[Postagem atualizada em 03/12/2022]
No dia oito de outubro de 2018, publicou-se uma das peças mais infames dos últimos anos dentro do jornalismo corporativo brasileiro. Falo do editorial intitulado Uma escolha muito difícil, no qual o Estadão tratava das duas candidaturas que disputavam o segundo turno da eleição presidencial naquele ano: Fernando Haddad (pelo PT, Partido dos Trabalhadores) e Jair Bolsonaro (então no extinto PSL, Partido Social Liberal). O texto em questão alegava que o "esquerdista", "o preposto de um presidiário" não se diferenciava do "truculento apologista da ditadura militar".
O antipetismo tosco do centenário jornal dos Mesquita não seria motivo de espanto. A torpeza do editorial, contudo, decorre da leviandade de um veículo de imprensa com a notabilidade que (ainda) tem O Estado de S. Paulo em equiparar o que, naquele momento histórico, não poderia ser equiparado. Aquele editorial escancarou a pequenez dos conglomerados de mídia brasileiros e foi a cereja do bolo no discurso da "polarização" e dos "dois lados da mesma moeda".
Antes de prosseguir, preciso deixar claras certas coisas.
Como está expresso no esboço biográfico apresentado neste blog, identifico-me com o ideário político da esquerda. É desta perspectiva, portanto, que observo e critico o quadro atual. A partir de 2006, minha preferência partidária passou a ser o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), mas, desde quando me tornei eleitor (1989), nunca tive qualquer relutância para votar em candidatos do partido do ex-presidente Lula (e no próprio) quando julguei necessário. Isso não significa que seja cego e assuma uma postura de negação em relação às malversações, atos ilícitos e outros erros cometidos por membros do PT ou por pessoas ligadas a este (voltarei ao assunto mais adiante). Sinceramente, gostaria que nas duas últimas décadas tivessem surgido grandes lideranças nacionais identificadas com os mais pobres para que houvesse alternativas a Lula. Como isso não aconteceu, o ex-presidente permanece sendo o nome mais viável eleitoralmente no campo progressista e popular.
Pois bem. Quando se diz, de forma quase automática, que a sociedade brasileira "polarizou-se", que a eleição está "polarizada", o tom adotado é um misto de consternação e lamúria. Dissequemos isso.
A metáfora dos polos é mesmo a mais adequada para descrever o que está acontecendo? Há de fato uma disputa de extremos?
Quando a vitória de Bolsonaro em 2018 tornou-se factível, pouquíssimos articulistas dos conglomerados de mídia brasileiros tiveram coragem de usar o termo extrema direita para descrever o que aquela candidatura representava. O cabeça da chapa já havia defendido guerra civil e armamento da população em geral; celebrava a ditadura de 1964; homenageava milicianos e exaltou um notório torturador; esgoelou, dentro da Câmara dos Deputados, que não estupraria uma parlamentar porque ela não "merecia" (por ser "feia", segundo o sujeito). Muitos de seus correligionários e seguidores assinavam embaixo de demonstrações como essas, exaltavam as mesmíssimas coisas. E isso tudo foi normalizado! (Hoje, felizmente, até comentaristas da ensaboada GloboNews perderam o receio de empregar a expressão extrema direita em referência a essa turma).
Cabe perguntar de forma honesta: Lula e o PT - hoje, os adversários mais em evidência do bolsonarismo - representam a extrema esquerda? Por acaso defendem ações violentas e se pronunciam publicamente de forma tão incivilizada quanto o ex-capitão e sua turma? Ou, pensando no eterno pavor da perda de privilégios dos endinheirados do país, propõem uma ruptura profunda dentro da ordem socioeconômica vigente?
A resposta honesta tem que ser não.
Desde aquela Carta ao povo brasileiro divulgada em 2002 (cujo objetivo era acalmar a burguesia), o Partido dos Trabalhadores foi cada vez mais se encaminhando para o centro. Antes (e depois) de chegar ao Palácio do Planalto, o PT governou estados (Rio Grande do Sul, Acre, Bahia, Minas Gerais, Sergipe, Rio Grande do Norte); esteve à frente de prefeituras de capitais (Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo, Aracaju); elegeu grande número de parlamentares. Diga-me com sinceridade: cadê o extremismo desse partido que já foi há tanto tempo assimilado pelo establishment? O PT de 2022 guarda pouquíssimas semelhanças com o PT de 1980 (para minha tristeza, aliás). É preciso ser franco: Lula tornou-se um pragmático conciliador (vide Geraldo Alckmin como seu vice; não me surpreenderia se o ex-metalúrgico se aproximasse de pessoas que atuaram no golpe contra Dilma Rousseff) e sua agremiação nada tem de radical (quando esteve à frente do governo federal, foi um doce com os detentores da grana grossa). Existem, de fato, lados facilmente discerníveis na atual disputa político-eleitoral brasileira. O termo "polarização", porém, no contexto dessa disputa específica, me parece desacertado. Vivendo num país tão desigual como o Brasil, é natural que haja profundas divergências entre os atores políticos. Desejar que as democracias (ainda mais no feroz capitalismo atual) sejam um terreno harmônico que deve evitar os conflitos não é nada realista. Há diversos interesses e grupos em disputa dentro da sociedade. Daí a existência de partidos. E é de se esperar que essas partes, dentro do debate público e do jogo eleitoral, tentem apregoar que são melhores (ou, pelo menos, mais aceitáveis) do que as outras.
O que o extremismo representado por Bolsonaro faz (embora o fenômeno tenha surgido antes de 2018) é sugerir e até incentivar a destruição do adversário, exterminando a divergência, algo inadmissível em qualquer democracia razoavelmente sadia.
As queixas em torno da "polarização" me enervam em particular porque muitas vezes estão baseadas na falácia do argumentum ad temperantiam. É enervante também porque o que se convencionou chamar de centro ou de moderado no Brasil costuma ser apenas uma direita não tão rude e intolerante (e repare, eventual leitor(a), que a grande mídia nacional nunca elenca o PT - um partido já há muito assimilado pelo establishment do país, escrevi acima - como uma organização de centro-esquerda).
Para encerrar esse ponto, em boa parte das democracias mundo afora, as eleições para o executivo acabam se resumindo a uma escolha entre apenas duas candidaturas competitivas. Foi assim inclusive no Brasil, em passado bem recente. Reitero: o termo polarização, como forma de descrever o cenário eleitoral do momento no país, não é muito acertado (sobretudo por servir como meio de evitar reconhecer o quanto há de inerentemente antagônico nas sociedades capitalistas).
Entre as duas candidaturas que têm condições reais de vencer a disputa, uma coloca em risco a imatura e já tão combalida democracia brasileira. A outra, não. Uma candidatura representa o atual governo, que fez o Brasil voltar ao mapa da fome. A outra indica ter maior entendimento do papel do poder público para mitigar os efeitos da desigualdade social.
Lá no segundo turno de 2018, não se tratava de uma escolha difícil. E agora, em 2022, também não. A caquistocracia de Bolsonaro (para usar o termo empregado pelo jornalista José Roberto de Toledo no ótimo podcast Foro de Teresina) não pode continuar. Lula é aquele que mais tem chance de nos livrar dela.
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Quais critérios sigo para escolher candidatos(as) nas eleições para o legislativo e o executivo?
Obviamente, em primeiro lugar, há o alinhamento ideológico: sempre voto na esquerda ou na centro-esquerda.
A seguir, tento priorizar a escolha de pessoas pertencentes a segmentos com baixa representação na política profissional-institucional. Quando se olha para o Congresso Nacional, por exemplo, vemos que é composto majoritariamente por homens, brancos, que estão ali para representar interesses de grandes empresários, banqueiros ou grandes ruralistas, além de membros de organizações religiosas (principalmente neopentecostais). Minhas escolhas, portanto, priorizarão mulheres, negros ou indígenas, indivíduos não vinculados à elite econômica e que tenham compromisso com a laicidade do Estado.
Para senadora e governadora, votarei em Sara Azevedo e Lorene Figueiredo, respectivamente. Ambas do PSOL, ambas defensoras do ensino público. Pelo que tudo indica, no entanto, lamentavelmente aqui em Minas, os eleitos para esses cargos serão dois caudatários do bolsonarismo.
Para presidente - como deve estar claro -, voto em Lula.
Quando uma tal opção é declarada, imediatamente segue-se a cantilena: "E a corrupção comandada pelo partido dele? Ele roubou, foi até parar na cadeia!"
Acreditar que a política profissional ficará livre da corrupção desde que se escolham as pessoas moralmente certas é meio ingênuo. Ora, seja na Suécia, em Gana, no México ou na Nova Zelândia, aproveitadores sempre vão conseguir ocupar cargos públicos. Governos e parlamentos lidam com vultosos recursos financeiros e têm imenso poder de interferência - como poderiam deixar de atrair picaretas de diferentes origens? Mesmo que se escolham as pessoas moralmente certas (caso isso seja possível), a corrupção não vai ser expurgada de uma vez por todas. Não é algo que possa ser evitado com moralismo barato apenas. Algumas nações conseguem resolver casos de corrupção melhor do que outras porque, geralmente, têm instrumentos de fiscalização, investigação e controle mais eficazes. Mas isso não significa que subornos, desvios e fraudes nunca mais acontecerão. Houve corrupção em governos do PT? Certamente. Assim como houve em outros governos, com outros partidos à frente, antes e depois. O ponto é que se tornou conveniente, dentro do embate político (inclusive para além da disputa eleitoral), transformar Lula e seu partido num bode expiatório (quantas e quantas vezes já não ouvi e li na mídia que o Mensalão ou o Petrolão foram os maiores esquemas de corrupção da história do Brasil...). Quanto à prisão do ex-presidente, creio que a essa altura qualquer pessoa de bom senso concordará sobre o caráter farsesco de todo o processo acusatório e de condenação. Quero deixar claro que a probidade de ocupantes de cargos públicos não é algo desimportante e é necessário enfrentar a corrupção. No entanto, há muito mais coisas a serem consideradas dentro do pesado jogo da política concreta do que apenas moralismos de conveniência.
Agora que essa questão foi tirada do caminho, retomemos o fluxo da postagem.
O petista é favorito. Há possibilidade (pequena) de que consiga vencer já no dia dois de outubro. Caso esse favoritismo se confirme, no primeiro ou no segundo turno, Lula, é óbvio, dificilmente terá vida fácil, ainda que consiga controlar a inflação, evitar mais perdas nos salários dos trabalhadores ou não depender do Centrão (algo praticamente impossível). Após o desastre da caquistocracia de extrema direita, o (possível) governo Lula-Alckmin, receio eu, seria de conserto e acomodação (e, portanto, sem ímpeto para mudanças mais progressistas e ousadas).
Há ainda um último ponto a ser destacado. O mandato de Bolsonaro tem servido para tornar mais evidentes alguns dos inúmeros impasses brasileiros, alguns deles entranhados na história do país. Um (possível) novo governo Lula não dará conta de resolvê-los. Para ser franco, não sei se um dia serão sanados.
Áreas do espaço urbano dominadas pela criminalidade; deterioração da qualidade dos empregos, com alto índice de informalidade; falta de investimento adequado em ciência e tecnologia (a esse respeito, recomendo a leitura do artigo Basta de tentativas de 'ciencídio', assinado por três pro-reitores da USP). Poderia continuar arrolando vários outros problemas, mas vou usar como exemplo agora apenas a questão agrária.
Creio não ser falso dizer que a concentração de terra no Brasil é perversa desde o período colonial. Até hoje figurões da monocultura ou da criação de gado infringem leis a torto e a direito e dificilmente são punidos. É assustador ver como o agronegócio de escala industrial - e seu uso indiscriminado de agrotóxicos, seu papel no desmatamento e na violência contra camponeses, indígenas e ambientalistas - seja caracterizado com o fofinho adjetivo pop pelo maior grupo de mídia do país (o mesmo grupo que, junto como outros veículos da grande imprensa, trata o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra quase como uma organização criminosa). O baronato do agronegócio adora se exibir como o grande esteio da nação (recomendo muito a leitura de excelente matéria da revista piauí derrubando vários mitos envolvendo o agronegócio) ou como o setor que alimenta o Brasil, mas cerca de 70% da comida que consumimos vêm da agricultura familiar.
Um (possível) governo Lula, infelizmente, não conseguirá enfrentar o poderio dos latifundiários (para ser franco, nem sei se terá vontade política suficiente para fazê-lo).
Mas a eleição de Lula pode, quem sabe, abrir oportunidade para que mais à frente outra conjuntura se forme e, preservada a continuidade democrática, seja possível no futuro diminuir a ação de oligarcas deste e de outros setores do Brasil.
Não é muito, mas é o que se tem por agora.
[Atualização em 26/09/2022]: Escrevi o texto acima não levando em conta a disposição golpista e autoritária de vários integrantes das Forças Armadas e das polícias espalhadas pelo país. Os eleitores brasileiros não têm garantia alguma de que esses indivíduos não vão conduzir uma insurreição armada, secundados por milhares de civis que têm seus próprios arsenais (graças às aquisições facilitadas nos últimos três anos), caso a derrota eleitoral do atual presidente - a quem apoiam - se confirme. O risco de uma insurgência urdida por fardados ou por particulares com tesão em fuzis e pistolas não é desdenhável.
[Atualização em 03/10/2022]: Passado o primeiro turno, ficou evidente que os institutos de pesquisa eleitoral erraram bisonhamente em seus levantamentos, abalando a credibilidade dessas empresas. O bolsonarismo e a direita neofacista brasileira mostraram uma força assustadora. O Senado em 2023 terá a volta de um fundamentalista evangélico e a estreia de outra, da mesma estirpe (ou até mais fanática), além do astronauta de meia tigela e do ex-juiz parcial que foi um dos responsáveis diretos pela barafunda político-institucional em que nos encontramos hoje. Na Câmara Federal, o parlamentar mais votado (para minha vergonha, aqui de Minas) é um garoto mimado cuja única expertise é "mitar" nas mídias sociais; o segundo deputado mais votado no Rio de Janeiro é o cara que esteve à frente do Ministério da Saúde durante o período em que a pasta foi ainda mais incompetente no combate à pandemia da COVID-19... Não me serve de alento saber que Andréia de Jesus foi reeleita para a Assembleia Legislativa daqui e que o PSOL mineiro conseguiu levar uma mulher indígena para o Congresso (Célia Xakriabá): o saldo desta eleição, infelizmente, é o pior possível, sobretudo porque as chances de Bolsonaro continuar na Presidência da República agora são enormes.
BG de Hoje
Às vezes fico perplexo com certas argumentações defendendo o "caminho do meio" ou a importância de manter a "neutralidade". Em muitos casos, essas argumentações são burras, covardes ou inescrupulosas. Há questões éticas que não se pode ignorar e deve-se escolher um lado. Estou longe de ser um indivíduo virtuoso: por exemplo, como carne (e acho que será assim até a minha morte), mesmo consciente da crueldade inerente à criação de animais para abate, e não sou tão humanista e tolerante quanto tento me mostrar. Ainda assim, tenho orgulho de defender determinadas pautas. Essas reflexões vêm a mim sempre que ouço a bela letra de CARLOS RENNÓ na composição Manifestação (música de Xuxa Levy, Russo Passapusso e Rincon Sapiência).
Rennó também escreveu a letra do "Hino" ao Inominável (música de Chico Brown e Pedro Luís), "homenageando" o atual ocupante da Presidência da República (que, espero, esteja fora do poder em 2023).