terça-feira, 16 de junho de 2015

Sobre nerds, geeks e a educação científica (II)



Há algumas semanas escrevi aqui sobre o filósofo Francis Bacon e a obra Novum Organum*. Naquela ocasião tratava eu de outro assunto, mas há um fragmento daquele livro - peça-chave para a compreensão do ímpeto científico da Era Moderna - descrevendo bem um dos aspectos do tema abordado no dia 1º de junho e que será retomado (e concluído) hoje, nesta postagem.

Bacon, no aforismo XCI, afirma que,

"[...] Com efeito, não estão nas mesmas mãos o cultivo das ciências e as suas recompensas. As ciências progridem graças aos grandes engenhos, mas o estipêndios e os prêmios estão nas mãos do vulgo e dos príncipes, que, raramente, são mais que medianamente cultos. Dessa maneira, esse progresso não é apenas destituído de recompensa e reconhecimento dos homens, mas até mesmo do favor popular. Acham-se as ciências acima do alcance da maior parte dos homens e são facilmente destruídas e extintas pelos ventos da opinião vulgar. Daí não se admirar que não tenha tido curso feliz o que não costuma ser favorecido com honrarias".

Na segunda metade do śeculo XVII, o filósofo inglês observara uma paradoxal situação: fazer ciência - atividade para a qual são necessárias consideráveis doses de preparo e empenho (está "acima do alcance da maior parte dos homens") - não costuma receber os "estipêndios" e as "honrarias" que, supostamente, deveriam corresponder a um campo do saber tão essencial ao progresso humano.

Contudo, pode-se objetar que, na época de Bacon, ainda bastante influenciada pelo ideário medieval, a investigação científica não devia mesmo gozar de muito prestígio. No período contemporâneo, entretanto, teríamos outra mentalidade, certo?

Bem... Na primeira parte dessa discussão, no início do mês, citei um trecho de O mundo assombrado pelos demônios**, de Carl Sagan, no qual o autor, lamentando o desinteresse de um grande número de adolescentes (bem como de uma parcela significativa da população em geral) pela ciência, argumentou que este pode decorrer de vários fatores, inclusive da "impressão de que a ciência e a matemática não vão dar a ninguém um carro esporte". Além disso, há a imagem (negativa) associada aos que estudam empenhadamente (ou seja, os nerds)...

Nessa mesma obra, o astrônomo e astrofísico norte-americano, criticando os estereótipos associados àqueles dedicados ao aprendizado e ao trabalho na área da ciência, escreve:

"[...] Os cientistas são nerds, socialmente inoportunos, trabalham com temas incompreensíveis que nenhuma pessoa normal acharia interessante - mesmo que estivesse disposta a investir nele o tempo exigido, o que, mais uma vez, ninguém com bom senso faria. 'Vá viver', é o que se tem vontade de lhes dizer".

Por que os(as) jovens estudantes (mas não só eles(as), é bom ressaltar), hoje tão mais preocupados em serem aceitos dentro dos grupos com os quais interagem primariamente (e isso significa vestir a roupa aprovada pelo grupo, ter a aparência desejada pelo grupo, conversar somente sobre os assuntos estabelecidos pelo grupo), "perderiam" seu tempo com cálculos complicados ou com a observação e análise de fenômenos tão pouco fenomenais, de acordo com certa axiologia preponderante nas nossas atuais sociedades de consumo? Um verdadeiro nerd (ainda de acordo com esse conjunto de valores) dificilmente poderá ser alguém cativante, sedutor ou popular, porque, "como a imagem do cientista louco à qual está intimamente associado, o estereótipo do cientista nerd está disseminado em nossa sociedade", diz Sagan. E essa imagem pode, em última instância, conduzir a um resultado problemático: "se, por qualquer razão, as pessoas não gostam do cientista estereotipado, é menos provável que deem apoio à ciência". Isso é válido, penso eu, tanto para os EUA quanto para o Brasil.

E o que dizer da nossa educação, do nosso ensino? Recentemente, um levantamento feito pela OCDE coloca o Brasil na 60ª colocação num ranking com 76 nações, relativo a testes para medir a capacidade dos estudantes em matemática e ciência. No ano passado, foi divulgado um Índice de Letramento Científico dos brasileiros (iniciativa semelhante ao Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional - INAF - que mede habilidades e práticas em leitura, escrita e matemática) e o resultado mostrou que "apenas 5% do total se mostraram de fato proficientes em ciência"***. Além disso, entidades representativas dos trabalhadores em educação vêm alertando, nos últimos dez anos pelo menos, para um "apagão" no ensino médio (possibilidade que chegou a ser admitida pelo próprio MEC anos atrás). Como se daria esse "apagão"? 1) Alguns cursos de licenciatura estão estagnados e não são demandados por muitos postulantes ao ensino superior; 2) como consequência, menos professores(as) dessas disciplinas são formados(as); 3) disso tudo resulta um déficit no número de profissionais de ensino especializados disponíveis no mercado de trabalho; 4)com o progressivo aumento de matrículas no ensino médio, muitos estudantes dessa etapa da educação básica não terão aulas com alguém devidamente habilitado. E que cursos de licenciatura estão sendo mais afetados? "Embora a pedagogia ainda esteja entre os três cursos mais procurados no ensino superior, esse interesse pela educação não se reflete em áreas como física, química e matemática", de acordo com artigo assinado pelo SEMESP (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Ensino Superior)****. Isso sem falar que só 10,6% das escolas brasileiras possuem laboratório de ciências...

Este blogueiro mesmo é o resultado do descaso com que a educação científica é conduzida no Brasil. É desprezível meu aprendizado em matemática, química, física e biologia, fato que me trouxe grande prejuízo. Mas nem por isso deixo de perceber a tremenda importância da educação científica, principalmente para além dos muros escolares.

Carl Sagan, em O mundo assombrado pelos demônios, é bastante sensato ao afirmar que

"Não há uma solução única para o problema do analfabetismo em ciência - ou em matemática, história, inglês, geografia e muitos dos outros campos de que nossa sociedade mais necessita. As responsabilidades são amplamente partilhadas - os pais, o eleitorado, os conselhos das escolas locais, a mídia, os professores, os administradores, os governos federal, estadual e local, além dos próprios estudantes, é claro".

Torço para que os(as) alunos(as) mais estudiosos(as) e aplicados(as) não se importem com os possíveis rótulos de nerds a lhes ser impingidos e, por esse motivo, desanimem. O mundo precisa - e muito - dos nerds.


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A postagem já está bem mais extensa do que o habitual, mas peço um pouco mais de paciência ao(à) eventual leitor(a), pois há um último ponto a discutir.

A imagem no alto deste texto indica as características que distinguem um geek de um nerd. É bastante comum as pessoas tomarem um pelo outro, como se ambos os tipos sociais fossem os mesmos. Não penso assim. Mas voltemos à ilustração. Segundo minha interpretação, o desenho dá a entender que o geek é, digamos, mais cool, sobretudo em seu look. Importante notar, porém, que o personagem do nerd carrega um livro na mão, ao invés de um gadget (no caso um smartphone, provavelmente), além de ser alguém que tem "extremo interesse ou fascinação por assuntos acadêmicos". E acho que aí está a diferença fundamental entre os dois.

Geeks, em geral, são muito inteligentes, mas sempre me pareceram, com frequência, estar a reboque do que a indústria do entretenimento e as marcas mais famosas do mundo tecnológico, consumidas como grifes, oferecem. Acho que há pouca disposição intelectual e esparsa consciência política no ambiente geek.

Por outro lado, considero os nerds mais comprometidos com o ethos do aprimoramento intelectual, bem como acho-os menos indiferentes aos processos políticos.

Diria então que os geeks são, em relação à intelectualização, mais soft, enquanto os nerds seriam mais hard.
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* BACON, Francis. Novum Organum ou Verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [Tradução e notas de José Aluysio Reis de Andrade] (Coleção Os pensadores)

** SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 [Tradução de Rosaura Eichemberg]

*** GARCIA, Marcelo. Brasileiro: "analfabeto" científico? Ciéncia Hoje. 18 ago. 2014. Disponível em <http://cienciahoje.uol.com.br/noticias/2014/08/brasileiro-analfabeto-cientifico> Acesso em 14/06/15

**** Apagão docente. Disponível em <http://educacaoeuapoio.com.br/2014/02/25/apagao-docente/> Acesso em 14/06/15

BG de Hoje

Uma das melhores bandas de rock de todos os tempos (e também uma das bandas mais adoradas por nerds mundo afora): R.E M., Imitation of Life. E, a propósito, acho este clipe sensacional.