[Postagem atualizada em 13/09/2022]
Figura controversa (não obstante, pouco proeminente) na história da Filosofia, o madrilenho José Ortega y Gasset ganhou opositores aguerridos. Por exemplo: o teórico marxista György Lukács dizia (de forma exagerada, a meu ver) que as palavras de Hitler foram antes enunciadas, "num plano mais elevado", por pensadores como Nietzsche, Bergson e o filósofo espanhol (para ser justo, ele cita também Spengler; e no caso do autor de O declínio do Ocidente, concordo com a acusação de Lukács). Noutra frente, os defensores do multiculturalismo manifestam horror ao pensamento de Ortega Y Gasset. O elitismo que professa e sua obstinada defesa do individualismo deixam desconfortável até quem se dispõe (como este blogueiro) a compreender melhor seus pontos de vista. A esse respeito, aliás, vale dizer que Gasset não usa meias palavras ao admitir que*
Num mundo em que pelo menos algumas nações buscam ser mais democráticas, com ações governamentais e até na área empresarial (por mais raro que seja) visando mitigar a exclusão, esse posicionamento soa como afronta, mesmo com a ressalva do espanhol: "Que fique bem entendido que falo da sociedade e não do Estado".
Então por que perder tempo com um sujeito tão conservador?
Comecemos por tentar estabelecer, ainda que provisoriamente, dois conceitos centrais - massa e homem-massa - dentro do livro a ser discutido aqui: A rebelião das massas, provavelmente o mais conhecido trabalho do autor.
Como se pode depreender, a massa possui um componente muito evidente em nossa era - a quantidade - mas Ortega y Gasset acrescenta um decisivo elemento de natureza qualitativa:
A massa, portanto, não é definida em termos de classe social: estabelece uma tipologia de seres humanos e descreve, de acordo com Gasset, o comportamento próprio desses sujeitos, hoje majoritários em nossas sociedades. São os homens-massa.
Entre outras características, o homem-massa não é capaz de autocrítica. Por isso vive contente. Ou, pelo menos, aparenta estar muito satisfeito consigo mesmo, ainda que o mundo à sua volta esteja indo para a latrina. Na opinião do pensador espanhol (da qual, nesse ponto específico, partilho), essa satisfação é estranha e perniciosa. De onde vem ela?
Continuo na próxima postagem.
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* ORTEGA y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [Tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro]
"[...] notoriamente sustento uma interpretação radicalmente aristocrática da história. É radical, porque nunca disse que a sociedade humana deve ser aristocrática, mas muito mais do que isso. Disse e continuo acreditando, cada dia com mais convicção, que a sociedade humana é sempre aristocrática, queira ou não, por sua própria essência, a ponto de ser sociedade na medida em que é aristocrática, e deixa de sê-lo na medida em que se desaristocratiza".
Num mundo em que pelo menos algumas nações buscam ser mais democráticas, com ações governamentais e até na área empresarial (por mais raro que seja) visando mitigar a exclusão, esse posicionamento soa como afronta, mesmo com a ressalva do espanhol: "Que fique bem entendido que falo da sociedade e não do Estado".
Então por que perder tempo com um sujeito tão conservador?
Em alguns casos, talvez não se deva descartar tudo o que determinado filósofo tem a dizer. Pensando em José Ortega y Gasset, posso afirmar que suas reflexões no campo da política, além de reacionárias, não têm relevância alguma. Ao contrário, porém, de suas considerações voltadas para a ética (sem mencionar sua filosofia da educação); sobre isso vale a pena falar.
Comecemos por tentar estabelecer, ainda que provisoriamente, dois conceitos centrais - massa e homem-massa - dentro do livro a ser discutido aqui: A rebelião das massas, provavelmente o mais conhecido trabalho do autor.
Como se pode depreender, a massa possui um componente muito evidente em nossa era - a quantidade - mas Ortega y Gasset acrescenta um decisivo elemento de natureza qualitativa:
"O conceito de multidão é quantitativo e visual. Se o traduzirmos para a terminologia sociológica, sem alterá-lo, encontraremos a ideia de massa social. A sociedade é sempre uma unidade dinâmica de dois fatores: minorias e massas. As minorias são indivíduos ou grupos de indivíduos especialmente qualificados. Portanto, não se deve entender por massas, nem apenas, nem principalmente, 'as massas operárias'. Massa é 'o homem médio'. Desse modo converte-se o que era apenas quantidade - a multidão - em uma determinação qualitativa; é a qualidade comum, é o monstrengo social, é o homem enquanto não diferenciado dos outros homens, mas que representa um tipo genérico [...] A rigor, a massa pode definir-se como fato psicológico, sem necessidade de esperar o aparecimento dos indivíduos em aglomeração. Diante de uma só pessoa, podemos saber se é massa ou não. Massa é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor - bom ou mau - por razões especiais, mas que se sente 'como todo mundo' e, certamente não se angustia com isso, sente-se bem por ser idêntico aos demais".
A massa, portanto, não é definida em termos de classe social: estabelece uma tipologia de seres humanos e descreve, de acordo com Gasset, o comportamento próprio desses sujeitos, hoje majoritários em nossas sociedades. São os homens-massa.
"O homem-massa é um homem cuja vida carece de projeto, segue à deriva. Por isso nada constrói, embora suas possibilidades, seus poderes sejam enormes". Esse indivíduo (sendo pobre ou rico, não importa aqui) está "satisfeito do jeito que é. Ingenuamente, sem ser arrogante, como a coisa mais natural do mundo, tenderá a afirmar e a qualificar como bom tudo o que tem em si: opiniões, apetites, preferências ou gostos. Por que não, se [...] nada nem ninguém o força a tomar consciência de que é um homem de segunda classe, limitadíssimo, incapaz de criar ou conservar a própria organização que dá à sua vida essa amplitude e esse contentamento, nos quais se apoia tal afirmação de si próprio?".
Entre outras características, o homem-massa não é capaz de autocrítica. Por isso vive contente. Ou, pelo menos, aparenta estar muito satisfeito consigo mesmo, ainda que o mundo à sua volta esteja indo para a latrina. Na opinião do pensador espanhol (da qual, nesse ponto específico, partilho), essa satisfação é estranha e perniciosa. De onde vem ela?
Continuo na próxima postagem.
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* ORTEGA y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [Tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro]
BG de Hoje
Ao pensar no BG, fui atrás de algo que fosse politicamente bem distinto do conservadorismo de José Ortega Y Gasset: RAGE AGAINST THE MACHINE e a canção Take The Power Back, cuja letra parece sob medida para se contrapor à visão eurocêntrica do filósofo espanhol. P. S. Como esses caras do RATM sabem juntar funk com pauleira...