domingo, 28 de agosto de 2022

Absortos na vida


Momento num café, de Manuel Bandeira, é um de meus poemas prediletos. Foi reproduzido aqui no blog anteriormente, há quase dez anos.

É uma composição descritiva. 

Na pequena cena, alguns fregueses de um café tiram seus chapéus (o texto foi publicado na década de 1930, quando o chapéu era um acessório quase obrigatório) como sinal de respeito a um cortejo fúnebre que passa. Um dos homens, entretanto, não o faz "maquinalmente", escreve Bandeira, mas sim por meio de um "gesto largo e demorado/olhando o esquife longamente", porque ele sabia que "a vida é uma agitação feroz e sem finalidade/que a vida é traição/e saudava a matéria que passava/liberta para sempre da alma extinta".

Se o(a) eventual leitor(a) já leu outras postagens deste Besta Quadrada certamente notou que é exatamente assim que vejo a vida - uma agitação feroz e sem finalidade. Entretanto, é dos outros fregueses do café que gostaria de falar hoje.

Por que tiraram o chapéu maquinalmente, ou seja, de forma desatenta, apenas seguindo as convenções e a etiqueta social da época? 

Porque "estavam todos voltados para a vida/absortos na vida/confiantes na vida".

Os absortos na vida são numerosos. Creio que são a maioria dos seres humanos. 

Acredito que diversas passagens de A náusea referem-se justamente a indivíduos assim. Explicarei.

Primeiro romance de Jean-Paul Sartre, publicado originalmente em 1938, A náusea (livro que tenho lido desde o final da adolescência e sobre o qual já falei em postagem de set/2014) lança mão de um velho estratagema literário: o do relato encontrado "em meio a outros registros" e transformado em publicação por certos "editores". No caso, o diário de um historiador e pesquisador chamado Antoine Roquentin, escrito quando este esmiuçava a vida de um nobre menos aquilatado, envolvido com atos de espionagem, morto na segunda década do século XIX.

Boa parte do que está no diário é resultado de observações feitas por Roquentin quando se encontrava dentro de cafés na cidade fictícia de Boeville (inspirada provavelmente numa cidade francesa real, Le Havre). É um homem solitário. "Nunca falo com ninguém; não recebo nada, não dou nada", anota ele ¹.  O que procura em estabelecimentos justamente desse tipo?

Tentar se proteger.

"As coisas não vão bem!" - registra Roquentin em certo dia - "Não vão bem de modo algum: estou com ela, com a sujeira, com a Náusea. E dessa vez é diferente: me veio num café. Até agora os cafés eram meu único refúgio, porque estão cheios de gente e são bem iluminados: já não haverá nem isso; quando me sentir encurralado em meu quarto, já não saberei aonde ir".

Porém, estar entre outras pessoas não significa necessariamente ligar-se a essas mesmas pessoas: "Estou só em meio a essas vozes alegres e sensatas. Todos esses sujeitos passam o tempo se explicando, reconhecendo com satisfação que têm as mesmas opiniões. Deus meu, que importância dão a pensar todos juntos as mesmas coisas!"

É duro (e nauseante) dar-se conta do quanto há de contingente e arbitrário na existência, divisando todas as implicações dessa constatação. Para livrar-se do peso, para não ter que encarar continuamente o insuportável absurdo, entra-se em tavernas, bares ou cafés - "bem perto das pessoas", mas "na superfície da solidão" -, pois a aparência de algo que faça sentido ou tenha propósito no existir depende da proximidade dos outros.

Note-se, entretanto, que bem poucos sentem essa náusea (ou, pelo menos, bem poucos falam a respeito dela, exteriorizam-na). A maioria dos indivíduos é de absortos na vida, com os quais Roquentin (e, se posso dizer, também este blogueiro) mal consegue relacionar-se:

"Como me sinto longe deles [...]. Parece-me que pertenço a uma outra espécie. Eles estão saindo dos escritórios, depois de seu dia de trabalho, olham para as casas e para as praças com ar satisfeito, pensam que essa é a sua cidade, uma 'bela urbe burguesa'. Não têm medo, sentem-se em casa. Nunca viram senão a água domada que corre das torneiras, a luz que jorra das lâmpadas quando se aperta o interruptor, as árvores mestiças, bastardas, sustentadas por espeques. Eles comprovam, cem vezes por dia, que tudo se faz por mecanismos, que o mundo obedece a leis fixas e imutáveis. Os corpos abandonados no vazio caem todos na mesma velocidade, o jardim público é fechado todos os dias às dezesseis horas no inverno e às dezoito horas no verão, o chumbo funde a 335°, o último bonde sai da prefeitura às vinte e três e cinco. Eles são sossegados, um pouco taciturnos, pensam no Amanhã, isto é, simplesmente um novo hoje; as cidades dispõem apenas de um único dia que retorna igualzinho todas as manhãs. Só o enfeitam um pouco aos domingos. Que imbecis! Repugna-me pensar que vou rever seus rostos espessos e tranquilos. Eles legislam, escrevem romances populistas, casam-se, cometem a extrema tolice de fazer filhos".

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¹ SARTRE, Jean-Paul. A náusea. 12 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. [Tradução de Rita Braga]. Todas as citações do texto de Sartre incluídas nesta postagem foram extraídas da edição referenciada.


BG de Hoje

Procuro não ser nostálgico. Odeio a frase "no meu tempo é que era bom". Existe um apego por certas canções brasileiras dos anos 1980 - época da explosão comercial do rock nacional - que eu acho insuportável. Não consigo ouvir muitas faixas daquela época justamente por causa dessa nostalgia chata. Uma das exceções é Até quando esperar, um petardo da PLEBE RUDE que sempre me pego escutando, atento e com prazer. Se a pergunta "Com tanta riqueza por aí/onde é que está/cadê sua fração?" fazia todo sentido há quase 40 anos, o que dizer agora, com a indecente concentração de renda testemunhada nos dias atuais?