quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

O que esperar quando se aposta na burrice e na estupidez?


[Postagem atualizada em 21/01/2019]

 

"A força da burrice vem da sua incapacidade de compreender. A lei do menor esforço e a lei do mais forte se retroalimentam. Para que pensar, se podemos calar quem se esforça em fazê-lo? É aí que a imbecilidade se confunde com a má-fé que a instrumentaliza.

[...]

A burrice exige que se explique tudo de novo, desde o zero. O bê-a-bá, sempre, em vão. É uma tática eficaz. A estupidez vence pela exaustão".

Bernardo Carvalho - A burrice vence pela exaustão e quer calar quem pensa



"Há uma espécie de orgulho de ser burro", observou o jornalista Ayrton Centeno num bem-humorado texto sobre o período pré e pós-eleição presidencial de 2018. "Como escreveu um amigo, é a 'burrice-ostentação'. Algo que não exige maior esforço. Afinal, não é necessário estudar para ser fascista. É uma ideologia absorvida mais pelo emocional do que o racional. Mais pelo bíceps do que pelo cérebro. E, para azar do Brasil, muito mais vem a caminho".

Asneiras e barbaridades já não são coisas que se diz em surdina, acompanhadas de um certo embaraço. "Muito pelo contrário. São gritadas para o mundo na rua, no whatsapp, no facebook, no instagram, nas caixas de comentários" (ressalvando que as manifestações de imbecilidade e selvageria nas mídias sociais e nas seções de comentários de sites/portais de internet não são algo recente, nem restritas à realidade brasileira).

Os burros perderam o acanhamento e estão dispostos a tomar conta do espaço público, com o auxílio luxuoso da internet, promovendo o "idiota da aldeia a portador da verdade", como disse Umberto Eco.

Mas - talvez esteja se perguntando o(a) eventual leitor(a) - como este blogueiro de merda pode ser tão arrogante a ponto de chamar os outros de burros, principalmente aqueles que se distanciam dele, politicamente falando? Deve se achar muito inteligente, o patife...

Creio, então, ser necessário estabelecer algumas definições, para tentar limpar a minha barra.

Frequentemente, os vocábulos estupidez, burrice e ignorância são usados de forma intercambiável, praticamente como palavras sinônimas. Um exame mais detido, porém, mostra-nos que não é bem assim. Para esclarecermos isso melhor, vamos partir do termo ignorância.

Como registram os dicionários, ignorância refere-se a um estado de desconhecimento, decorrente ou não da falta de instrução. Um indivíduo que não foi submetido à educação formal é ignorante em relação a muitos dos saberes que circulam no meio escolar, mas não é necessariamente estúpido ou burro. Um sujeito pode ser muito versado na matéria A ou ter décadas de treinamento em B; ainda assim, mostra-se ignorante quando inquirido sobre técnicas ou procedimentos pertencentes a C, porque não fizeram parte de sua formação profissional, ou porque não tem interesse nesse assunto, ou por outro motivo qualquer. Ignoram-se idiomas, por falta de domínio da língua; ignoram-se dados, por falta ou dificuldade de acesso a eles. Nesse sentido, todos somos ignorantes em relação a alguma coisa (na verdade, somos ignorantes em relação a uma infinidade de coisas). A ignorância é mais uma condição, uma circunstância, do que uma disposição pessoal. É na maneira como lidamos com a ignorância que está o busílis.

Vejamos agora a burrice. A acepção "falta de inteligência" é comum nos dicionários. Geralmente, quando se usa a palavra burro (quase sempre como ofensa) é isso mesmo que se quer designar: um sujeito que não possui qualquer traço de argúcia. Obviamente, por mais inteligente que alguém se ache, essa pessoa pode ser (e será) considerada burra por outrem - falemos sem hipocrisia: julgamos e somos julgados o tempo todo, independentemente de nossas "boas intenções". Entretanto, se a petulância me for permitida, quero apresentar uma outra definição do termo, conveniente para a nossa discussão: a burrice é, em muitos casos, uma ignorância deliberada, uma ignorância assumida com má-fé.

No ano passado, falando sobre o Elogio da loucura, de Erasmo de Rotterdam,  escrevi que os indivíduos confortavelmente (e, às vezes, alegremente) adaptados à sua ignorância e sem intuito de mitigar (dentro das condições possíveis) seu desconhecimento sobre as coisas e os fenômenos à nossa volta devem ser chamados de burros, sem contemporização. Noutras palavras, os indivíduos burros pelos quais tenho ojeriza escolheram permanecer na(s) sua(s) ignorância(s), mesmo tendo meios para evitá-la(s), inclusive em relação a tópicos de seu interesse. É uma das faces do "orgulho de ser burro".

O que nos encaminha para o conceito de estupidez. Certamente significa falta de discernimento, mas os lexicógrafos informam que grosseria, descortesia e indelicadeza também são sinônimos dessa palavra. Desse modo, seguindo minha linha de argumentação, a estupidez, além de ser um tipo de desconhecimento pelo qual se optou deliberadamente (tal como a burrice), é uma forma de ignorância que se expressa através da boçalidade, intencionando ferir. Portanto, a estupidez seria uma ignorância deliberada e truculenta.

Pois bem. Parece que estamos vivenciando um período em que tanto a burrice quanto a estupidez, além de "estarem na moda", passaram a ser valorizadas como capital político-eleitoral.

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A filósofa Marcia Tiburi cunhou a palavra neofundamentalismo em sua reflexão sobre "certa postura de nossa época relativa à questão da verdade quando não é a verdade que está em jogo" ¹. Apesar do termo me soar meio extravagante, tenho forte concordância com aquilo que ele denota.

"Se lembrarmos de Walter Benjamin definindo o capitalismo como religião" - escreve Tiburi -, "o neofundamentalismo analogamente corresponderia à ignorância como religião. Nele, o culto total e ininterrupto do não saber - enquanto desprezo pelo saber - não deixa espaço para nada que possa relacionar-se a algo como conhecimento. Imposta à força, a ignorância seria o sangue injetado diariamente nas veias anêmicas da cultura reduzida à sua indústria. Diálogo, uma postura aberta ao outro a partir da qual é possível o encontro com o conhecimento, com o que não está dado, não é possível para o neofundamentalista. O fundamento do neofundamentalista não é mais o dogma, porque ele não parte de uma verdade, mas de um acordo prévio com a ignorância elevada a método de dominação cultural. A ignorância é, assim, o próprio fundamento na postura do neofundamentalista".

Como se vê, não se trata aqui apenas de não saber (afinal, como já dissemos, todos somos ignorantes em relação a trocentas coisas), mas de vilipendiar o saber. O neofundamentalista (a quem estou chamando simplesmente de burro e estúpido) - para mal de nossos pecados - "cultua a mais bruta ignorância, a que despreza o conhecimento".

As recentes mostras de hostilidade contra professoras(es) no Brasil, que incluem as graves ameaças de morte à antropóloga Débora Diniz e o incitamento à censura e o ataque à liberdade de cátedra representado pelo famigerado movimento "Escola sem Partido", são muito ilustrativas dos tempos atuais, marcados por impulsos obscurantistas (e violentos), como os que caracterizaram a campanha eleitoral da candidatura presidencial vencedora e, pelo que se vê até agora, parecem ser um dos componentes essenciais do governo recém-empossado. Esses impulsos satisfazem o apetite de indivíduos que (não me cansarei de dizer isso) optaram, deliberadamente, pela ignorância, muitas vezes acompanhada da incivilidade. Há resistências, claro. Ou, pelo menos, queixas enérgicas:  recentemente, um grupo de escolas particulares de elite divulgou uma contundente carta aberta ao atual ministro da Educação, clamando ao titular da pasta que "não permita que o país entre numa rota de retrocesso, a partir da instituição escolar" (examinando artigos e falas do ministro, porém, não se deve esperar grande coisa).

O recrudescimento de grupos propagadores de discurso de ódio (como nazistas e supremacistas brancos) nos EUA, Alemanha e nos países que formavam a antiga Iugoslávia; o sempiterno fanatismo religioso (muçulmano ou cristão) cultivado em regiões do planeta atoladas em pobreza e miséria; as pautas anti-direitos humanos defendidas pelos atuais governos de nações tão distintas umas das outras quanto Hungria, Itália, Venezuela, Turquia e Filipinas indicam, a meu ver, que uma grande parte da humanidade resolveu apostar na burrice e na estupidez e adotou a ignorância como a base para o enfrentamento dos problemas. E uma parcela significativa da população brasileira embarcou nessa.

No início de mais um ano, quando se costuma fazer projeções para o futuro, devo dizer que meu pessimismo, já de hábito enorme, só faz aumentar.

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Bernardo Carvalho é, certamente, o autor brasileiro contemporâneo que mais tenho lido e apreciado. Já postei a respeito de alguns de seus livros (aqui e aqui, por exemplo). No ano passado, em conversa na Radio France Internationale, o escritor carioca (radicado em São Paulo) afirmou haver uma "especificidade" brasileira em relação a outras nações da América Latina, em se tratando de literatura. México e Argentina, por exemplo, quando vistos por europeus, costumam ser considerados países literários. O mesmo não acontece conosco. "O Brasil não é considerado um país literário, não é um lugar que as pessoas vejam como produtor de coisas intelectuais sérias". Para Carvalho, não se trata propriamente de um preconceito dos leitores da França ou da Inglaterra (embora também possa sê-lo). A avaliação negativa talvez se deva mais a percepção de que "o Brasil se tornou uma espécie de território da burrice. O que está acontecendo politicamente no Brasil, além de ser um suicídio, mostra uma burrice generalizada no país que é muito impressionante". E acrescenta: "Eu acho que, como estrangeiro, se eu visse esse país, como ele se comporta, como ele reage politicamente, para onde ele caminha, o que ele faz com seus conflitos sociais, como ele resolve esses conflitos, como ele faz esses conflitos permanecerem, eu acho que eu não levaria a sério esse lugar".

Recentemente, alguns dos perfis que sigo no Twitter relembraram uma matéria publicada em 2016 no blog de Maria Fernanda Rodrigues (Estadão), que apresentava os resultados da última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Ibope por encomenda do Instituto Pró-Livro. Embora a maioria da população (56%) seja considerada leitora pela metodologia da pesquisa, alguns dados chamam a atenção negativamente: cerca de 30% dos brasileiros alfabetizados nunca comprou um livro sequer; para 67% , nunca houve alguém que os incentivasse a ler; 50% de professores/trabalhadores da educação ouvidos pelo Ibope afirmaram não ter lido nenhum livro nos últimos 3 meses (para acessar o levantamento completo, clique aqui).

Números como esses, acrescidos da informação de que quase um terço da população brasileira é composta por analfabetos funcionais (e apenas 12% dos brasileiros podem ser considerados proficientes na leitura), demonstram que a avaliação de Carvalho não é equivocada. NOTA: Já que mencionei o Twitter, costumo encontrar por lá - com pequenas variações - a seguinte afirmativa divertida: um dos males contemporâneos é a falta de interpretação de texto...

Muito da burrice e da estupidez que tenho testemunhado deriva da incapacidade e/ou da indisposição de muitas pessoas para a leitura de textos menos superficiais, mais complexos, principalmente textos literários.

Assim como a pesquisadora espanhola Teresa Colomer ², acredito que a Literatura é um "gênero segundo", significando com isso que esta é "capaz de absorver qualquer discurso linguístico de maneira que [...] a literatura nos prepara para ler melhor todos os discursos sociais". Para Colomer, essa ideia "sustenta que os textos literários constituem um bom andaime educativo, não apenas para ler e escrever literatura, mas também para aprender os mecanismos do funcionamento linguístico em geral". Deveríamos, portanto, nos empenhar mais e mais em ler boa Literatura. No entanto, o que temos visto, particularmente no Brasil - e isso já vem de décadas - passa longe de um estímulo à cultura dos livros, sobretudo os de ficção ou poesia ³.

Ao contrário do que muitos pensam, mesmo com o advento de todos esses recursos eletrônicos digitais atualmente disponíveis, a leitura de obras literárias ainda é fundamental, se desejamos viver em um mundo minimamente civilizado. Como afirmou a escritora grega Amanda Michalopoulou, em tempos divisivos e (talvez, inevitavelmente) polarizados,

"A ficção nos ensina a pensar criativamente sobre a diferença. Estudos antropológicos, psicanálise, sociologia - todos oferecem descrições teóricas para aquilo que a literatura ensina por exemplo e identificação. [...] Culpa, inveja, desespero, violência, ansiedade, irracionalidade, medo da morte - nada do que é humano é estranho à literatura. Então, quanto mais a educação entra em declínio por falta de imaginação (sem mencionar recursos), mais a literatura é chamada a servir como uma outra forma de educação".

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É necessário ainda advertir que o culto à ignorância, além de repudiar a arte, a literatura e o saber humanístico em geral, também não se intimida diante do conhecimento científico.

A alegação de que a Terra é plana; a contestação da teoria da evolução motivada pela crença num mito bíblico; os movimentos antivacina; a negação diante do aquecimento global e outros problemas ambientais provocados pela atividade humana; o revisionismo histórico dirigido a acontecimentos graves e dolorosos como, por exemplo, o Holocausto e a escravização de africanos - esses e outros exemplos de burrice e estupidez são convicções partilhadas por muitos indivíduos ao redor do planeta, alguns deles localizados em diversas instâncias de poder (político e econômico).

"Sempre que nossos preconceitos étnicos ou nacionais são despertados, nos tempos de escassez, em meio a desafios à autoestima ou à coragem nacional, quando sofremos com nosso diminuto lugar e finalidade no Cosmos, ou quando o fanatismo ferve ao nosso redor - então hábitos de pensamento conhecidos de eras passadas procuram se apoderar dos controles", escreveu o astrônomo e astrofísico Carl Sagan, em um livro estupendo que nunca me canso de citar (O mundo assombrado pelos demônios ). 

Olhemos, por exemplo, como a humanidade tem respondido a alguns de seus impasses atuais mais críticos: a calamitosa e dramática situação dos refugiados. Tanto aqui no Brasil quanto na Europa, a receita adotada envolve xenofobia, traduzida em ataques violentos. Para muitos indivíduos, esse e outros problemas contemporâneos só serão resolvidos por meio do embrutecimento, com lideranças e governantes "fortes" e "duros" - ou seja, mais próximos da tirania. São "os hábitos de pensamento conhecidos de eras passadas" se apoderando dos controles... Num tal panorama, a ciência - ou, mais importante, a maneira de pensar proposta pela ciência - é abandonada. Não surpreende que todos os governos de ímpeto autoritário e antidemocrático sejam indigentes em se tratando de educação e ciência.

Atentemos para o que também escreveu Sagan:

"Os valores da ciência e os da democracia são concordantes, em muitos casos indistinguíveis. [...] A ciência confere poder a qualquer um que se der ao trabalho de aprendê-la (embora muitos tenham sido sistematicamente impedidos de adquirir esse conhecimento). Ela nutre - na verdade necessita - do livre intercâmbio de ideias: seus valores são opostos ao sigilo. A ciência não mantém nenhum ponto de observação especial, nem posições privilegiadas. Tanto a ciência como a democracia encorajam opiniões não convencionais e debate vigoroso. Ambas requerem raciocínio adequado, argumentos coerentes, padrões rigorosos de evidência e honestidade. A ciência é um meio de desmascarar aqueles que apenas fingem conhecer. É um baluarte contra o misticismo, contra a superstição, contra a religião mal aplicada a assuntos que não lhe dizem respeito. Se somos fiéis a seus valores, ela pode nos dizer quando estamos enganados [...]

O astrônomo norte-americano, contudo, não concebe a atividade científica como uma cornucópia perfeita e sabe que "os produtos da ciência também podem subverter radicalmente a democracia, de um modo jamais sonhado pelos demagogos pré-industriais". Ainda assim, vale a pena envolver-se com a ciência (e com a democracia):

"Descobrir a gota ocasional de verdade no meio de um grande oceano de confusão e mistificação requer vigilância, dedicação e coragem. Mas, se não praticamos esses hábitos rigorosos de pensar, não podemos ter a esperança de solucionar os problemas verdadeiramente sérios com que nos defrontamos - e nos arriscamos a nos tornar uma nação de patetas, um mundo de patetas, prontos para sermos passados para trás pelo primeiro charlatão que cruzar o nosso caminho".

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O que esperar quando se aposta na burrice e na estupidez? Creio que a resposta é simples: mais burrice e mais estupidez.

Pelo que estamos vendo, contudo, muitos não têm dado a mínima.

Pior para todos nós.

________________
¹ TIBURI, Marcia. Neofundamentalismo. In: __________. Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. 9 ed. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 74-75

² COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007. [Tradução de Laura Sandroni]

³ É preciso reconhecer que, desde os anos 1980, o governo federal implementou políticas públicas visando aumentar o acesso da população aos livros, principalmente através das redes de ensino (iniciativas como o Salas de Leitura, Programa Nacional do Livro Didático, Literatura Em Minha Casa, Programa Nacional Biblioteca na Escola, entre outros), isso sem mencionar as ações realizadas pelo poder público municipal (como é o caso dos "kits literários" distribuídos pela prefeitura de Belo Horizonte nas últimas três administrações). No entanto, por mais acertada e necessária que seja, somente a iniciativa de compra e distribuição de livros não tem se mostrado suficiente para uma satisfatória promoção da leitura e consequente formação de leitores. Esse é um tema que merece ser discutido com mais profundidade; assim que possível, farei uma série de postagens sobre o assunto.

SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. [Tradução de Rosaura Eichemberg]

BG de Hoje

Oriundo da área teatral daqui de Belo Horizonte, MARCELO VERONEZ incursionou pelo terreno da música recentemente, sendo muito elogiado por seu trabalho como cantor. Um exemplo está nesta ótima versão de Nunca vi, composta e gravada antes por Marku Ribas, nos anos 1970, em plena ditadura (Ribas, que teve outras faixas censuradas, chegou a ser preso e depois partiu para o exílio).  É impressionante como a letra da canção, escrita por Paulo Coelho há mais de 40 anos, não destoa do momento que estamos vivenciando. Ah, e a banda Iconili, que acompanha Veronez nesta faixa, é sensacional!

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Falou e disse...

"Livros: tocá-los. Fazer fluir a mão, distraída e dúctil no deslizar das páginas. Excursionar entre palavras, iluminá-las com o facho da inteligência, sem, com isso, deixar de reconhecer o que nelas resiste como opacidade visceral ao trânsito de sentidos. Falar de literatura é, desejavelmente, caminhar além do rosto visível do discurso alheio, e, ao mesmo tempo, aquém do resto indizível que a ele subjaz. Percorrer, em suma, o fio estreito da fala criadora, que simultaneamente nos convoca à palavra crítica e nos malogra, ao apontar sempre para um horizonte outro e mais amplo, do qual, a duras penas (e a frias teclas) mal conseguimos nos abeirar. Por isso, a palavra crítica é vocacionada para a insistência e a repetição, à espera da paciente brecha, onde, subitamente, ver de novo se transforme em ver o novo". *

* SECCHIN, Antonio Carlos. A mão e os livros. In: __________. Escritos sobre poesia & alguma ficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. p. 281-282