segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O desaparecimento da esfera pública: lendo A condição humana, de Hannah Arendt (I)


"Nas condições de um mundo comum, a realidade não é garantida primordialmente pela 'natureza comum' de todos os homens que o constituem, mas antes pelo fato de que, a despeito de diferenças de posição e da resultante variedade de perspectivas, todos estão sempre interessados no mesmo objeto. Quando já não se pode discernir a mesma identidade do objeto, nenhuma natureza comum, e muito menos o conformismo artificial de uma sociedade de massas, pode evitar a destruição do mundo comum, que é geralmente precedida pela destruição de muitos aspectos nos quais ele se apresenta à pluralidade humana".

Hannah Arendt - A condição humana



Reservadas as peculiaridades de cada categoria de indivíduos a ser mencionada adiante, pode-se dizer que há um traço partilhado pelos empedernidos proprietários de armas nos EUA e os defensores do projeto "Escola sem Partido" aqui no Brasil, bem como pelos negacionistas da mudança climática provocada pela atividade humana e os grandes investidores (melhor seria dizer especuladores/apostadores) dos mercados financeiros mundiais: todos estão se lixando para o restante do mundo, desde que o seu "modo de vida"  e seus "valores" estejam (ou pelo menos pareçam estar) assegurados.

Antevejo a objeção do(a) eventual leitor(a). E tem razão. Um grande número de pessoas neste planeta - e, sejamos sinceros, não só os tipos dos quais falei no parágrafo anterior - quer mais que os outros se fodam. Contudo, boa parte delas não está alistada em entidades organizadas nem promovendo lobbies explícitos junto aos órgãos governamentais para fazer valer a sua agenda no domínio público, atraindo corações e mentes para suas "causas" e tentando, por variados meios, suprimir o debate e as vozes discordantes, como o fazem os acima indigitados.*

Essas observações iniciais do blogueiro  - um tanto descosidas, admito - têm, apesar de tudo, relação com alguns pontos levantados por Hannah Arendt em A condição humana**, um dos mais importantes tratados de filosofia do século XX.

Publicado pela primeira vez em 1958, o livro da pensadora alemã procura compreender as três instâncias de que se compõe a vida ativa humana - o trabalho, a obra (fabricação) e a ação. Mas não "só" isso. Para realizar sua tarefa, Arendt faz um percurso analítico-crítico destacando todos os filósofos-chaves para a história do pensamento político no Ocidente, começando pela Antiguidade grega, com Platão e Aristóteles, passando por Agostinho de Hipona (ou Santo Agostinho, como queiram), Tomás de Aquino (ou São Tomás de Aquino, se fazem questão), Maquiavel, Locke, Hobbes, Montesquieu (só um tiquinho), além de Rousseau e Marx (a quem a autora dirige um longo e respeitoso ataque). Como o livro vai muito além da teoria política, há pontos sensacionais a respeito de Descartes, Kant, Hegel, Nietzsche - além de desferir um golpe certeiro no utilitarismo de Jeremy Bentham.

Apesar da perspectiva secular assumida pela filósofa, Jesus é mencionado largamente no livro, dado o peso gigantesco do cristianismo na cultura ocidental. A condição humana, em seu último capítulo, ainda traz um sóbrio e válido exame da ciência e da visão cientificista (muitas vezes, surpreendentemente simplista) associada a esse empreendimento humano que, não obstante sua centralidade e importância no atual estágio histórico (e Hannah Arendt não o nega, claro), deve e precisa ser criticado, sobretudo filosoficamente. NOTA: Bem diferente, em qualidade, do que se encontra no livro A barbárie, de Michel Henry, discutido recentemente no Besta Quadrada aqui (e mais aqui). Como se não bastasse tudo o que já mencionei, Hannah Arendt faz preciosas (ainda que breves) observações sobre estética, arte e poesia.

Não será simples "traduzir" um trabalho tão importante quanto A condição humana para a linguagem mais direta, habitualmente adotada neste blog. Todavia, desejo imensamente fazê-lo, sobretudo num momento em que a política encontra-se tão desacreditada e vista com aversão no Brasil e em várias outras partes do mundo.

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De acordo com John  Lechte***, "dois temas em particular estão presentes na obra de Arendt em um nível quase obsessivo: os da liberdade e da necessidade, e a relação da exceção com a norma". Percebe-se essa "obsessão" em A condição humana no modo como a autora identifica  e discute o apagamento gradual do domínio público (território da ação e polo da liberdade, na concepção de Hannah Arendt), acompanhado, por sua vez, de uma quase onipresença do trabalho (polo da necessidade) nos assuntos humanos. A ação, no seu mais profundo significado político, é muitas vezes imprevisível e extraordinária - portanto, estabelece exceções, provocando a revisão ou o questionamento das normas. Esse é um dos motivos pelos quais a política (umbilicalmente ligada à ação) é tão desprezada. Convém compreendermos melhor o que é a ação, de acordo com essa pensadora.

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A distinção entre trabalho, obra e ação proposta por Hannah Arendt foi bastante inovadora, mas, de forma simplificada, pode-se afirmar, de acordo com a filósofa, que o trabalho diz respeito às atividades ligadas (fisiologicamente, inclusive) à sobrevivência da espécie humana. É indispensável, pois, sem ele, morreríamos. O trabalho, contudo, não perdura no tempo; esgota-se enquanto é realizado (daí a intensa relação deste com sua outra metade, o consumo). A obra, por outro lado, deixa atrás de si objetos que, por sua materialidade e durabilidade, constituem as coisas que, concomitante à natureza, formam o mundo tal como os seres humanos o reconhecem. O trabalho e a obra, porém, prescindem da pluralidade humana; ocorrem, de maneira geral, privada ou isoladamente. A ação, por sua vez, só se dá entre os seres humanos, pois ela só se justifica no discurso, no uso da palavra.

"A ação" - escreve Arendt - "seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência nas leis gerais do comportamento, se os homens fossem repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, cuja natureza ou essência fosse a mesma para todos e tão previsível quanto a natureza ou essência de qualquer outra coisa. A pluralidade é a condição da ação humana porque somos todos iguais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém é jamais igual a qualquer outro que viveu, vive ou viverá".

Como se pode perceber, a autora nega completamente a noção de que possa existir algo como uma "natureza humana" essencialmente dada e válida para todos os indivíduos (como fora praxe entre os vários clássicos da filosofia política). Por vivermos na pluralidade - de interesses, de subjetividades, de inclinações afetivas - , de que outro modo poderíamos tentar nos entender senão por meio da palavra? Enquanto enclausurado na esfera do trabalho, "o homem não está junto ao mundo nem convive com os outros, mas está sozinho com seu corpo ante a pura necessidade de manter-se vivo". Circunscritos somente à esfera da obra, estaríamos vivendo num "modo apolítico de vida" (embora não antipolítico), pois os objetos da fabricação nos seriam suficientes. Em última análise, é a ação que nos tornaria plenamente humanos, nas várias acepções da palavra. Hannah Arendt observa que


"Os homens podem perfeitamente viver sem trabalhar, obrigando outros a trabalharem para eles; e podem muito bem decidir simplesmente usar e fruir do mundo das coisas sem lhe acrescentar um só objeto útil; a vida de um explorador ou senhor de escravos e a vida de um parasita podem ser injustas, mas certamente são humanas. Por outro lado, uma vida sem discurso e sem ação [...] é literalmente morta para o mundo; deixa de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre os homens".

A ação deixou de ter importância porque não parecemos estar interessados em construir e manter um mundo comum, onde a palavra seja relevante. De que modo isso acontece? E o que se pode fazer a respeito?

Prossigo na semana que vem
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* E como se isso tudo já não fosse suficiente, o mundo ainda precisa lidar com o terrorismo multifacetado, de variada origem, outra maneira de tentar fazer prevalecer determinado "modo de vida" e determinado conjunto de "valores", empregando, nesse caso, a violência pura e simples.

** ARENDT, Hannah. A condição humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013 [Tradução de Roberto Barroso]

*** LECHTE, John. 50 pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-modernidade. 4 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006 [Tradução de Fábio Fernandes]


BG de Hoje

Chrissie Hynde continua na ativa. Já são quatro décadas na estrada. Embora só ela permaneça como integrante da formação original dos PRETENDERS, é ótimo saber que a banda segue gravando (o último disco tem produção de Dan Auerbach, do Black Keys) e excursionando. O estilo low-profile de Chrissie Hynde, sempre evitando ser tratada como rock star, é um alento em meio a tanta badalação vazia provocada pelo atual culto às celebridades. No BG, um dos maiores hits dos Pretenders, Back On The Chain Gang (que tem uma linha de baixo muito legal).


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A penúria do jornalismo atual (e a grana que também me falta)


O jornal britânico The Guardian tem acrescentado, ao final de algumas matérias nas suas edições da web, o seguinte recado ao leitor:


"Since you're here...

... we have a small favour to ask. More people are reading The Guardian than ever but far fewer are paying for it. And advertising revenues across the media are falling fast. So you can see why we need to ask for your help. The Guardian's independent, investigative journalism takes a lot of time, money and hard work to produce. But we do it because we believe our perspective matters - because it might well be your perspective, too.

Fund our journalism and together we can keep the world informed. *

* [tradução aproximada: "Já que você está aqui... nós temos um pequeno favor para pedir. Mais pessoas estão lendo o Guardian do que nunca, mas pouquíssimas estão pagando por isso. E as receitas com anúncios através da mídia estão caindo rápido. Assim você pode ver por que precisamos pedir ajuda. O jornalismo independente e investigativo do Guardian leva muito tempo, dinheiro e trabalho duro para produzir. Mas nós o fazemos porque acreditamos que nossa perspectiva importa - porque ela bem pode ser a sua perspectiva também. Financie o nosso jornalismo e juntos podemos manter o mundo informado".]

Sendo sincero, senti um pouco de vergonha de mim mesmo na primeira vez em que vi esse recado - e experimentei a mesma sensação todas as vezes seguintes em que topei com ele. The Guardian foi fundado em 1821 (portanto, está perto de completar 200 anos em atividade!). É um dos mais tradicionais veículos da imprensa europeia, respeitado mundialmente. Entretanto, todo o seu prestígio e qualidade, ao que parece, são insuficientes para manter-se no negócio.

Revistas e jornais impressos foram diretamente impactados pela internet. Alguns títulos não mais circulam em papel, sobrevivendo apenas na versão online; outros simplesmente deixaram de existir. Os exemplares foram ficando mais magros e várias páginas são ocupadas exclusivamente por campanhas publicitárias, demonstrando que as redações atualmente têm menos importância do que os departamentos comerciais. As vendas avulsas são ínfimas e os assinantes, cada vez mais raros (quem você conhece  que ainda recebe em casa Istoé ou O Globo, por exemplo? Chega a ser constrangedor o número de e-mais do tipo mala-direta enviados pela editora Abril me pedindo para voltar a comprar seus produtos, dos quais hoje quero distância). Como esses empreendimentos se sustentarão? Essa não é uma questão menor  porque, a despeito da venalidade e do mau-caratismo de determinadas empresas, a imprensa, institucionalmente falando, é elemento vital para a democracia.

O atual estágio tecnológico faculta ao indivíduo não pagar pelo ganha-pão de muitos profissionais, por exemplo, no campo da arte e do entretenimento - de fotógrafos(as) a figurinistas, passando por artistas gráficos, tradutores(as), revisores(as), roteiristas, atores e atrizes, compositores(as), cantores(as), musicistas, escritores(as), cinegrafistas, iluminadores **. Começamos também a nos "acostumar" a pensar o trabalho dos(as) jornalistas como algo que não envolve custos ou remuneração. E não há sinais, pelo menos no curto prazo, de mudança nesse cenário. Para não fecharem as portas, restam aos veículos jornalísticos poucas alternativas. Uma delas, perfeitamente aceitável e nobre, é contar com a contribuição financeira daqueles leitores dispostos (e sensibilizados) a ponto de ajudar. Mas isso não é nada, nada simples.

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Uma das grandes armadilhas do capitalismo é convencer as pessoas de que todos podem ter seu lugar ao sol. Basta perseverança e trabalho duro. Não é preciso ser um perito em economia para não levar isso muito a sério. A tendência atual é de maior concentração de renda na mão de poucos, gerando mais desigualdade, sem diminuir a pobreza global, não importando a carga individual de cada trabalhador. Completando esse quadro desolador, salários estão sendo vaporizados numa velocidade impressionante, esvaziados de poder aquisitivo, comprometidos pelo endividamento.

Captar dinheiro para determinadas atividades ficou muito difícil; há menos dinheiro disponível para as pessoas comuns. Isso explica a disseminação do crowdfunding, prática adotada para financiar uma variedade de projetos: construção de abrigos para refugiados, espetáculos artísticos, viagens de atletas em competição, produção de filmes, gravação de discos, publicação de livros... E também a realização de reportagens investigativas - no Brasil, o Diário do Centro do Mundo tem adotado essa estratégia.

Pode-se também simplesmente pedir doações. É o que sempre fizeram várias entidades de alcance mundial.

O problema é que muitas pessoas sabedoras da importância de contribuir com essas ações e projetos não o fazem. E não porque não queiram, mas porque estão elas cada vez mais sem ter de onde tirar.

Há cinco meses deixei de doar para a Unicef (e olha que se trata apenas de R$40,00 mensais). Nas últimas eleições municipais não ajudei sequer com um real a campanha do PSOL e não paguei minha mensalidade sindical várias vezes em 2016. Meu salário - única fonte de renda de que disponho - está achatado há pelo menos quatro anos, sem qualquer ganho real em relação à inflação. Não há qualquer indicativo de melhora; vem aí a PEC 55 (ex-PEC 241) que congelará os investimentos em educação durante 20 anos, com impacto direto na remuneração dos servidores públicos do setor em todo o país (caso deste blogueiro), graças ao efeito cascata esperado nos estados e municípios. Por mais que queira colaborar, não tenho dinheiro pra isso.

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Meu pessimismo, contudo, pode ser injustificado (não creio). Quem sabe volte a ter algum ganho salarial no futuro. Se assim for, farei questão de contribuir para entidades como Médicos sem Fronteiras e assinar publicações que respeito (e cuja perspectiva me interessa), como o Guardian, o jornal brasileiro Nexo e as revistas Carta Capital e Caros Amigos. Por enquanto, porém, só posso me aproveitar desses veículos, pois não quero ser engolido pelo mau jornalismo da mídia hegemônica (e para se ter ideia de como são canalhas, a Associação Nacional de Jornais - entidade que congrega o oligopólio de imprensa brasileiro, controlado pelas mesmas famílias há décadas e décadas - quer restringir a atuação de sites como BBC, El País e outros, cuja prestação de serviço jornalístico têm sido melhor do que as Folhas, Vejas, Estadões e Globos da vida).

Nas próximas postagens, abordarei o livro A condição humana, de Hannah Arendt.

** Não se trata, pelo menos nesse momento, de um julgamento ou reprimenda moral por parte do blogueiro.

BG de Hoje

Sei que essa canção já foi BG aqui no blog, mas é que a acho tão linda, com seu uso portentoso de um órgão de igreja e os belos vocais - além, é claro, da letra emocionante - que não pude resistir em buscá-la mais uma vez: ARCADE FIRE, My body is cage.


quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Falou e disse...

"A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência. Ela o desperta e provoca sua continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões ou é o despertar definitivo. Depois do despertar vem, com o tempo, a consequência: suicídio ou restabelecimento. Em si, a lassidão tem algo de desalentador. Aqui devo concluir que ela é boa. Pois tudo começa pela consciência e nada vale sem ela". *

* CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 9 ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 27-28 [Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch]

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

"Quem tá na merda não filosofa"



O aforismo usado no título desta postagem é a "moral" que encerra Os perigos da filosofia, o último texto do impagável volume Fábulas fabulosas*, de Millôr Fernandes, publicado em 1973, se não me engano.

A primeira vez que li esse livro, lembro bem, foi aos 14 anos. Havia sido aluno de uma ótima professora de Língua Portuguesa na sétima série (chamava-se Cleone). Durante uma de suas aulas, ela fez uma leitura comentada tão vibrante e divertida de A morte da tartaruga - outro dos textos de Fábulas fabulosas - que fiquei tremendamente desejoso de conhecer todo o conjunto. Uma de minhas irmãs mais velhas tinha um exemplar em casa. Já estava familiarizado como os desenhos e charges de Millôr Fernandes através de seus trabalhos para a imprensa, mas não muito em relação à sua escrita. Confesso não ter compreendido integralmente várias daquelas fábulas irreverentes e insólitas, dadas minha juventude abobada e a reduzida bagagem pessoal de leituras naquela época. Gostei, contudo. Anos mais tarde comprei um exemplar próprio (já tive uns três até hoje), tornando-se um dos itens mais estimados em minha pequena biblioteca doméstica.

Pois bem. Em Os perigos da filosofia, uma narrativa de apenas duas páginas, quatro rapazes e um professor estão agrupados em um local sobre o qual nada sabemos no início da história. O professor propõe um joguete de raciocínio como passatempo. Soluções insatisfatórias são apresentadas pelos rapazes até que o último jovem dá uma resposta excelente. O desfecho, entretanto, coloca-os numa tremenda enrascada (para saber mais, leia o texto do Millôr, ora essa!).

A chave para alcançar o humor da fábula e entender seu final está na palavra aparelho, usada no texto. Num país como o nosso, em que o estudo de História (como, de resto, o estudo de todas as outras matérias do currículo escolar) é negligenciado, muitos talvez não saibam que aparelho, ainda mais em 1973, na Ditadura (e quando Fábulas fabulosas foi publicado, até onde sei), designava algo um pouco diferente de seu sentido comum. Uma ajudinha do Houaiss: "local (apartamento, casa, etc.) usado por grupo político clandestino para suas reuniões nos anos de regime ditatorial".

Estudantes e professores de Filosofia (como supomos ser o caso daqueles personagens) costumavam, no imaginário de certas pessoas, assumir a feição de indivíduos contestadores, propensos a se envolver em protestos e revoltas políticas; daí seria um pulo para a participação deles em organizações clandestinas (e, de fato, confirmando esse imaginário, isso ocorreu no Brasil com muitos indivíduos durante a resistência ao regime militar). Além disso, até hoje, os interessados em Filosofia (assim como os interessados nas ditas ciências humanas) costumam ser rotulados** como sendo de esquerda - o que, para uma galera mal-informada, assustadiça e reacionária, significa vagabundos-perigosos-querendo-implantar-a-ditadura-do-proletariado-a-todo-custo e blá, blá, blá... Estar o tempo todo sob a investigação e ameaça da polícia no passado (e mesmo no presente, quando muitos movimentos sociais e manifestações correm o risco de ser tratados como terrorismo!) - o que os obrigava a se esconderem nos aparelhos - ajuda a entender o estar na merda da "moral" da fábula.

Mas a frase "quem tá na merda não filosofa" - e que frase legal! - pode ser interpretada de outra forma, pensando agora noutras situações.

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Desde a Antiguidade, na Grécia - ou seja, desde o nascimento da Filosofia, tal como tradicionalmente a entendemos*** -, o ato de filosofar e o ato de contemplar sempre estiveram associados quando se pensa na figura do filósofo. E a palavra contemplação, com frequência, opõe-se à ação. Um dos estereótipos do filósofo -  bem diferente daquele que esboçamos acima -  é o de alguém isolado do mundo, cercado apenas por livros ou outros "estimulantes" do pensamento, murmurando de si para si ou contemplando (no sentido de refletir detidamente acerca de um tema) algo que não nos é dado perceber de imediato; as únicas vezes em que esse sujeito age é quando passa para o papel o resultado de suas lucubrações. Essa imagem um tanto caricatural - mas partilhada por algumas pessoas - reforça a oposição entre a ação e a contemplação que, supostamente, existiria dentro do filósofo. Não percamos o fio da meada.

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Tenho vontade de rir - para não gritar de raiva - todas as vezes em que ouço/leio alguém afirmando: "é preciso trabalhar naquilo de que se gosta". Como se a massa de indivíduos que vende sua força de trabalho no mercado tivesse várias opções para escolha! A imensa maioria dos(as) trabalhadores(as) do mundo é compelida a deslocar-se em meio a um trânsito opressivo, a suportar durante horas e horas rotinas de trabalho sem nenhuma circunstância prazerosa (não raro, sem sentido e, nalguns casos, degradantes), a lidar com outros seres humanos rudes, hostis ou, na melhor das hipóteses, simplesmente burros, tudo isso não porque gostam, é óbvio: esses(as) trabalhadores(as) fazem-no unicamente porque precisam sobreviver. Não é necessário dizer o quanto essa condição exaure - mental e fisicamente - os que dela não podem escapar (como este blogueiro e penso também ser o caso do(a) eventual leitor(a)). Tantas vezes engolidos pelo monstro voraz do trabalho e com o espírito avizinhando-se do esgotamento com o passar do tempo, como seria possível  a eles e elas a contemplação (no sentido de refletir detidamente acerca de um tema, por exemplo, a sua própria condição de sujeito explorado e alienado)?

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A crença na superfluidade da reflexão filosófica é tão antiga quanto a existência da Filosofia. E persiste ao longo das eras: uma mostra disso é a famigerada proposta de reforma do ensino médio apresentada recentemente pelo governo golpista de Michel Temer retirando essa e outras disciplinas - essenciais ao meu ver - da grade curricular. Proclamar que a Filosofia é inútil - assim como a Arte, incluída aí a Literatura - não se restringe apenas aos indivíduos com baixa escolaridade e aos políticos a serviço do embrutecimento: é fácil encontrar dentro do ambiente universitário quem execre todas essas outras dimensões do saber humano. Se tal desapreço pode ser verificado entre aqueles que dispõem de um certo capital cultural, o que dizer do enorme contingente de pessoas cercadas exclusivamente pela indústria do entretenimento? O pensamento de natureza filosófica, nesse caso, nem sequer é cogitado dentro do horizonte de suas preocupações - sempre prementes - com a sobrevivência.

Imbecilizadas pela massificação e sugadas pelo universo do trabalho alienante - em boa parte dos casos, não por sua vontade - essas pessoas, para piorar, desconhecem o que seja o ócio.

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Quando foi a última vez que o(a) eventual leitor(a) parou para pensar? A quem é dado - num mundo erigido sobre a desigualdade social - o direito de subtrair-se às exigências do trabalho para poder contemplar (no sentido de refletir detidamente acerca de um tema, por exemplo, que raio de vidinha miserável é essa na qual estamos encalacrados)? Por que o ócio - vital, penso eu, para uma vida verdadeiramente humana - é privilégio de poucos?

Nós, trabalhadores, estamos na merda. Como filosofar em tal estado?

Entretanto, ainda que nossa margem de escolha seja reduzidíssima, pode-se ao menos insistir. O otimismo não faz parte do universo deste blogueiro; ainda assim, digo que entre as poucas chances de sairmos da latrina, a despeito do mundo do trabalho que nos rouba a possibilidade de contemplação (no sentido de refletir detidamente acerca de um tema, por exemplo, como conferir dignidade à nossa existência), é tentar parar para pensar.  

Quem tá na merda não filosofa, mas não teria nada a perder se escolhesse fazê-lo, uma vez que já perdeu quase tudo.
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* FERNANDES, Millôr. Fábulas fabulosas. 12 ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1991

** Esclareço mais uma vez que me considero um sujeito de esquerda. Mas é um grande erro pressupor que os interessados em Filosofia e nas chamadas Humanidades tenham uma "inclinação natural" para se posicionar contra o conservadorismo e o pensamento reacionário. 

*** Há quem defenda, com bons argumentos, que a reflexão filosófica não foi uma exclusividade da Hélade, como se tivesse ocorrido uma espécie de "milagre grego". Como não é objetivo deste texto discutir essa questão, deixo-a para outra oportunidade.

BG de Hoje

Quem tá na merda não filosofa... Mas preciso tentar, pra não sucumbir de vez ao desespero. Pensei, para o BG de hoje, algo que misturasse pessimismo e positividade. Fico com a parte pessimista, como não seria diferente. Canta a banda NOCAUTE (que tem uma pegada meio Planet Hemp e BNegão) na vigorosa faixa Men's, que eu gosto pra caralho: "Ultimamente eu tenho andado preocupado/É que o bicho tá pegando pro meu lado".



terça-feira, 1 de novembro de 2016

A meândrica afetação do discurso filosófico: lendo A barbárie, de Michel Henry (II)




Observei na postagem anterior que Michel Henry faz questão de ressaltar em A barbárie* a existência de um suposto divórcio entre a ciência e a cultura. Como isso se daria?

O autor - que se considera um "dos fenomenólogos preocupados em construir uma fenomenologia radical da subjetividade enquanto subjetividade viva" - acredita que a ciência, tal como esta vem se desenvolvendo desde Galileu Galilei, é refratária à sensibilidade por causa de seu "objetivismo unilateral".

"Afastar da realidade dos objetos suas qualidades sensíveis" - escreve Henry - "é eliminar, ao mesmo tempo, nossa sensibilidade, o conjunto de nossas impressões, emoções, desejos e paixões, pensamentos, em suma, toda a nossa subjetividade, que constitui a substância de nossa vida. É essa vida, portanto, tal como se experimenta em nós em sua fenomenalidade incontestável, essa vida que faz de nós seres vivos, que se vê despojada de toda verdadeira realidade, reduzida a uma aparência. O beijo que trocam os amantes não passa de um bombardeio de partículas microfísicas".

Michel Henry afirma ser a cultura, unicamente, uma "cultura da vida" - seja lá o que isso queira dizer**. A "substância" dessa vida, a subjetividade, é onde a sensibilidade reside e, segundo o filósofo francês, a ciência matemática da natureza "faz abstração da sensibilidade. Porém, a ciência só pode abstrair da sensibilidade porque abstrai, incialmente, da vida; é esta que ela rejeita, devido à sua temática, e ao fazê-lo acaba ignorando-a totalmente".

E acrescenta mais adiante, noutro capítulo:

"O que motiva esse afastamento [da ciência em relação à vida e, portanto, em relação à cultura, como pensa o autor], o que lhe está subjacente, é um pressuposto fundamental, embora implícito, é a crença segundo a qual a verdade é estranha à esfera ontológica da subjetividade viva e pertence, pelo contrário, e isso por princípio e portanto de maneira exclusiva, à da objetividade"

Não sou adepto da tese de que a ciência ocupa lugar oposto ao da cultura, nem acho que a intentio científica negue a sensibilidade ou busque excluí-la do mundo, junto com a subjetividade, como prega Henry. Mas acredito que sua retórica pode acabar seduzindo uns e outros por esse mundão afora.

A racionalização decorrente da ampliação do conhecimento científico, parte crucial no processo de "desencantamento do mundo" (para usar a célebre expressão de Max Weber), trouxe, como uma de suas muitas consequências, o abalo daquilo que a tradição sempre reputou como sagrado. E embora o autor de A barbárie use a arte para reforçar sua denúncia da ciência como "doença da vida", penso que no fundo, no fundo, é a religião (sobretudo o catolicismo) que ele deseja enaltecer. Observemos este excerto bastante significativo retirado do último capítulo,  pouco antes de seu epílogo:

"Pois a verdade concreta de todo esse movimento pode se resumir assim: o poder intelectual e espiritual tradicionalmente assumidos por aqueles que, realizando em si mesmos o grande movimento de autocrescimento da vida se atribuíam por tarefa transmiti-lo a outros em uma aula possível - esse poder foi arrancado dos padres e dos intelectuais por novos mestres, que são servidores cegos do universo da técnica e da mídia - pelos jornalistas e pelos políticos".

O trecho faz parte de uma seção na qual Henry diz haver um processo de destruição da instituição universitária pelo "mundo da técnica", o que implica na "aniquilação desta como lugar de cultura". É quase inevitável perceber nesse capítulo uma certa mágoa pessoal do autor com a Academia, mas não é nisso que desejo me concentrar. O(a) eventual leitor(a) deve ter reparado, dentro do trecho reproduzido acima, a seguinte passagem: "esse poder foi arrancado dos padres e dos intelectuais por novos mestres". A religião é mencionada sempre de modo breve em A barbárie, como sendo uma das formas de cultura excluídas pela ciência (junto com a ética e a arte, na visão do autor). Nesse trecho, contudo, o filósofo francês avança um pouco mais, concedendo aos padres (e por que não aos monges budistas, aos pastores evangélicos, aos rabinos ou aos imames?) um tipo de autoridade especial para lidar com a "cultura da vida". Isso sem mencionar a sua aversão (e sinto nela um certo odor reacionário) aos "novos mestres".

É claro que Michel Henry poderia fazer a defesa que quisesse da religião e também proclamar aos quatro ventos seu conservadorismo. Seria perfeitamente legítimo e válido. Ocorre, entretanto, em seu livro, uma escamoteação de suas reais posições político-ideológicas por meio de sua escrita quase sempre tortuosa e cheia de maneirismos - um tipo de estratégia discursiva/retórica muito empregada em certa Filosofia (e sobre a qual escreverei a respeito qualquer dia desses). Por que não assumir essas posições de modo explícito? E não venham me dizer que por não se tratar de um livro de filosofia política o autor não tinha necessidade de fazê-lo. O livro de Henry, apesar do esoterismo presente em muitas passagens, é uma obra de intervenção, portanto, política.

Na postagem anterior eu havia dito que é possível dispor de sustentação filosófica para um sem-número de convicções, atitudes, condutas ou simples opiniões. Posso apostar que diversos leitores de A barbárie, ansiosos por reabilitar a religião como "fonte da verdade" e desprezar a ciência por esta obrigá-los a se confrontar com dados e informações que contrariam seus desejos, encontraram no livro de Henry muito do que buscavam.

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Apenas para corroborar minha avaliação de que A barbárie não pretendia ser apenas um desinteressado ensaio de crítica à ciência, informo ao(à) eventual leitor(a) que o livro encontra-se numa lista reproduzida em sites conservadores (como este, que sugere uma breve bibliografia para o cristão entender um pouco o Comunismo e se proteger dele, hehehe...), ao lado de obras que exaltam a ditadura militar e autores-símbolos do reacionarismo brasileiro atual, como Rodrigo Constantino, Marco Antônio Villa e claro, Olavo de Carvalho.
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* HENRY, Michel. A barbárie. São Paulo: É Realizações, 2012 [Tradução de Luiz Paulo Rouanet]

** Chamei a atenção do(a) eventual leitor(a), na postagem anterior, para a vagueza que se percebe na escrita desse filósofo em muitos momentos.


BG de Hoje

Antes que o videoclipe se tornasse indispensável e bem antes da chegada da MTV (no tempo em que o canal tratava de música, claro), diversos artistas dentro do rock já sabiam o quanto o figurino e o visual extravagante teriam papel destacado na promoção de sua música. Pense, por exemplo, em Alice Cooper. Ou no Kiss. Com a passagem do tempo, a lista foi ficando grande: Misfits, King Diamond, Gwar (que eu sempre achei uma banda bem divertida), Marilyn Manson, Ghost, Slipknot e por aí vai... O grupo MUSHROOMHEAD segue a linha. Resta a pergunta: e quanto ao som? Bem, este blogueiro gosta bastante. Avalie por si escutando a (ótima) Sun Doesn't Rise.