[Postagem atualizada em 13/10/2021]
Penso que o chamado cancelamento às vezes mostra-se pouco razoável em virtude de excessos cometidos por uma parte dos(as) adeptos(as) da prática ¹.
Em alguns casos - friso, em alguns casos -, certas pessoas a serem canceladas não são suspeitas/acusadas de agressão, crime sexual ou crime contra a vida, não difamaram, não caluniaram, não insultaram, não mentiram, não ameaçaram outrem, não promoveram discurso de ódio. Essas pessoas também não exorbitaram no seu direito à liberdade de expressão. Em alguns casos, o que esses indivíduos fizeram foi apenas realizar um ato, dizer algo ou manifestar uma opinião que está fora de um regimento bastante específico e não compartilhado - mas seguido de forma estrita - pelo(a) zeloso(a) "cancelador(a)".
O resultado é que, em várias ocasiões, interdita-se o debate, mesmo entre indivíduos que compartilham visões de mundo bem próximas e que defendem compromissos éticos similares. Isso sem falar no opróbrio que pode atingir a pessoa cancelada, ainda que ela não tenha - repito - sido acusada/considerada suspeita de agressão, crime sexual ou contra a vida, difamado, caluniado, insultado, mentido, ameaçado outrem, promovido discurso de ódio ou exorbitado no seu direito à liberdade de expressão. NOTA: Isto posto, não estou alheio à velhacaria de determinados jornalistas, políticos, influenciadores digitais e até acadêmicos que, com desonestidade intelectual (e, não raro, má-fé), contaminam o debate público apenas para vencer a disputa ideológica.
Na contemporaneidade, é magnífico que vozes até então impedidas de falar e comunidades tornadas invisíveis por opressões diversas consigam ser ouvidas e reconhecidas no espaço público (e é preciso admitir o papel das mídias sociais nesse processo). É formidável também que o trabalho organizado de ativistas consiga, às vezes, fazer com que celebridades, políticos e até grandes empresas com enorme poder sejam mais responsáveis e conscientes em suas ações e declarações ². Entretanto, a disposição para o "cancelamento", uma das resultantes desse ativismo, pode estar fazendo com que a livre troca de informações e ideias se torne mais restrita, como afirmam os signatários daquela famosa (e duramente criticada) Carta sobre justiça e debate aberto , publicada em julho de 2020 (entre os que a assinam, destaco Noam Chomsky, Margaret Atwood e Salman Rushdie). "Embora esperemos isso da direita radical [a restrição da livre troca de informações e ideias], a censura também está se espalhando mais amplamente em nossa cultura: uma intolerância a pontos de vista opostos, um furor para a vergonha pública e ostracismo e a tendência de dissolver questões políticas complexas em uma certeza moral cegante", lê-se em determinado trecho.
Esse, aliás, é um dos aspectos que mais me deixa agastado às vezes com a propalada "cultura do cancelamento": o(a) "cancelador(a)" não duvida nem por um segundo da sua superioridade (pior, da sua infalibilidade) moral em relação a toda e qualquer pessoa que não se ajuste (nem que seja só um pouco) ao seu regimento.
Eu havia escrito e publicado um texto sobre esse tema no ano passado. Decidi excluí-lo, porém, porque não me agradou. Aí, no último domingo, dei de cara com esta excepcional crônica de Antonio Prata, publicada na Folha de S. Paulo. Tenho obrigação de reproduzi-la aqui, pois retrata bem um pouco do que penso sobre o assunto.
(Obrigado mais uma vez, Antonio Prata, um dos pouquíssimos motivos que me fizeram voltar a assinar o deplorável jornal da família Frias)
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¹ Sendo realista, contudo, não acredito que haja um número expressivo de indivíduos engajados, metódica e sistematicamente, no tal cancelamento, como se se tratasse de ações orquestradas (não me surpreenderia, porém, se isso acontecesse eventualmente). Em resumo: vejo a "ação de cancelar" mais como uma disposição do que como um procedimento calculado.
² Essa passagem me faz recordar uma postagem que publiquei aqui no Besta Quadrada em 2016, defendendo o chamado politicamente correto: Não se pode esquecer que somos seres de linguagem: discutindo o politicamente correto.
BG de Hoje
Sem mais a acrescentar.
SLIPKNOT, People = Shit