apodrecer no poema
que o cadáver de minhas tardes
não venha feder em tua manhã feliz [...]"
Ferreira Gullar, no poema Arte poética
As eleições do ano passado, entre outras coisas, serviram para desvelar, com um pouquinho mais de nitidez, as muitas clivagens que caracterizam este imenso poço de desigualdade econômica e racial - bem como terreno de conflitos sociais decorrentes dessa condição - chamado Brasil. Tudo isso em meio às tentativas, aqui e acolá, de infundir (e difundir) a impostura segundo a qual formamos todos uma sociedade harmônica e cordial.
Infelizmente, um dos efeitos colaterais dessas cisões emersas na superfície do debate público foi a reaparição - em nova roupagem - do patrulhamento ideológico. Se fulano apoiou a candidata X, ele não passa de um "comunistazinho safado"; se, por outro lado, beltrana declarou voto no candidato Y, só pode ser mais uma "reaça raivosa". Nos dois casos, ambos se tornarão personae non gratae, independentemente de qualquer talento ou obra relevante que por ventura apresentem. Este blogueiro inclusive admite não ter conseguido, durante a campanha, escapar do furor de sair carimbando uns e outros com essa rotulação simplista; foi necessário um posterior exercício de reflexão para não dimensionar todo o trabalho de determinados(as) artistas somente pela escolha ocasional feita por eles(as) numa disputa eleitoral.
O caso do poeta Ferreira Gullar, entretanto, merece um enfoque mais detido. O autor maranhense vem atacando o PT e sua principal liderança, o ex-presidente Lula, desde o primeiro mandato deste. Portanto, bem antes da última eleição. Até aí, nada de mais. Qualquer um tem o direito (e, às vezes, até o dever) de apontar os erros cometidos por qualquer partido, por qualquer administração. Entretanto, falta tutano às opiniões de Gullar nesse terreno. Elas não fazem menção, por exemplo, ao aumento escandaloso da concentração de renda nos últimos 12 anos (distanciando ainda mais ricos de pobres); ou às tímidas ações na área da reforma agrária e na demarcação das terras indígenas; ou ainda à incapacidade do governo, na propícia ocasião em que sua popularidade estava em alta, de promover a correção das distorções existentes na propriedade e controle do setor midiático brasileiro. Reivindicações típicas de esquerda, convém ressaltar. Digo isso porque o escritor, ao que parece, já se identificou com esse ideário, mesmo que parcialmente: foi filiado ao Partidão, perseguido e exilado pela ditadura militar. E sua produção poética (pelo menos durante certo período) demonstrava uma visão de mundo explicitamente anticapitalista.
Mas o Ferreira Gullar de hoje nos dá a entender que aderiu de vez à teoria do "fim da história"* e, portanto, nada nos resta a não ser a resignação. Se seus textos publicados na imprensa - estou me referindo à coluna do autor na Folha de S. Paulo - exibissem um tom de desencantado fatalismo, acharia até apreciável. Porém, o leitor só encontrará lá os mesmos lugares-comuns da crítica superficial de direita, com seu moralismo de conveniência, acrescido da denúncia mal informada do "assistencialismo" estatal e sua "farra" de bolsas e cotas.
Nesse aspecto, Ferreira Gullar é idêntico a Arnaldo Jabor: ambos deixaram de lado a atividade artística para assinarem crônicas políticas medíocres. Com uma diferença: Jabor foi um cineasta comum, enquanto Gullar está entre os grandes poetas brasileiros da segunda metade do século XX. Quero me concentrar nesse legado a partir de agora.
Num ensaio - justificadamente - laudatório**, o crítico literário Antonio Carlos Secchin considera que a poesia de Ferreira Gullar percorreu ao longo do tempo "várias e às vezes antagônicas direções, sempre abertas ao risco, numa vertiginosa dialética de teses e antíteses que jamais se acomodou em qualquer síntese". Fez poesia de vanguarda, hermética, mas, a partir dos anos 1960, mergulhou de cabeça na cultura popular, escrevendo cordel. Nessa mesma década, aliás, o verso do poeta se converte em discurso engajado, sem abandonar, contudo, "o veio lírico-existencial", como assinala Secchin. Muitos poemas dessa época foram reunidos no volume Dentro da noite veloz (e já discuti um deles - Pela rua - aqui). Em 1976, exilado na Argentina, publica aquela que é considerada sua obra-prima: O poema sujo, longo e difícil "acerto de contas" do autor consigo mesmo. Os últimos resquícios inegavelmente políticos na poesia de Ferreira Gullar estão na reunião de textos apresentada em 1980: Na vertigem do dia (e também já discuti um deles - Bicho urbano - aqui).
O poeta, a essa altura do campeonato, parece cansado, desiludido:
E completa, ao final da mesma composição:
Ninguém parece dar mais atenção ao poeta. Noutro momento (Poema obsceno), enquanto todos fazem a festa, ele soca "este pilão/este surdo poema que não toca no rádio/que o povo não cantará". Afinal, quem hoje em dia ouve os poetas? Na batalha comunicacional e cultural diária, o sussurro da poesia mal pode ser escutado. Ironicamente, muitos dos que hoje admiram as insossas crônicas dominicais de Gullar talvez nunca tenham lido nenhum de seus belíssimos poemas...
Resta saber o quanto coincide a identidade do cidadão Ferreira Gullar com o poeta que falava nesses poemas, o quanto se assemelhava o indivíduo com o eu lírico ali inscrito. Uma discussão que nos remeteria a uma recorrente questão literária: o quanto finge (e cria) um artista no ato próprio de criar? Será o poeta obrigado a sempre ser absolutamente sincero naquilo que escolhe colocar num poema? Tal conversa fica para outra oportunidade.
E gostaria de encerrar falando do texto que abre Na vertigem do dia. O poeta nele se vale de imagens de desgraça, repugnância e dor para mostrar que não há nada de especial em sofrer: o sofrimento é condição elementar de todos. A alegria, portanto, é uma rara preciosidade.
Por ser um poema de que gosto muito, reproduzo-o na íntegra:
Mas o Ferreira Gullar de hoje nos dá a entender que aderiu de vez à teoria do "fim da história"* e, portanto, nada nos resta a não ser a resignação. Se seus textos publicados na imprensa - estou me referindo à coluna do autor na Folha de S. Paulo - exibissem um tom de desencantado fatalismo, acharia até apreciável. Porém, o leitor só encontrará lá os mesmos lugares-comuns da crítica superficial de direita, com seu moralismo de conveniência, acrescido da denúncia mal informada do "assistencialismo" estatal e sua "farra" de bolsas e cotas.
Nesse aspecto, Ferreira Gullar é idêntico a Arnaldo Jabor: ambos deixaram de lado a atividade artística para assinarem crônicas políticas medíocres. Com uma diferença: Jabor foi um cineasta comum, enquanto Gullar está entre os grandes poetas brasileiros da segunda metade do século XX. Quero me concentrar nesse legado a partir de agora.
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Num ensaio - justificadamente - laudatório**, o crítico literário Antonio Carlos Secchin considera que a poesia de Ferreira Gullar percorreu ao longo do tempo "várias e às vezes antagônicas direções, sempre abertas ao risco, numa vertiginosa dialética de teses e antíteses que jamais se acomodou em qualquer síntese". Fez poesia de vanguarda, hermética, mas, a partir dos anos 1960, mergulhou de cabeça na cultura popular, escrevendo cordel. Nessa mesma década, aliás, o verso do poeta se converte em discurso engajado, sem abandonar, contudo, "o veio lírico-existencial", como assinala Secchin. Muitos poemas dessa época foram reunidos no volume Dentro da noite veloz (e já discuti um deles - Pela rua - aqui). Em 1976, exilado na Argentina, publica aquela que é considerada sua obra-prima: O poema sujo, longo e difícil "acerto de contas" do autor consigo mesmo. Os últimos resquícios inegavelmente políticos na poesia de Ferreira Gullar estão na reunião de textos apresentada em 1980: Na vertigem do dia (e também já discuti um deles - Bicho urbano - aqui).
O poeta, a essa altura do campeonato, parece cansado, desiludido:
"Para uma vida de merda
nasci em 1930
na Rua dos Prazeres"
(do poema Primeiros anos***)
E completa, ao final da mesma composição:
"Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter uma arma na mão"
Ninguém parece dar mais atenção ao poeta. Noutro momento (Poema obsceno), enquanto todos fazem a festa, ele soca "este pilão/este surdo poema que não toca no rádio/que o povo não cantará". Afinal, quem hoje em dia ouve os poetas? Na batalha comunicacional e cultural diária, o sussurro da poesia mal pode ser escutado. Ironicamente, muitos dos que hoje admiram as insossas crônicas dominicais de Gullar talvez nunca tenham lido nenhum de seus belíssimos poemas...
Resta saber o quanto coincide a identidade do cidadão Ferreira Gullar com o poeta que falava nesses poemas, o quanto se assemelhava o indivíduo com o eu lírico ali inscrito. Uma discussão que nos remeteria a uma recorrente questão literária: o quanto finge (e cria) um artista no ato próprio de criar? Será o poeta obrigado a sempre ser absolutamente sincero naquilo que escolhe colocar num poema? Tal conversa fica para outra oportunidade.
E gostaria de encerrar falando do texto que abre Na vertigem do dia. O poeta nele se vale de imagens de desgraça, repugnância e dor para mostrar que não há nada de especial em sofrer: o sofrimento é condição elementar de todos. A alegria, portanto, é uma rara preciosidade.
Por ser um poema de que gosto muito, reproduzo-o na íntegra:
A ALEGRIA
O sofrimento não tem
nenhum valor.
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).
Sofres tu, sofre
um cachorro ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?
A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
querem estar contentes.
__________
* "O Fim da História é uma teoria iniciada no século XIX por Georg Wilhelm Friedrich Hegel e posteriormente retomada, no último quarto do século XX, no contexto da crise da historiografia e das Ciências Sociais no geral. Essa teoria sustenta, como o nome sugere, o fim dos processos históricos caracterizados como processos de mudança. Para Hegel isso iria acontecer no momento em que a humanidade atingisse o equilíbrio, representado, de acordo com ele, pela ascensão do liberalismo e da igualdade jurídica, mas com prazo indeterminado para ocorrer. Retomada ao final do século XX, essa teoria já adquire caráter de situação ocorrida pois, de acordo com os seus pensadores, a História terminou no episódio da Queda do Muro de Berlim. Naquele momento, os antagonismos teriam terminado pelo fato de, a partir de então, haver apenas uma única potência - os Estados Unidos da América - e, consequentemente, uma total estabilidade. A ideia ressurgiu em um artigo, publicado em fins de 1989 com o título de O fim da história e, posteriormente, em 1992, com a obra O fim da história e o último homem, ambos do estadunidense Francis Fukuyama". Extraído da Wikipedia, disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Fim_da_hist%C3%B3ria> Acesso em 22/06/15
** SECCHIN, Antonio Carlos. Um Nobel para Gullar. In: _________. Escritos sobre poesia & alguma ficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. p. 205-218. (Este texto foi apresentado na Suécia como parte da candidatura de Ferreira Gullar ao prêmio Nobel. Daí seu viés enaltecedor).
*** GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 16 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. Todos os poemas do autor citados nesta postagem foram encontrados nessa edição.
No último domingo assisti a uma apresentação gratuita do grupo BERIMBROWN. Com nova formação, a banda belo-horizontina pretende retomar seu trabalho. Torço muito pra que consigam alcançar todo o sucesso que seu congopop consciente e dançante merece atingir. Abaixo, clipe de Black broder - 20 do 11, faixa do disco Aglomerado (2002).
BG de Hoje
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