéricas, mais ou menos como um cassino em Las Vegas, e lotada de gente robotizada perambulando aleatoriamente, como a Praça dos Três Poderes sendo depredada no dia 8 de janeiro de 2023.

O que temos agora não é mais a ignorância da vacuidade, mas outra, a da overdose, a ignorância fabricada por algoritmos gelados e por tentáculos de silício. Estamos falando da ignorância artificial, uma forma densa e totalizante que ocupa e vicia o hospedeiro. Ao contrário do pensamento, que liberta e dá a ver, a ignorância artificial aprisiona e cega. Ela é o insumo de maior valor nas estratégias dos autocratas: entregue de graça para cada indivíduo, custa caro, muito caro, para a sociedade.

Por isso, os ignorantes de hoje não são mais como os de antigamente. Não são como a terra bruta ou a flor inculta, que nunca receberam o toque do jardineiro – foram adestrados pela selvageria e andam carregados até as tampas de preconceitos e de estereótipos, destituídos de imaginação própria. Não são um campo aberto à espera da luz e da letra – são corpos fechados e blindados contra qualquer gota de cultura. A ignorância artificial é a maior epidemia do nosso tempo.

E agora? Existirá cura para tamanha enfermidade? Talvez não. Para entendermos melhor essa resposta, voltemos no tempo. Mais exatamente, recuemos até à Grécia clássica. No  Laques, de Platão, o general Nícias, ao tratar do tema da coragem, comenta a hipótese da criança que, por desconhecer o perigo, age com aparente destemor. Nícias argumenta: nesse caso, a ação aparentemente livre de todo medo não traz nada de audácia, é apenas falta de conhecimento.

Com esse raciocínio, sugere que a bravura verdadeira requer consciência do risco: para ser valente de fato, o sujeito precisa ter instrução e juízo, precisa saber o que faz. Quanto aos idiotas, patriotas ou não, a exemplo das crianças pequenas, jamais estarão à altura da virtude da coragem.

Nícias, a exemplo de seus contemporâneos, vê semelhanças entre a falta de ilustração do adulto e a inocência infantil: ambas resultam da carência de saber, e por isso têm cura. Definidas pela ausência, as duas podem ser superadas pela presença – a presença do logos, da educação e da experiência. Em resumo, para essas duas formas naturais de ignorância, existe remédio.

Para a ignorância artificial, porém, o tratamento não tem a menor eficácia. Com sua substância maciça e, ao mesmo tempo, maleável, a ignorância artificial fecha todas as saídas e barra todas as entradas, de tal maneira que para os fanáticos não há educação ou experiência que dê jeito: nenhuma informação de qualidade os alcança; nenhum conhecimento os afeta.

Os novos ignorantes foram abduzidos por uma argamassa de obscurantismo luminescente que os impede de saber de si, de perguntar ao outro, de duvidar do que veem, de repensar o mundo. Eles não têm senso de humor. A ignorância da era digital os ocupa feito uma forma de trabalho que não os deixa trabalhar. É uma forma de torpor que não os deixa gozar – e um bordão hipnótico que não os deixa conhecer a si mesmos.

Ao menos no horizonte imediato, não há esperança. Nesses dias de tantas proezas tecnológicas e tantas máquinas miraculosas, não é apenas a inteligência que se tornou artificial, não é somente a intimidade que pode ser confeccionada pelos chips, não é apenas o espírito que pode ser replicado em laboratório. A ignorância também. A ignorância, quem diria, até ela, agora também é fabricada pela técnica.

 

* O artigo foi publicado originalmente no jornal  O Estado de São Paulo. Como não sou (nem nunca seria) assinante do periódico, cheguei ao texto através do site  A terra é redonda (link)


BG de Hoje

Eis uma das gravações mais impactantes do LED ZEPPELIN: When The Levee Breaks. Como é comum em se tratando do grupo britânico, a inspiração - *cof* roubo*cof,cof* - veio do blues negro norte-americano, embora, nesse caso, Jimmy Page e companhia pelo menos deram crédito a Memphis Minnie como uma das compositoras da canção. Num excelente artigo - Led Zeppelin and the folkloric integrity of the blues -, o musicista e professor Ethan Heine observa que a canção em si é meio boba, mas, graças ao excelente trabalho de engenharia de estúdio, a faixa sobe de patamar. Destaque para a gaita tocada por Robert Plant e a bateria majestosa de John Bonham, numa de suas mais exuberantes execuções, arrisco dizer. OBS: Quando se fala nessa banda é comum destacarmos Bonham, Plant e Page, mas quase nunca realçamos o quarto integrante, o que é uma injustiça. John Paul Jones é um multi-instrumentista no mesmo nível de talento dos outros, apenas mais low-profile.

 

Creio que vale a pena também conferir essa versão dentro do projeto Playing For Change, da qual John Paul Jones participou.

terça-feira, 16 de julho de 2024

"Gracilianas" (IV) - S. Bernardo


Nos dois últimos meses de 2013, estava disposto a escrever uma sequência de textos curtos sobre livros de Graciliano Ramos, mas - não me lembro por que - acabei cobrindo apenas três títulos: Cartas  (disponível aqui), Infância  (disponível aqui) e Angústia  (disponível aqui e aqui). Como reli S. Bernardo  por esses dias, resolvi acrescentar mais um capítulo à série, mesmo com quase 11 anos de atraso.

. . . . . . .

Por que alguns comentadores, através de S. Bernardo, ligam Graciliano Ramos a Balzac?

Honoré de Balzac poderia ser definido tranquilamente como o romancista do dinheiro, pois, em muitas de suas narrativas, a abundância ou a falta de recursos financeiros são elementos cruciais da trama. No segundo livro do escritor brasileiro, por sua vez, o protagonista (e também narrador) faz de tudo para firmar-se como um homem de posses, cujo símbolo máximo é a fazenda que dá nome ao romance.

Sabemos que Ramos foi um leitor atento do autor francês. Não seria um disparate dizer que o arrivismo de Paulo Honório espelha algumas figuras da Comédia Humana, ainda que temperado com as características do interior alagoano dos anos 1920-30.

Não pretendo, porém, fazer esse exercício comparativo na postagem de hoje. Menciono a aproximação primeiramente para bancar o ilustrado e, em segundo, para confessar minha simpatia por escritores que destacam o peso que o dinheiro tem no mundo.

Para exemplificar, observemos a cena narrada no capítulo XXXII. Acontece após o enterro de Madalena. D. Glória resolve ir embora de S. Bernardo e comunica ao proprietário. Ainda que a decisão demonstre todo o seu brio, sendo ela pobre e idosa, como iria se virar sozinha? Paulo Honório então diz: " - Pense no aluguel das casas na cidade, pense no preço dos remédios. Adoecer é fácil, d. Glória, mas tirar a moléstia do corpo é um trabalhão. Pense no mercado, no cobrador de luz, na pena-d'água. Hoje em dia a vida é difícil em toda parte, mas na cidade a vida é um buraco, d. Glória" ¹.

Ela acaba aceitando a fixação de uma pensão. Dessa maneira, o fazendeiro cumpre a promessa feita à esposa na noite anterior à morte dela. É um sujeito bruto e terrível, mas como negar o acerto de suas palavras a respeito dos custos para se viver na cidade (ou os custos para se viver em qualquer outro lugar)? D. Glória detestava Paulo Honório, o suicídio da sobrinha muito provavelmente só aumentou essa aversão. Entretanto, o pequeno estipêndio não é recusado.

No célebre ensaio Ficção e confissão, Antonio Candido afirma: "Em Paulo Honório, o sentimento de propriedade, mais do que simples instinto de posse, é uma disposição total do espírito, uma atitude geral diante das coisas. Por isso engloba todo o seu modo de ser, colorindo as próprias relações afetivas. Colorindo e deformando".²

A despeito da sensatez demonstrada na conversa com D. Glória, não me parece ser alguma irrupção de bondade que leva Paulo Honório a estatuir a pensão. É certo que se empenhou em procurar e acolher a velha Margarida em sua fazenda e decidiu proteger as filhas de Mendonça, o vizinho que ele mandou matar. Em todos esses casos, porém, o que temos é o pagamento de dívidas : as relações do personagem central com as demais deriva de seu sentimento de propriedade, um sentimento que confere a todos os vínculos um caráter comercial.

Sendo um texto totalmente centrado em seu protagonista-narrador, a psicologia deste é fundamental para a devida compreensão do romance. Segundo Candido, o "ritmo psicológico" de Paulo Honório é caracterizado por dois movimentos:

"[...] um, a violência do protagonista contra homens e coisas; outro, a violência contra ele próprio. Da primeira, resulta São Bernardo-fazenda, que se incorpora ao seu próprio ser, como atributo penosamente elaborado; da segunda, resulta São Bernardo-livro-de-recordações, que assinala a desintegração da sua pujança. De ambos nasce a derrota, o traçado da incapacidade afetiva".

Essa incapacidade afetiva fica escancarada numa das passagens mais sensacionais do livro:

"Já viram como perdemos tempo em padecimentos inúteis? Não era melhor que fôssemos como os bois? Bois com inteligência. Haverá estupidez maior que atormentar-se um vivente por gosto? Será? Não será? Para que isso? Procurar dissabores? Será? Não será?"

Ainda que elemento importantíssimo na vida em geral, o dinheiro, contudo, no caso de Paulo Honório, não foi suficiente para dar-lhe tranquilidade. 

Não é comum, mas um feroz capitalista conhece derrotas às vezes.

_______________

¹ RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. 87 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. Todas as citações do romance nesta postagem foram extraídas dessa edição.

² CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. In: ____________. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. 3 ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006. p. 17-99

BG de Hoje

Estou de férias. Glória aos direitos trabalhistas (e ao regime estatutário também) ! Ah, como eu gostaria que o clima preponderante (pelo menos em alguns dias) desse período fosse o da canção exibida abaixo: Quando a polícia chegar  (AUTORAMAS).

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Os mais difíceis aprendizados

 

 "Conhece-te a ti mesmo".

 

Qual o significado dessa frase? 

No frigir dos ovos, quer dizer o quê?

Dando uma rápida passeada pelo Google, achei a máxima num artigo de empreendedorismo do Sebrae, noutro de uma fundação vinculada ao espiritismo e também no texto de uma consultoria para "educação corporativa", entre outros URLs.  Pelo visto, o  dito também dá o ar da graça em páginas e perfis do Facebook e do LinkedIn como ponto de partida para mensagens motivacionais. Em comum nessas várias aparições está a ideia de que conhecer-se a si mesmo deve ser algo como um exercício de autoanálise com vistas a fazer do sujeito uma pessoa supostamente melhor - a depender do enfoque, uma pessoa mais equilibrada, ou mais produtiva, ou mais preparada para a liderança, etc.

Na cultura pop, a frase fez algum sucesso graças a Matrix, lançado em 1999. O(a) eventual leitor(a) deve se lembrar da cena em que Neo entra num prosaico apartamento para consultar o oráculo e saber se é ou não o Escolhido. É recebido por uma senhora que assava biscoitos. Ela aponta para uma plaqueta na porta da cozinha em que está escrito Temet nosce. Marilena Chaui faz uso dessa cena em Convite à Filosofia (um livro voltado principalmente para o Ensino Médio¹), explicando que ela "é a representação, no futuro, de um acontecimento do passado, ocorrido há 23 séculos, na Grécia",  no qual figurava Sócrates.

Chaui estabelece outras relações entre o protagonista do filme e o personagem mais destacado dos diálogos platônicos para, algumas páginas adiante, apresentar uma definição:

"Alguém que tomasse essa decisão [de colocar em questionamento os outros e a si próprio] estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência. Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a cumprir o que dizia o oráculo de Delfos: 'Conhece-te a ti mesmo'. E estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica" [grifo da autora]

E complementa: "Assim, uma primeira resposta à pergunta 'O que é filosofia?' poderia ser: 'A decisão de não aceitar como naturais, óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido' ".

Temos então um outro sentido: conhecer-se a si mesmo deve ser parte importante de uma disposição que leve o sujeito a desenvolver uma atitude filosófica (ou seja, uma atitude inquiridora) perante à existência, sem aquiescer pura e simplesmente às convenções e praxes vigentes e, quem sabe, capacitando-o a filosofar  futuramente (claro, se isso for de seu interesse).

Essas duas noções - conhecer-se a si mesmo como parte de uma estratégia de autoaprimoramento  e conhecer-se a si mesmo como "ferramenta" essencial para a adoção dessa chamada atitude filosófica - revelam diferenças, embora tenham a mesma fonte (a inscrição no templo de Apolo, em Delfos, posteriormente incorporada ao legado de Sócrates).

A primeira perspectiva, encontrada em textos relacionados ao discurso empreendedorista, nas dicas de como progredir no mundo corporativo ou simplesmente em mensagens "positivas", "good vibes", publicadas em mídias sociais, é resultado, penso eu, de um entendimento curto, não necessariamente errôneo, do aforismo délfico. Vou reproduzir um trecho do artigo encontrado no site do Sebrae para melhor ilustrar o que estou querendo dizer: "A famosa frase de Sócrates se transformou no que hoje chamamos de autoconhecimento, uma habilidade cujas pessoas que conhecem a si mesmas e sabem o que são e o que representam têm [sic]. A partir do autoconhecimento, é possível identificarmos as habilidades e capacidades que possuímos e o que nos motiva, evidenciando, assim, nosso propósito de vida".

Nesse caso, conhece-te a ti mesmo poderia ser traduzido como: liste suas virtudes e defeitos, seus pontos fortes e fracos, faça uma autoavaliação e veja como tudo isso auxilia ou atrapalha sua profissão/ocupação ou suas decisões financeiras (porque, afinal, essa perspectiva casa muito bem com a conformação capitalista).

Por outro prisma, a segunda interpretação vai além do simples autoconhecimento como competência a ser adquirida para determinado fim: nesse caso, conhece-te a ti mesmo poderia ser traduzido como: busque as razões de suas crenças, de suas convicções e de seus sentimentos e torne-as matéria de reflexão.

Há quem defenda - bambambãs do mundo acadêmico, como Paulo Ghiraldelli Jr, por exemplo - que a incorporação daquela mensagem colocada lá no templo de Delfos séculos e séculos atrás tem pouco ou nada a ver com isso, pois deriva de uma visão vulgarizada de Sócrates, não muito condizente com as circunstâncias históricas. Quem sou eu, porém, para imiscuir-me nesse debate, um reles blogueiro que nem sequer conseguiu terminar a graduação.

Além do mais, o tema do "conhece-te a ti mesmo" me ocorreu por causa de uma canção de Gilberto Gil, lançada há cerca de 51 anos, escutada por mim tantas outras vezes ao longo da vida, mas que só me fez parar para pensar mesmo há apenas algumas semanas. 

E é essa canção que desejo realmente discutir na postagem de hoje. 

Começo reproduzindo a letra:

 

PRECISO APRENDER A SÓ SER
                                                                            

Sabe, gente,
É tanta coisa pra gente saber.
O que cantar, como andar, onde ir
O que dizer, o que calar, a quem querer.

Sabe, gente,
É tanta coisa que eu fico sem jeito
Sou eu sozinho e esse nó no peito
Já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder.

Sabe, gente,
Eu sei que, no fundo, o problema é só da gente
E só do coração dizer não, quando a mente
Tenta nos levar pra casa do sofrer.

E quando escutar um samba-canção
Assim como: 
Eu preciso aprender a ser só
Reagir e ouvir o coração responder:
Eu preciso aprender a só ser.

Sabe, gente,
É tanta coisa que eu nem quero saber.

Como escrito acima, as primeiras apresentações da canção para uma plateia ocorreram em 1973, ano seguinte ao retorno do cantor e compositor baiano ao Brasil, após o exílio. Uma dessas performances foi particularmente marcante: um show na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (mais tarde registrado no disco Ao vivo na USP), realizado após o sequestro, tortura e morte de um estudante da instituição pelo DOI-CODI. Houve participação direta do público, dialogando com o artista sobre variados temas. A apresentação é encerrada justamente com a canção da qual estamos falando.

Segundo Vinícius R. Souto e Almir C. Barreto, em artigo publicado em 2021 ², "apesar de elaborada sob a repressão da ditadura militar que assolava o país, a canção de Gil é também marcada pelos valores libertários trazidos pela contracultura". Entre estes, "destacavam-se a liberdade de expressão das escolhas comportamentais individuais e a investigação de preceitos e práticas das filosofias orientais. Esse último é central em  Preciso aprender a só ser".

Mencionado em duas passagens, "o coração - símbolo do sensível, da intuição, do espontâneo - é a solução para as questões provocados pela mente - símbolo da racionalidade, da lógica, da cultura ocidental". Ainda de acordo com os mesmos articulistas:"Esse modo de ser e estar no mundo, que reconhece os pensamentos em sua abundância e fugacidade como algo a ser moderado e balanceado, está identificado com o que, de maneira geral, as filosofias das culturas orientais propagam"  - por exemplo, o taoísmo (ou daoísmo, como queiram).

O ouvinte, imediatamente a partir do título, sabe que a criação de Gil faz uma conexão direta com outra (Preciso aprender a ser só), cujos autores são Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, lançada em 1964, e interpretada por vários artistas (minha versão favorita é com Alaíde Costa). Para além do jogo de palavras (ser só - só ser), ambas pertencem ao gênero que se convencionou chamar de samba-canção e "o centro tonal de Preciso aprender a só ser está em Lá maior, assim como na canção referência", observam Souto e Medeiros. O importante aqui, porém, são as distinções. Embora as duas tematizem a solidão e a angústia, os sentimentos expressos no trabalho dos irmãos Valle advêm da desilusão amorosa, enquanto que, na composição de Gilberto Gil, o primeiro estado (a solidão) é proposto "como local de recolhimento, de liberdade" - nas palavras do próprio autor: 'resgate do prazer dessa solidão, como um grande refúgio, igual a um grande casulo onde você é você' -, e o segundo estado (a angústia), por sua vez, "é de caráter existencial, do indivíduo diante das tantas possibilidades e responsabilidades a respeito de como colocar-se no mundo".

Na conclusão de seu artigo, Souto e Medeiros escrevem:

"Quem esperava que Gilberto Gil exaltasse os ânimos da audiência na USP, abalados pela morte de Alexandre Vannucchi Leme [o estudante sequestrado pelo DOI-CODI], talvez tenha se decepcionado. Cantada como um acalanto, ao final de um show carregado de discussões e reflexões, Preciso aprender a só ser afirmou a necessidade de uma reestruturação pessoal, íntima. A busca proposta era de conciliar os próprios contrários, o oriental e o ocidental de  Oriente, Chiclete com banana - música que se seguiu a  Oriente na apresentação -, o Objeto sim, objeto não, os públicos da música de protesto e os tropicalistas, e [...] o 'ser só' com o 'só ser', a solidão como abrigo. É o contraditório como humano, a pluralidade de opções vista como potência, os opostos como complementares, valores fundamentais de uma democracia subtraída naquele momento [1973]. Nas palavras do próprio Gilberto Gil sobre sua canção, 'é como se ela [Preciso aprender a só ser] colocasse o interlocutor à vontade e fosse feita para humanizar os ambientes' "

Quando se tem em conta o contexto histórico, versos como "O que cantar, como andar, onde ir,/ O que dizer, o que calar, a quem querer" nos fazem pensar num certo patrulhamento com que o artista baiano talvez fosse obrigado a lidar; afinal ele e os tropicalistas não eram vistos, por parte da esquerda da época, como suficientemente engajados na luta contra a ditadura (mesmo Gil tendo sido preso pelos militares e composto, por exemplo,  Cálice, junto com Chico Buarque). 

Analisar a canção contextualmente é bastante enriquecedor, não há dúvida, mas vou me permitir ir um pouco além, mirando-a com os olhos de hoje, sem, contudo, forçar os limites da interpretação. Se concordarmos que  Preciso aprender a só ser  afirma "a necessidade de uma reestruturação pessoal, íntima", tal "conselho" vale em qualquer época.

Há, de fato, "tanta coisa pra gente saber". E há também muita cobrança em torno disso. Junto aos deveres que se espera de um cidadão com um mínimo de escrúpulo no século XXI, existe a avalanche de informação que nos engole todos os dias, chegando até a sufocar. Não sei você, eventual leitor(a), mas inúmeras vezes me pego perguntando: é essa a conduta que devo mesmo seguir em tal ou qual questão? Será que agi suficientemente cônscio nessa ou naquela situação?

Aqui o conhece-te a ti mesmo  e o  preciso aprender a só ser  se encontram. Pouca coisa no mundo é mais difícil do que se investigar - admitir os próprios preconceitos, reconhecer falhas pessoais, dar-se conta das próprias limitações (intelectuais e emocionais) - e do que se aceitar (o advérbio    é pequenininho, tem apenas duas letras, mas assume um significado imenso na letra de Gil). A meu ver, são aprendizados que nunca chegarão a um término.

Diante disso, os dois últimos versos da canção atualmente têm me feito um bem danado:

"Sabe, gente,/ É tanta coisa que eu nem quero saber".

Uma forma de escapismo? Não creio. Acho que é mais a constatação de que, apesar de tanto esforço (e não se pode simplesmente deixar o mundo pra lá, se nos pensamos como indivíduos responsáveis), não conseguiremos compreender o tanto que gostaríamos de compreender.

_______________

¹ Convite à Filosofia (Editora Ática, 14ª edição, 2012) é uma publicação, a meu ver, de introdução à disciplina e, portanto, pode ser lida por qualquer interessado em se iniciar nesse campo do conhecimento, independentemente de ser ou não um estudante secundarista. Aliás, nunca é demais lembrar que, desde a implementação do famigerado Novo Ensino Médio, a Filosofia não tem mais um espaço específico na grade curricular dessa etapa da educação básica, convertendo-se num componente da área Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

² SOUTO, Vinícius Rangel; BARRETO, Almir Cortes. Do 'ser só' ao 'só ser': uma análise da canção Preciso aprender a só ser, de Gilberto Gil, e seus (con)textos. Per Musi : Scholarly Music Journal, n°41, 2021, p.1-21. Disponível em:  <https://doi.org/10.35699/2317-6377.2021.33529>.  Acesso em 09/06/2024

BG de Hoje

Obviamente, Preciso aprender a só ser, de GILBERTO GIL.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Distanciar-se do embrutecimento

 
"A ciência, com muita poesia,
descobriu que somos feitos
com a mesma matéria
das estrelas,
e até nossos pensamentos
brilham, estelarmente.

Por isso convém andar
com delicadeza e cuidado:
nossos gestos e palavras
- já que também 
somos estrelas -
podem mudar o universo.

Universo, de Roseana Murray - Manual da delicadeza: de A a Z

 

 

Está difícil, cada vez mais difícil, o convívio em áreas urbanas.

Além dos riscos e da violência decorrentes das ações criminosas propriamente ditas (assaltos, extorsões, homicídios, estupros, etc.), sempre se pode acrescentar algo à lista de problemas: montes de lixo e entulho largados onde não se deve; o cheiro insuportável de urina nas localidades centrais; poluição sonora nas mais variadas formas; as vias entupidas de carros estacionados ou tentando se locomover; a descortesia como primeira reação diante de qualquer contratempo, mesmo os menores...

Fomos (e continuamos a ser) condicionados a desvalorizar a ideia do viver coletivamente,  levados a evitar a colaboração uns com os outros. Somos, isso sim, instigados a agir isoladamente: pessoas que precisam levar vantagem e se dar bem sobre os outros em tudo. A (mal denominada) lei de Gerson. Farinha pouca, meu pirão primeiro. A exacerbação do individualismo. No limite, o risco de não conseguirmos reverter os efeitos da atomização social.

Para piorar, há aqueles que sentem dentro de si uma irrefreável necessidade de promover intimidação. Entre estes, eu incluo, sem qualquer receio, os criadores/donos/tutores de cães da raça pitbull.

Não é aconselhável generalizar. Evitarei, contudo, a precaução nesse caso. Duvido muito que a ferocidade e a robustez dessa variedade específica de cachorro não são os principais motivos para que seja comprada (pois também não acredito que os muitos exemplares do animal encontrados por aí vieram de adoção). Quem mantém um pitbull quer aterrorizar os outros, simples assim, ainda que alegue ser para vigilância e proteção (não caio nessa). O sujeito passeando na rua com o bicho ao lado parece almejar uma espécie de mutualismo (perdoem-me os biólogos pelo abuso no emprego do termo), tomando emprestado para si - pelo menos imageticamente - o terror que o cão infunde. O recado dado é: "Também sou uma ameaça. Vai encarar?".

Eu não vou. Se, mesmo à distância, avisto o cachorro e seu acompanhante fanfarrão, retrocedo, mudo de rota, entro em alguma loja, tudo para não me aproximar.

Outro dia estava num bar que frequento aqui em Belo Horizonte e me aparece um tipo desses: senta-se à mesa na calçada, cheio de si, trazendo um pitbull marrom imenso, seguro apenas pela coleira ¹. Foi-se embora a pouca satisfação que estava tendo ao tomar minha cerveja e minha dose de cachaça no balcão. Pedi a conta e saí. Vale dizer que o cidadão foi estudante em uma escola onde trabalhei anos atrás e era o típico aluno-problema (não vou aqui me deter na adequação ou não do termo). Agora que é um adulto, não o tenho como exemplo de pessoa cordial.

O(a) eventual leitor(a) certamente ouviu ou leu a respeito de ataques de pitbull que resultaram em gente morta ou com ferimentos graves. Em alguns incidentes, a vítima era o próprio criador/dono/tutor do cachorro. Para ser honesto, não se tem, até onde eu saiba, nenhum estudo que aponte essa raça como sendo inerentemente mais agressiva do que outras. Como escrevi acima, contudo, não procurarei ser precavido na minha arenga. Esses cães são pavorosos.

Existem cerca de 340 a 350 raças reconhecidas pela Federação Cinológica Internacional e uma parte dessas com certeza é de animais grandes e capazes de fazer um potencial delinquente pensar duas vezes antes de arriscar qualquer coisa. Não é frequente, porém, vermos muitos desses outros cachorrões sendo exibidos por aí. A preferência pelo pitbull não tem a ver com a procura por um cão de guarda ou porque se tem uma afeição particular pelo monstrengo. Escolhe-se, como escrevi acima, para se mostrar como alguém que intimida (a má reputação da fera garante isso) e, portanto, alguém que não deve ser contrariado.

Penso que os criadores/donos/tutores desse tipo de cachorro são pessoas embrutecidas. Desconfio que vários desses indivíduos já deviam manifestar uma aptidão para a escrotice desde pequenininhos, mas, ao falar em embrutecimento, quero dizer com isso que houve (e há) escassez de delicadeza na vida desse pessoal.

Aqui vai uma autocrítica. Nunca me vi como uma pessoa especialmente gentil e sensível. Preciso estar sempre vigilante para conter meu primeiro impulso - a rispidez - no trato com outras pessoas no dia a dia. Demoro a identificar refinamentos e perceber o que há de belo em muitos objetos e fenômenos com as quais me deparo. E tenho dificuldade em me enternecer. 

A leitura literária, entretanto, há muito veio em meu socorro e ajudou a atenuar esses traços detestáveis. Falo a verdade: já fui poupado de muitos constrangimentos e embrulhadas nessa vidinha ordinária porque, graças à literatura, consegui atingir certa compreensão - restrita, mas valiosa - do que nos faz ser o que somos, bem como passei a ter um olhar menos obtuso sobre as coisas. A literatura me trouxe delicadeza, posso dizer.

Tenho quase certeza que criadores/donos/tutores de pitbull não tentam se colocar no lugar dos outros. Não ouvem boa música. Não abandonam nem por um segundo sua crença no cada-um-por-si.

Muito provavelmente, claro, também não leem literatura.

Em abril deste ano, a poeta Roseana Murray foi atacada por três cães pitbull numa manhã, quando saiu para fazer atividade física. Bastante ferida, permaneceu 13 dias internada e teve um dos braços amputados. Os animais, provenientes de uma das casas vizinhas, estavam soltos na rua e sem focinheira, descumprindo a legislação do Estado do Rio de Janeiro. Até onde sei, as três pessoas (dois homens e uma mulher) identificadas como responsáveis pelos cachorros estão sendo denunciadas por maus-tratos, não terem guardado com a devida cautela os animais e lesão corporal culposa, mas respondem ao processo em liberdade.

Esse caso é bem ilustrativo do que estou tentando expor hoje. Uma senhora de mais de 70 anos, artista da palavra, sai de casa para se exercitar e - boom! - a brutalidade da vida urbana ² avança sobre ela impiedosamente, devido à negligência e (ouso dizer) a insensibilidade de vizinhos.

Como a grande maioria dos leitores, conheci o trabalho de Roseana Murray através de seus livros voltados para crianças e adolescentes. Classificados poéticos (1984) tornou-se um clássico da literatura infantojuvenil brasileira, mas meu preferido é Casas (1994). Em 2001, a escritora publicou um volume intitulado justamente Manual da delicadeza. Espero que o(a) eventual leitor(a) concorde comigo que ler poemas é uma forma de nos distanciarmos do embrutecimento.

Em 2002, Hebe Coimbra organizou um conjunto de textos de Murray escritos em períodos de tempo diferentes e que tinham como destinatário o público adulto: Poesia essencial (Editora Manati). Dois poemas ali reunidos me deram o que pensar quando estava na preparação desta postagem. Reproduzirei os dois abaixo:

ESCRITA
 
com seus labirintos vazios
o que dói é a vida
o destino desarrumando as esquinas
 
um mistério atravessa 
nossos olhos distraídos
como um barco que invisível
cruzasse as montanhas
 
o que dói é a vida
e sua indecifrável escrita

 

 

ESTILHAÇOS
 
hoje alguma coisa se quebrou
como um cálice atrás do palco
todos os dias alguma coisa se quebra
varrer para debaixo da alma
essa água quebrada
esse silêncio estragado
 

Quem dera que tudo fosse literatura. Mas a realidade, essa escrita que passamos o tempo todo nos esforçando em desvendar, nunca descansa. Não para de despedaçar as coisas, estragar os silêncios. 

Porém, meu texto preferido na coletânea é este:

 
A MESMA FONTE
 
eu quero te contar
a minha vida
espalhar na mesa
os vidrilhos as lãs
com que fiei meus sonhos
e te falarei dos meus infernos
e precipícios
de quantas mortes morri
enquanto me olhava no espelho
eu quero te falar
de longas esperas
em plataformas vazias
te falar de um trem
que nunca chegava
de um navio de areia
escorrendo entre os dedos
eu quero te contar
a minha vida
em suas insignificantes
nuances
sem esconder os fantasmas
nos bolsos internos da alma
eu quero te contar
a minha vida
no que ela tem de náusea
e desejo
amassando as palavras
como se fossem de argila
eu quero te falar
dos ventos que embaralhavam
a casa
das minhas caixas e cofres
das minhas magoadas estrelas
eu quero te falar
da minha vida
como se escrevesse em tua 
pele
e me inscrevesse nela
porque em algum recanto
sombrio
a minha vida tem folhas
que são da tua
e não me pertence apenas
o meu cotidiano
é feito com a mesma
esgarçada renda do teu
e nesse lugar
à beira do imaginário
nos encontramos
e bebemos da mesma fonte

 

É difícil demais encontrar alguém com quem se possa "falar de longas esperas/em plataformas vazias", "de um trem/que nunca chegava", alguém que perceba que nosso cotidiano "é feito com a mesma/esgarçada renda". 

No seu blog (que não é atualizado há anos, é preciso dizer), Roseana Murray anotou numa postagem:

"Logo no princípio do Dr.Fausto, do Thomas Mann, lemos que nem as religiões podem reprimir as forças arcaicas e destruidoras que habitam o homem. Apenas a literatura pode fazer isso. Escrevo sentada num Café e não tenho o livro comigo para fazer a citação exata. Mas é mais ou menos isso. Sabemos que os regimes totalitários sempre queimaram livros. A própria Igreja Católica tinha o seu índice de livros proibidos. Penso que essas forças arcaicas podem sim ser domadas com a literatura, pois é quando nos misturamos com um personagem, assumimos sua vida e suas dores, que aprendemos a compaixão no melhor sentido da palavra e exercitamos a empatia".
 
Talvez seja depositar uma confiança exagerada na arte literária.  

Mas, se a alternativa é o embrutecimento, por que não?

_______________

¹ Aqui em Belo Horizonte, o Decreto Nº 11.215/2002 proíbe a livre circulação dos pitbulls sem o "uso de focinheira e correntes". No nível estadual, a legislação não é tão categórica em relação aos apetrechos exigidos para controlar os pitbulls (e outros cães ferozes) quando saem para a rua. A Lei Nº 16.301/2006 menciona que é "obrigatória a utilização de equipamentos de contenção do animal" (artigo 6º), mas não há detalhamento (basta apenas coleira simples? e quanto à focinheira, não precisa?). Essas regras, contudo, entram para o grupo daquelas incontáveis leis que "não pegam": o artigo 4º  da norma estadual explicitamente proíbe "a adoção, a procriação e a entrada de cães da raça pitbull no Estado", mas esses impedimentos não tem significado quase nada.

² Embora o município de Saquarema (onde reside Roseana Murray) tenha em torno de 90 mil habitantes, não dá para ser considerada uma cidadezinha singela do meio rural, pois não está tão distante assim da capital do Rio de Janeiro.

BG de Hoje

Registros (em áudio ou vídeo) de performances musicais ao vivo raramente me agradam. Entretanto, essa apresentação de TINA TURNER na segunda metade dos anos 1980, interpretando Addicted To Love, de Robert Palmer, é sensacional. Na época, a cantora estava em turnê pela Europa, embora eu não saiba exatamente em que ano e em que cidade ocorreu a gravação abaixo. A interação com o público (e a própria euforia da plateia), a boa disposição dos músicos, os diferentes ângulos da filmagem, o jeito de dançar - meio engraçado, mas bacana - de Turner, a voz poderosa... tudo resulta numa combinação de arrasar!

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Manifestação



Odeio bancos. Eu odeio bancos. 😡🏦. Bancos e banqueiros: eu os odeio. #Burnbankersburn. Eu odeio quem defende bancos: pessoas decentes deveriam execrá-los. Quando penso em bancos, só me lembro de quanto eu os odeio. Gostaria que o inferno existisse só para ver todos os banqueiros penarem nele pela eternidade. Grande parte do sofrimento experimentado pela maioria da humanidade, não tenho dúvida, decorre da ação dos bancos. Direitos humanos básicos muitas vezes não são garantidos em vários lugares no mundo por causa do imenso poder dessas malditas instituições. 

EU ODEIO BANCOS.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

O que podem os fracos?: relendo Lavoura arcaica


 

Transcorridos quase 50 anos desde a primeira publicação, Lavoura arcaica permanece um grande desafio de interpretação dentro da literatura brasileira. Volta e meia tiro-o da estante - até me arrisquei a fazer uma postagem sobre o livro há cerca de 15 anos -, mas nunca estou bem certo por onde vago a cada nova leitura. 

Ao terminar mais uma dias atrás, em meio aos esforços de compreensão da narrativa, houve a "infiltração" de minhas últimas ruminações sobre a atual conjuntura do país e do planeta (Paciência. É bem difícil desconsiderar o que se está vivenciando pessoalmente, ao percorrer uma obra de arte cuja matéria nos obriga a pensar nas vicissitudes da condição humana).

Falarei disso mais adiante. 

. . . . . . .

Em sua abrangente dissertação de mestrado ¹, Hugo Marcelo Fuzeti Abati escreveu:

"Lavoura arcaica vai ficar isolada em relação a outras obras literárias de seu tempo? O trânsito entre a prosa e a poesia, sua natureza híbrida (lirismo, narrativa, fluxo de consciência, romance, dramaturgia) não comportam classificações categóricas ou comparações, nesta escrita original e moderna que agrega virtuosamente recursos da literatura, da poesia, da filosofia e da retórica. No romance, a crítica observou um cruzamento de diversas questões, nenhuma delas constituindo 'o sentido' do texto, mas conjugando um tecido com vários vetores de significação [...]"

De fato, o livro não se assemelha a nada produzido em sua época (e nem nos anos seguintes). Não é propriamente prosa poética, ainda que seja uma narrativa cheia de poesia (o capítulo 16 é talvez o melhor exemplo disso); conferir-lhe um gênero textual - novela? romance? outra coisa? - não é tão simples (este blogueiro segue a classificação usual de romance). E enquanto se debruça sobre temas inegavelmente filosóficos, provoca a erupção de uma linguagem literária ao mesmo tempo arrojada e recuada no tempo.

Ainda segundo Abati, alguns leitores experimentam um " 'mal estar' que poderia advir da ausência de uma pacificação interior do protagonista ('o final feliz'), da dificuldade em conciliar interesses individuais e coletivos, retornar à unidade social e em restaurar a aliança com os indivíduos". Essa história trágica não redime nenhum de seus personagens. 

Em minhas primeiras leituras, a prosa de Raduan Nassar - que não permite "nenhum repouso, sem ceder jamais, sempre em brasa (...) elevando-se numa lamentação infinita de angústia de uma alma esquartejada" ² - impactou-me tremendamente, desviando-me de outros aspectos da narrativa. Tempos depois, o fundo filosófico do romance começou a ser melhor percebido, muito provavelmente porque, na época (entre 2012 e 2015), eu cursava a graduação em Filosofia. 

Hoje, porém, gostaria de seguir por outra senda.

. . . . . . . 

A crítica literária Leyla Perrone-Moisés afirma que Raduan Nassar se distinguiu dos(as) outros(as) ficcionistas de sua geração ao ter optado "por um engajamento político mais amplo do que o recurso aos temas de um momento histórico preciso. Um engajamento no combate aos abusos do poder, uma defesa da liberdade individual, numa forma de linguagem em que a arte não faz concessões à mensagem" (a citação está na dissertação de Hugo M. F. Abati, referenciada abaixo).

Lavoura arcaica veio a público em 1975, quando, sabemos, vigorava a ditadura militar no país. Durante os anos de chumbo, muitos(as) artistas decidiram atacar e denunciar o regime (a esse respeito, talvez o(a) eventual leitor(a) queira ler minha postagem sobre As meninas, de Lygia Fagundes Telles), sendo às vezes mais ou às vezes menos explícitos em seus trabalhos e tendo que lidar com a censura governamental. Creio que seria improcedente procurar no texto referências a esse período, mas, como observou Perrone-Moisés, há um engajamento político na narrativa elaborada por Nassar, ainda que não diretamente relacionado com o contexto histórico brasileiro da década de 1970.

Duas figuras posicionam-se antagonicamente em Lavoura arcaica: André, o filho, e Iohána, o pai. 

Enquanto o pai, chefe inflexível da família, faz sermões à mesa de jantar, pontificando sobre a disciplina, a retidão, a severidade, os valores herdados da tradição, o filho julga pertencer "a essa insólita confraria dos enjeitados, dos proibidos, dos recusados pelo afeto, dos sem-sossego, dos intranquilos, dos inquietos, dos que se contorcem, dos aleijões com cara de assassino que descendem de Caim" ³

Num polo, a ordem. No outro, o desejo de rompimento dessa mesma ordem.

O capítulo 25 é um dos momentos-chave do romance. No retorno do filho para a casa, ele e o pai dialogam. Contudo, não há ajustamento. É como declara André: "Admito que se pense ao contrário, mas ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo pra mim seriam sempre frutos tardios, quando colhidos".

Mesmo não se tratando de um romance alegórico, em Lavoura arcaica, é cabível enxergar o pai como símbolo da lei, da norma, do mando e do controle, enquanto André representa a transgressão e a revolta (embora sem êxito). Suas perspectivas e pensamentos revelam-se inconciliáveis. Hugo M. F. Abati afirma que 

" [...] o ponto de vista paterno é generalizador, excludente e autoritário às mudanças e à individualidade. No topo da pirâmide ou na ponta da mesa, legitima-se verticalmente nos lugares daqueles que os repetem, em conformidade com as leis - o que permite a André pensar na questão das representações num âmbito social maior, no caso, a alienação e a ideologia dominante na boca dos dominados"

Creio que, ao fazer essa afirmação, o estudioso tinha em mente o seguinte trecho do diálogo entre André e Iohána:

" - E fica também mais pobre o pobre que aplaude o rico, menor o pequeno que aplaude o grande, mais baixo o baixo que aplaude o alto, e assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam, acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros, e nem entendo como se vê nobreza no arremedo dos desprovidos; a vítima ruidosa que aprova seu opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que faça essa pantomima atirada por seu cinismo.
- É muito estranho o que estou ouvindo.
- Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há nada mais espúrio do que o mérito, e não fui eu que semeei essa semente. 
- Não vejo como todas essas coisas se relacionam, vejo menos ainda por que te preocupam tanto. Que é que você quer dizer com tudo isso?
- Não quero dizer nada.
- Você está perturbado, meu filho.
- Não, pai, eu não estou perturbado.
- De quem você estava falando?
- De ninguém em particular; eu só estava pensando nos desenganados sem remédio, nos que gritam de ardência, sede e solidão, nos que não são supérfluos nos seus gemidos; era só neles que eu pensava".

Apesar de não ser um irrepreensível sábio - o pai acaba também não sendo, todavia -, o filho extrapola, em sua fala, a visão de sua situação particular, incluindo nela o pobre, o desprovido. Num primeiro momento, pode parecer algo desconexo e confuso, mas, como diz o personagem, "se há farelo nisso tudo, posso assegurar, pai, que tem também aí muito grão inteiro". Para meu propósito hoje, é importante notar que, mesmo sabendo da dificuldade (talvez, da impossibilidade) que é escapar do jugo, André sugere que ao menos "o prisioneiro não sirva de boa vontade na casa do carcereiro"

Nos últimos anos, cada vez que me deparo com os dados estarrecedores sobre concentração de renda e desigualdade social no Brasil e no mundo, fico me perguntando por que a insurreição e a fúria que tal estado de coisas, a meu ver, deveria provocar não se espalham pelas ruas com a frequência e a intensidade exigidas pelo atual cenário. Pelo contrário: os explorados são dóceis; veem-se encenações de felicidade da parte dos subjugados; e, pior, pobre aplaudindo rico, pequeno aplaudindo grande, baixo aplaudindo alto

Não sinto no ar qualquer vento revolucionário. As últimas três, quatro décadas, poderão ser chamadas no futuro de "a Era do Conformismo" (os últimos 10 anos, para mal dos meus pecados, serão talvez o período do "conformismo feliz"). Os poderosos nem precisam se dar ao trabalho de empregar todo o seu poder (mas sem dúvida o farão, se necessário): grande parte dos fracos não faz mais do que aprovar e exaltar os fortes.

Isso me adoece. Se predomina a triste avaliação de que não se pode alterar o estado do mundo, os fracos deveriam pelo menos nutrir e externar imensa repulsa pelos fortes.

________________

¹ ABATI, Hugo M. F. Da Lavoura arcaica: Fortuna crítica, análise e interpretação da obra de Raduan Nassar. 1999. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1999. Disponível em:<https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/24282> Acesso em: 01/05/2024. Gostaria de ter conhecido este estudo há mais tempo. Fornece um ótimo panorama do romance e das interpretações que suscitou.

² Juízo de Celia Minart, citado na dissertação de Hugo M. F. Abati

³ NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Todas as citações do romance citadas nesta postagem foram extraídas dessa edição.


BG de Hoje

Esta canção tem um negócio arrebatador e meio apoteótico que não sei definir, mas que eu adoro: Delilah, do FLORENCE + THE MACHINE

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Falou e disse...

"Alguém já disse que a única coisa que cresce indefinidamente é o câncer. E os urbanistas, aqueles que amam as cidades, que gostam de lamber os muros da cidade, devem ficar horrorizados quando digo que as cidades estão crescendo como um tumor no corpo da Terra. Como vamos curar a Terra com essa praga das cidades expandindo-se de maneira inconsequente e indiferente ao fato de estarem plasmando o corpo da Terra dessa matéria manipulada por nós, o asfalto, as lajes, o piso e todas essas coisas que querem nos isolar do corpo da Terra, como se estivéssemos produzindo um nojo da Terra, isolados da terra? Talvez seja por isso que alguns idiotas estão querendo arrumar um foguete e ir para Marte, estabelecer-se em Marte, porque o nojo da Terra já se desenvolveu a ponto de essas pessoas não suportarem mais a atmosfera terrestre e quererem viver em outro planeta. Vi uma planta de uma espécie de assentamento em Marte, uma coisa totalmente futurista , 'super-hiper', sugerida como um equipamento capaz de se autorregular com o clima. Obviamente caberão meia dúzia de pessoas, enquanto o resto morrerá em algum lugar por aqui onde a vida não vale nada, e que se dane o planeta Terra". *

 

* KRENAK, Ailton. Saiam desse pesadelo de concreto! In: Habitar o Antropoceno/ organizado por Gabriela Moulin, Renata Marquez, Roberto Andrés e Wellington Cançado. Belo Horizonte: BDMG Cultural/Cosmópolis, 2022. p. 216-217

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Sobre O enterrado vivo, de Drummond

 

 

Vale a pena nos questionarmos o quanto nos aferramos a consagrar o que já é consagrado.

No campo da Literatura (e das artes em geral), tal questionamento me parece ainda mais fundamental.

O que estou tentando dizer é: reafirmar a maestria de um Guimarães Rosa ou a genialidade de uma Clarice Lispector, por exemplo, é chover no molhado. Existe uma consideração pública assentada sobre certos autores, mesmo entre a parcela de pessoas que passa longe da leitura literária.

Não me entenda mal. É sempre possível acrescentar algo à fortuna crítica de qualquer escritor/escritora e, muitas vezes, pode-se ter um entendimento mais rico de determinada obra célebre por meio de uma nova interpretação. Não é disso que estou falando.

Só não suporto a reverência oca. 
 
O que seria isso? O relato a seguir talvez ajude a explicar.
 
Para mim, é inimaginável viver sem música, embora não seja um instrumentista, muito menos saiba cantar, nem entenda nada de teoria ou composição musical. Apesar dessa paixão, tenho um posicionamento sacrílego: uma invencível má vontade com a bossa nova e, principalmente, com João Gilberto. Acho tão aporrinhante... (eu sei, eu sei, lancem-me às feras). Estou ciente, é óbvio, do respeito que cerca esse artista, bem como do tamanho de sua influência, mas não vou sair por aí soltando frases vazias tipo "o grande João Gilberto" ou "como João Gilberto era bom". Creio que sua consagração é justificada e sei que perderia meu tempo contestando sua importância como violonista e cantor; não vou, porém, fingir admiração só por ter sido um artista apreciado por muitos - fazer isso seria, da minha parte, uma reverência oca.

Voltando ao ponto anterior. Muita gente, para fazer menção a certas personalidades das letras, parece se sentir obrigada a cercar os(as) autores(as) de palavras venerandas. Isso se dá não por causa de uma estima sincera, resultante do contato (muitas vezes prolongado) com a produção textual desses(as) mesmos(as) autores(as), mas apenas como resultado da reverência oca, dado o peso cultural dessas personalidades.
 
Mal algum em louvar artistas consagrados (este blogueiro mesmo fez isso em diversas ocasiões e, desavergonhadamente, o fará mais uma vez na postagem de hoje). Penso, contudo - especialmente quando se trata de entendidos na matéria (acadêmicos, críticos, jornalistas ou opinadores com alguma visibilidade nos meios de comunicação) -, que deve-se evitar cair na arapuca de só enaltecer aquilo que já foi ou vem sendo suficientemente enaltecido, deixando de lado outros(as) escritores(as) cujos trabalhos também seriam merecedores de uma projeção maior (já escrevi sobre essa minha preocupação numa postagem em outubro de 2011).

Tá certo, admito ter acabado de propor algo que eu mesmo não costumo fazer por aqui (em minha defesa, posso dizer que sou um joão-ninguém, não é minha responsabilidade)...

Apontamentos feitos, falaremos de um poema - O enterrado vivo - cujo autor (ora, ora!) é um desses monstros sagrados da literatura brasileira: Carlos Drummond de Andrade.

O poema vem ocupando meu pensamento de uns tempos pra cá graças ao emprego de seu último verso como uma das epígrafes do livro O verão tardio, de Luiz Ruffato, discutido no blog na penúltima postagem do ano passado. Bastou ler aquele verso para me lembrar de toda a composição, um texto que, durante anos, repeti para mim mesmo como um "antiacalanto". Vou reproduzi-lo abaixo:

 

O ENTERRADO VIVO

É sempre no passado aquele orgasmo.
É sempre no presente aquele duplo.
É sempre no futuro aquele pânico.
 
É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra. 

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

 

(Utilizei a 41ª edição da Antologia poética de Drummond, publicada pela Editora Record em 1998, mas O enterrado vivo faz parte originalmente no livro Fazendeiro do ar, de 1954)

E qual é minha intenção ao discutir esse poema? Nada de mais. Por se tratar de um de meus prediletos, apenas desejo fazer com que você, eventual leitor(a), valorize-o também.

Realço dois elementos da composição: o ritmo e a seleção lexical.

Não há rimas soantes, praticamente. A métrica dos versos (com linhas de dez sílabas poéticas), o uso anafórico de "É sempre" (ou apenas "sempre") e a organização em tercetos sustentam o ritmo; os dois últimos recursos, aliás, foram simples e eficientíssimos. Quando lido em voz alta - e nunca é demais repetir, ler poemas em voz alta é fundamental para a percepção não só do ritmo e da musicalidade, mas, igualmente, do vigor e enlevo que as palavras podem provocar -, a cadência gera sentido tanto quanto aquilo que é expresso verbalmente: a desolação d'O enterrado vivo emana também de sua sonoridade. (NOTA 1: Vale mencionar que, junto a esse poema, no volume em que foi publicado pela primeira vez, está presente No exemplar de um velho livro, outro texto todo em tercetos. Há também sonetos - O quarto em desordem e A distribuição do tempo - , levando-me a supor que Drummond estava particularmente inclinado para as formas fixas e os escritos "mais arrumadinhos" naquele período)

As palavras selecionadas, quase todas de uso corrente no nosso vocabulário, ganham nova dimensão graças às combinações feitas pelo poeta. E mesmo as mais raras, "distrato" e "estampilha", não estão fora de lugar. É na segunda estrofe que a sonoridade e o ajustamento de palavras atingem seu ponto alto: "É sempre no meu peito aquela garra./É sempre no meu tédio aquele aceno./É sempre no meu sono aquela guerra". 

É um texto poético magnífico. Chega a me exasperar, de tão bom. 

Nesse momento, porém, acho oportuno mencionar um trecho de (raríssima) entrevista da poeta Maria do Carmo Ferreira, registrada em 2004 ¹ .

"Dois fatos me marcaram nessa época [anos 1960]: meu professor de Literatura Espanhola, José Carlos Lisboa, apesar de muito rigoroso e exigente, veio me cumprimentar pelo poema saído na revista Mural. Ruborizei de vergonha e até pedi desculpa, não sabendo onde esconder minha cara. E veio a primeira lição: 'Carminha, não há poetas perfeitos, quando muito há um ou outro poema perfeito'. Sempre penso nisso quando leio (ou releio) os meus poetas prediletos, onde encontro de tudo: verborragia, poemas circunstanciais, quando não excesso de rimas/ritmos/decalques, enfim, a gente está sempre separando o joio do trigo, mesmo nos que ficaram para sempre, nos clássicos da língua".

(NOTA 2: Caso o(a) eventual leitor(a) nunca tenha ouvido falar em Maria do Carmo Ferreira, sugiro essa reportagem de 2021 da revista piauí, relatando, entre outras coisas, as primeiras publicações da obra da escritora em livro, sendo ela já octogenária)

"Não há poetas perfeitos, quando muito há um ou outro poema perfeito". Isso vale também para Carlos Drummond de Andrade, que elaborou várias composições extraordinárias, mas não o tempo todo. 

Por isso valorizo ainda mais O enterrado vivo, uma dessas criações notáveis. É perfeito, digo sem hesitação.

Um poema que me atinge fortemente, sendo eu alguém habitualmente interessado nos modos de se tentar expressar a amargura existencial. 

"Sempre dentro de mim meu inimigo"... como isso é cortante...

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¹ MARQUES, Fabrício. Dez conversas -  diálogos com poetas contemporâneos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2004.

BG de Hoje

Já discuti a questão poema/letra de música em algumas postagens do blog (por exemplo, aqui). Uma letra de música, antes de qualquer outra coisa, deve contribuir "para que a obra lítero-musical de que faz parte seja boa", como defende Antonio Cicero. Diferentemente do poema, que tem um fim em si mesmo e "se realiza quando é lido", a letra de música existe para acompanhar uma canção. Não é muito frequente, a meu ver, que uma letra de música mantenha sua vivacidade ao ser lida como um poema. Nada de mal nisso. Como dito antes, se ela contribui para uma boa canção, isso é o que importa. Quase nada, parceria da poeta ALICE RUIZZECA BALEIRO seria uma espécie de "melhor dos dois mundos". Um lindo poema e uma amostra de como uma boa letra de canção popular deveria ser.