segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Velhice


"A velha era nada. E olhava para o ar como se olha para Deus. Ela era feita de Deus. Isto é: tudo ou nada".

Do conto A partida do trem - Clarice Lispector


Quando completei 41 anos não pude deixar de recordar aqueles famosos versos de Carlos Drummond de Andrade*:

"Há muito suspeitei o velho em mim
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la".

Para ser franco, desde que passei dos trinta, não mais me incomodo com esse velho dentro de mim; passei a aceitá-lo resignadamente. A "mão pesada" do tempo - lembrando agora outros versos daquele maravilhoso poema -, trazendo com ela as "rugas, [a ausência de] dentes, calva", não chegou a me surpreender quando o corpo, além da alma precocemente idosa, também começou a envelhecer. Caducidade, cá estou.

Mas não é sobre meu envelhecimento que desejo escrever hoje. Dias atrás estava lendo Onde estivestes de noite**, de Clarice Lispector, e chamou-me a atenção como se fala da velhice nalgumas das narrativas ali presentes. Irei me concentrar na primeira delas apenas.

Em A procura de uma dignidade, a personagem central (a Sra. Jorge B. Xavier) tem quase 70 anos e percebe que já "era tarde demais para ter um destino". Tem fantasias eróticas com Roberto Carlos (na época, um jovem ídolo televisivo). Pensando nelas,

"Examinou-se ao espelho para ver se o rosto se tornaria bestial sob a influência de seus sentimentos. Mas era um rosto quieto que já deixara há muito de representar o que sentia. Aliás, seu rosto nunca expressara senão boa educação. E agora era apenas a máscara de uma mulher de 70 anos. Então sua cara levemente maquilada pareceu-lhe a de um palhaço. A senhora forçou sem vontade um sorriso para ver se melhorava. Não melhorou".

Achando-se, externamente, "seca como um figo seco", não se considerava, contudo, "esturricada" por dentro: "pelo contrário" - e a comparação da narradora é amarga, mas extraordinária do ponto de vista literário - "parecia por dentro uma gengiva úmida, mole assim como gengiva desdentada".

Aos 70 anos, não perdera o desejo sexual. Mas como dar vazão a ele?

"Por que as outras velhas nunca lhe tinham avisado que até o fim isso podia acontecer? Nos homens velhos bem vira olhares lúbricos. Mas nas velhas não. Fora de estação. E ela viva como se ainda fosse alguém, ela que não era ninguém"

Em determinado momento, a Sra. Jorge B. Xavier se pergunta: "por acaso era nojento beijar boca de velha?". Ela "não estava habituada a ter quase 70 anos, faltava-lhe prática e não tinha a menor experiência". Mas, afinal de contas, quem está preparado para ser um velho? Essa parece ser uma das questões que emergem desse conto.

A velhice, tal como a pobreza, é caracterizada por renúncias; por pessoas, ações e coisas  das quais temos que desistir. Tanto a velhice quanto a pobreza são tristes. E muitos, como eu, estão condenados a ambas. Irremediavelmente, nos dois casos.
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* Estão no poema Versos à boca da noite

** LISPECTOR, Clarice. Onde estivestes de noite. 8 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997

BG de Hoje

Canção pra viajar (nos diversos sentidos desse verbo): SONIC YOUTH: Stones

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Lei 10.639 completa 10 anos. O que dizer?


Culminância de um intenso e contínuo empenho de lideranças negras, participantes ou não do Movimento Negro organizado - a lei 10.639 (janeiro de 2003) foi a primeira a ser promulgada no governo Lula, após aprovação no Congresso (sua redação ficou a cargo dos deputados Esther Grossi e Ben-Hur Ferreira). Vale lembrar que pouco menos de um ano antes, já se havia estabelecido o Programa Nacional de Ações Afirmativas. Nesses dez anos de vigência da lei, podemos dizer que houve avanços contundentes, dentro das escolas, em relação à abordagem da questão etnicorracial e da afrodescendência? Nesta postagem, ao responder a questão, destacarei matéria especial publicada na edição deste mês da revista Raça Brasil*. E a publicação "concluiu que a luta contra a discriminação ainda esbarra na intolerância das pessoas".

Antes da matéria, porém, gostaria de incluir aqui o posicionamento de Edimilson de Almeida Pereira** porque expressa, a meu ver, a defesa que muitos (inclusive este blogueiro) fazem da validade e da necessidade de uma lei como essa:

"A inclusão de temas referentes às culturas africanas e afro-brasileiras nos currículos escolares representa, em primeira instância, o estabelecimento de políticas afirmativas que permitem à sociedade brasileira reconhecer sua dívida para com os africanos e seus descendentes. Contudo, as disposições da Lei 10.639 vão além desse aspecto, ou seja, na medida em que ela se destina a promover a justiça social, demonstra que a sociedade e o Estado brasileiros iniciaram - ainda que com atraso - uma revisão profunda dos valores que elegeram como legitimadores de suas estruturas".

Os currículos escolares ainda são a "cartilha ideológica" que ocasiona "situações nas quais os afrodescendentes são constrangidos em função de sua procedência sociocultural". Ainda assim, prossegue Pereira, "a escola e os currículos apresentam instâncias propícias aos debates e às ações que poderão levar à superação das referidas situações de discriminação". Daí a importância da lei.

Voltemos agora à matéria da revista Raça Brasil. Nesta, há uma profusão de gráficos com dados estatísticos oriundos da PNAD (Pesquisa nacional por amostra de domicílios) e do Censo, ambos levantamentos feitos pelo IBGE. E o que os dados mostram?

A rede pública de ensino (básico) - na qual atua este blogueiro, a propósito - tem maior número de estudantes negros. Se no ensino fundamental a taxa de frequência entre brancos e negros é quase a mesma, ela cai significativamente no ensino médio (60% para brancos e 45,3% para negros) e, no ensino superior, a diferença é gritante (21% para brancos e 9,1% para negros). Ainda sobre o ensino superior: em 2005, 85% dos estudantes que frequentavam a pós-graduação eram brancos, enquanto apenas 15% eram negros, pardos ou indígenas.

Os dados mostram que a escola pública fundamental tem um alunado majoritariamente negro, mas nas passagens de um nível de ensino para outro, a frequência dos negros cai bastante. Temos ou não um sistema educacional excludente?

O que dizer sobre os 10 anos da Lei 10.639/03? A Lei parece ainda não ter "pegado", como se costuma dizer neste país. Tenho observado que a sua aplicação não foi encampada pelas unidades escolares como um componente imprescindível de seu projeto político-pedagógico. Para que o conteúdo da lei faça parte do cotidiano da escola, na maioria das vezes, há a dependência de que um ou mais indivíduos, pessoalmente envolvidos com a questão etnicorracial (por serem negros ou por outro motivo), mobilizem-se, tentando atrair outros profissionais ou membros da comunidade escolar. Quando não se conta com um indivíduo ou grupos de indivíduos assim, muitas escolas simplesmente deixam de cumprir a lei.

A matéria da revista Raça Brasil lembra que "o modelo atual de educação produziu uma sociedade que em 2006 tinha 74,5% de todos os cargos de gerência e direção ocupados por pessoas brancas, de acordo com a PNAD daquele ano". Para buscar corrigir desigualdades como essa é necessário fazer com que as escolas cumpram a Lei 10.639/03.

* Presença do negro na educação. Raça Brasil, São Paulo, ano XVII, n. 182, set. 2013. p. 36-45 [a matéria é assinada por Renato Bazan]

** PEREIRA, Edimilson de Almeida. Malungos na escola: questões sobre culturas afrodescendentes e educação. São Paulo: Paulinas, 2007.

BG de Hoje

Já me vali algumas vezes de canções para discutir aspectos da questão etnicorracial nas escolas em que trabalhei. Uma delas, de que gosto muito é  Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, d' O RAPPA.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Quem está imune à indústria cultural? (III)


Voltemos ao ensaio A canção de consumo. Umberto Eco chama atenção para o desconhecimento de boa parte dos ouvintes, sobretudo adolescentes e jovens, de que a indústria cultural (no caso, musical) modela, de forma planejada, o gosto coletivo, chegando até a promover determinados tipos de comportamento e "atitudes", para além da dimensão propriamente artística/estética:

"[...] quando os jovens pensam escolher os modelos baseados em seu comportamento individual, não se dão conta de quanto agora o comportamento individual se articula com base na determinação contínua e sucessiva dos modelos. Do outro [lado da questão], está o fato de que, na sociedade em que vivem, esses adolescentes não encontram nenhuma outra fonte de modelos; ou pelo menos, nenhuma tão enérgica e imperativa".

E, de certo modo, o produto da indústria musical acaba satisfazendo "algumas tendências autênticas dos grupos aos quais se dirige".

Recuperando o prefácio de Apocalípticos e integrados*, a indústria cultural é "um sistema de condicionamentos", a que todos na atualidade estamos sujeitos (tanto os menos quanto os mais ingênuos).

Quantos fãs de rock se deram (ou se dão) conta de que ao vestir determinadas roupas, cortar o cabelo de tal modo ou repetir certas gírias, não estão apenas reproduzindo um modelo erigido pela indústria cultural (refiro-me ao rock, mas o mesmo vale para outros subgêneros da música pop)? E pensando num campo de produção artística mais familiar para mim, quantos leitores de 50 tons de cinza ou A guerra dos tronos, por exemplo, se dão conta de que sua disposição de leitura, nesse caso, foi motivada por uma eficiente estratégia de publicidade/marketing da indústria editorial?

Tudo isso não quer dizer que devamos expulsar de nossas vidas (o que seria impossível, aliás) a cultura de massa (melhor dizendo, os mass media ou meios de massa, como prefere o pensador italiano). Necessitamos compreender que a "civilização de massa" é uma nova "ordem antropológica [...], válida para indicar um preciso contexto histórico (aquele em que vivemos), onde todos os fenômenos comunicacionais - desde as propostas para o divertimento evasivo até os apelos à interiorização - surgem dialeticamente conexos [...]"

Nossas sociedades urbanizadas de hoje são sociedades de massa. Essa é nossa realidade histórica. Nesse contexto, "todos os que pertencem à comunidade se tornam, em diferentes medidas, consumidores de uma produção intensiva de mensagens a jato contínuo, elaboradas industrialmente em série, e transmitidas segundo os canais comerciais de um consumo regido pelas leis de oferta e da procura".

Em tal situação, é improdutiva a postura aristocrática do apocalíptico (remanescente, talvez, de uma aversão ao acesso crescente da população pobre aos bens culturais). Mas também é censurável o entusiasmo acrítico dos integrados diante dos produtos dos mass media.

Ninguém mais está imune à indústria cultural. Para o "mal" ou para o "bem".
 
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* ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2001 [Tradução de Pérola de Carvalho]

BG de Hoje

Essa canção já teve gravações marcantes (Santa Esmeralda e, principalmente, a original com Nina Simone). Mas ainda prefiro THE ANIMALS: Don't let me be misunderstood.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Quem está imune à indústria cultural? (II)



No ensaio A canção de consumo (incluído em Apocalípticos e integrados*, livro de que estamos tratando nesta série de postagens), Umberto Eco irá criticar a chamada música "gastronômica" - que seria aquela destinada, supostamente, apenas para servir como entretenimento, evasão, jogo e consolo. Vale esclarecer que o texto em questão serviu de prefácio para outro livro (de outros autores), publicado em 1964, no qual a indústria musical - no contexto italiano - era um dos temas abordados. Apesar dessas circunstâncias, os pontos ali levantados não destoam do atual cenário da cultura de massa, inclusive no Brasil. A propósito, antes de prosseguir, é bom deixar claro que ao falar de massa, o pensador italiano (e, junto com ele, também este blogueiro) não "tira o corpo fora", como se fosse um ser não-contaminado, culturalmente puro: a massa, "em muitos momentos do dia, cada um de nós é, sem exceção", escreve ele.

Umberto Eco considera que a canção de consumo "segue uma lógica das fórmulas "; um produto feito de acordo com a lei fundamental do mercado - oferta e procura. Se determinada fórmula dá certo (vende), será repetida enquanto for rentável:

"[...] onde a fórmula substitui a forma só se alcança êxito decalcando os parâmetros [estabelecidos pelos produtos musicais anteriores] e uma das características do produto de consumo é que ele nos diverte não por revelar-nos algo de novo, mas por repetir-nos o que já sabíamos, o que esperávamos ansiosamente ouvir repetir e que é a única coisa que nos diverte..."

A música de consumo - doravante, vou designá-la de música pop** - não tende à experimentação. E isso vale tanto para o rock (gênero de preferência deste blogueiro), quanto para o (pomposamente) chamado samba "de raiz" ou a axé music.

Assim sendo, o que pode ser feito para que a música pop ganhe relevância (e valoração) artística? Uma solução é delineada naquilo que Umberto Eco chama de "canção 'diferente' " (o próprio autor coloca o adjetivo entre aspas em seu ensaio). Em que consiste essa nova forma de fazer música? Pra começar, opor-se às canções gastronômicas,

"[...] não procurando atenazar  a atenção do ouvinte mediante o fascínio de um ritmo primitivo, mas sim através da presença envolvente de conceitos e apelos inusitados. O resultado foi o de fornecer uma canção que a pessoa se concentra para escutar. Habitualmente, a canção de consumo é usada como fundo musical enquanto se faz outra coisa ; a canção 'diferente' requer respeito e interesse".

Se fosse para pensar num exemplo dentro do atual universo musical brasileiro, diria que a canção "diferente" vem daqueles artistas que vinculam seu trabalho ao cânone da MPB (de forma reverente ou iconoclasta, não importa agora), ao passo que a música gastronômica seria representada pelo sertanejo universitário e pelo "pancadão" carioca.

O ensaio A música de consumo é curto, mas suscita discussões longas. Por isso retornarei a ele na próxima (e última) postagem desta série.

* ECO, Umberto. A canção de consumo. In: _______. Apocalípticos e integrados. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 295-314 [Tradução de Pérola de Carvalho]

** ver nota de rodapé da postagem anterior da série

BG de Hoje

Direto ao ponto: MAURÍCIO TIZUMBA, Canção pra tocar no rádio.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Quem está imune à indústria cultural? (I)


É bastante corriqueiro encontrar aficionados por música pop* que execram determinados artistas e suas obras, alegando faltar a estas (e a estes) qualquer valor artístico/estético, sendo meramente comerciais. Fãs de rock, por exemplo (como este blogueiro), costumam agir assim. Isso é bastante curioso (para não dizer incoerente) pois poucas manifestações culturais foram tão comerciais e "fabricadas" quanto o rock, sobretudo a partir da década de 1960, inclusive com ações publicitárias em nível planetário. Tudo fazendo parte do modus operandi da indústria musical. E justamente por isso, o rock já foi (e talvez ainda seja) visto como a "antimúsica".

Pensar sobre isso, entre outras coisas, me lembrou Apocalípticos e integrados**, que reli recentemente. Julgo que os pontos de vista expostos nesse trabalho de Umberto Eco - acerca da indústria cultural e da cultura de massa - ainda são válidos, mesmo que alguns dos ensaios ali incluídos tenham sido elaborados há mais de 50 anos.

Voltarei a falar de música pop quando tratar especificamente do texto A canção de consumo. No momento, prefiro me deter no ensaio que abre o livro: Cultura de massa e "níveis" de cultura, . Após elencar os argumentos daqueles que atacam a cultura de massa (isto é, os apocalípticos) e os daqueles que fazem a apologia desta (os integrados), o pensador italiano considera que:

"O erro dos apologistas é afirmar que a multiplicação dos produtos da indústria seja boa em si, segundo uma ideal homeostase do livre mercado, e não deva submeter-se a uma crítica e a novas orientações". Por outro lado, "o erro dos apocalípticos-aristocráticos é pensar que a cultura de massa seja radicalmente má, justamente por ser um fato industrial, e que se possa ministrar uma cultura subtraída ao condicionamento industrial.

Isso é importante: não há mais como recuar no tempo, nem fugir para o lindo-território-exclusivo-da-alta-cultura. As atividades humanas, no atual momento histórico, estão sob o condicionamento industrial e a cultura de massa é uma realidade a qual todos estamos vinculados. Acho oportuno agora recuperar um trecho do prefácio do livro:

"A nosso ver, se devemos operar em e para um mundo construído na medida humana, essa medida deverá ser individuada não adaptando o homem a essas condições de fato, mas a partir dessas condições de fato. O universo das comunicações de massa é - reconheçamo-lo ou não - o nosso universo; e se quisermos falar de valores, as condições objetivas das comunicações são aquelas fornecidas pela existência dos jornais, do rádio, da televisão, da música reproduzida e reproduzível, das novas formas de comunicação visual e auditiva. Ninguém foge a essas condições, nem mesmo o virtuoso, que indignado com a natureza inumana desse universo da informação, transmite o seu protesto através dos canais de comunicação de massa, pelas colunas do grande diário, ou nas páginas do volume em paperback, impresso em linotipo e difundido nos quiosques das estações".[E, na atualidade, também postando seu protesto no Twitter ou no Facebook, acrescentaria este blogueiro]


Há muito ainda a dizer sobre esses temas e sobre esse livro. Prosseguirei na semana que vem.
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* O termo música pop está sendo usado aqui em oposição à música erudita. Ao falar em música pop quero me referir a todas as obras que se voltam para o mercado consumidor mais amplo, não especializado e mais "popular"; noutras palavras, a música passível de "tocar no rádio".

** ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2001 [Tradução de Pérola de Carvalho]

BG de Hoje

Outro dia vendo uma série de vídeos do DEEP PURPLE, ouvi o tecladista Jon Lord dizer que a canção Child in time é a canção de um loser. Passei a gostar mais ainda dela.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Política e (a)moralismo




No capítulo XV d' O Príncipe*, Nicolau Maquiavel diz haver 

"tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína própria, do que o modo de se preservar; e um homem que quiser fazer profissão de bondade é natural que se arruíne entre tantos que são maus". 

O pensador florentino não estava nem um pouco interessado na maneira ideal de se fazer política: seu intuito era falar sobre o jogo de poder real existente em seu tempo. Ao fazer isso, escreveu um livro - pequeno pelo número de páginas, mas grande pela influência na história do pensamento político - que, em 2013, chega ao quingentésimo aniversário de seu aparecimento, suscitando ainda muita discussão.

Um breve parêntese. Se há uma publicação que não me canso de elogiar é a Revista de História da Biblioteca Nacional. A edição de julho, então, não poderia ser melhor. Uma série de matérias destacando Maquiavel e sua obra (entre elas, uma curta entrevista com Quentin Skinner). Num dos artigos da revista, Flávia Roberta Benevenuto de Souza** considera que

"talvez a lição mais importante de Maquiavel para os governantes seja que as ações dos homens não se localizam nos extremos de uma moral. E por isso, os valores a que se submete o Estado também não podem se situar em pontos extremos. A virtude, expressão máxima dos valores cristãos, não serve ao Estado e não pode ser adotada como seu parâmetro moral. Da mesma forma, sua expressão contrária, o vício, conduz o governante ao fracasso".

A noção de virtude (virtù***) maquiavélica, completa Flávia R. B. de Souza, "difere desta lógica 'do bem e do mal' própria dos valores da tradição cristã e que fundamenta a perspectiva do 'dever ser'. Afastar-se do maniqueísmo moral para efetivar as ações políticas é uma atitude realista".

Tá, mas... e daí? Daí que quando ouço as pessoas criticarem o mundo da política, sobretudo a política institucional/profissional (congresso, governos - municipais, estaduais e federal -, deputados, partidos políticos, etc.), elas se atêm, na maior parte das vezes, apenas aos desvios morais dos indivíduos: "Sicrano é ladrão", "Beltrano é falso" e por aí vai.

Não que a moralidade seja destituída de valor dentro do mundo da política, mas, para mim, a grande mensagem que extraio do livro O Príncipe, a cada leitura, é a seguinte: no jogo pesado do poder, a moralidade não é uma questão primordial, (sorry!). E concentrar-se na questão moral é perder de vista o restante do jogo (que consiste em saber quem pode te sacanear menos).

Mais uma coisa. No capítulo XVIII, Maquiavel afirma que "os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro". Se você discorda dessa concepção de ser humano, O Príncipe é um livro inútil, só diz bobagens e deveria ser jogado no lixo. Mas se você não acha disparatada uma visão tão negativa dos indivíduos (e é o meu caso), percebe que todos somos passíveis de agir, dependendo das circunstâncias, do mesmo modo que os "ladrões" e "falsos" tão criticados por nós mesmos.

O mais incômodo nessa obra clássica é que ela nos indica que nossas noções comuns e partilhadas de certo e errado pouco significam quando se pensa no efetivo poder real. 
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* MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983 [tradução de Lívio Xavier] (Coleção Os pensadores)

** SOUZA, Flávia Roberta Benevenuto de. Nem virtude, nem vício. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 8, n. 94, jul. 2013. p. 60-61

*** O termo virtù é geralmente mais usado pelos estudiosos da obra de Maquiavel, em detrimento de virtude, dadas as conotações religiosas associadas ao vocábulo em língua portuguesa.

BG de Hoje

Sempre que ouço essa canção (Diamonds and rust, de JOAN BAEZ) lembro-me do meu falecido irmão, alguém que gostaria de ter compreendido melhor.


terça-feira, 3 de setembro de 2013

Fragilidade e dor


Num trecho da entrevista concedida a Ben Naparstek* em 2008, a escritora norte-americana Toni Morrison parece não se considerar "tributária" das obras de outras autoras negras na década de 1960 (época em que ela dá os primeiros passos na ficção literária): "A maioria era sobre quanto as pessoas eram real e verdadeiramente nobres no mundo negro. Eu escrevia sobre como era realmente a dor".

Lançado em 1970 - mas elaborado a partir de 1965 - o primeiro livro de Toni Morrison, O olho mais azul** é, fora de dúvida, uma narrativa dolorosa. Ora, mas quem determinou que o sofrimento não faz parte da Literatura?

Na mesma entrevista, a escritora conta que escreveu esse trabalho porque "nunca li sobre ' mim ' em nenhum dos livros que amei - e por ' mim ' quero dizer uma das mais vulneráveis pessoas da sociedade: uma criança, uma mulher e uma criança mulher negra"***.

No caso específico de O olho mais azul, essa criança mulher negra é identificada: Pecola Breedlove - queria ter olhos azuis, iguais aos da estrela cinematográfica infantil Shirley Temple, para que os outros gostassem mais dela e ela própria se sentisse mais bonita. Esse desejo bizarro revela a que ponto se pode internalizar o racismo, junto com o sentimento de inferioridade a ele associado.

O preconceito e o racismo muitas vezes tornam invisíveis (portanto, desprezíveis), aos olhos de quem os carrega, aqueles que não pertencem a seu grupo racial. Numa das passagens do romance - que se passa no início dos anos 1940 - essa situação é narrada de forma ímpar. Pecola, munida de três centavos para comprar doces, vai a uma loja cujo proprietário é "um comerciante branco, imigrante, de 52 anos, com gosto de batatas e cerveja na boca, a mente adestrada na Virgem Maria de olhos meigos, a sensibilidade embotada por uma permanente consciência de perda". Como um  indivíduo assim - pergunta a narradora - "pode ver uma menina negra?"

Separados pelo balcão, Pecola 

"ergue os olhos para ele e enxerga o vácuo onde deveria haver curiosidade. E algo mais. A total ausência de reconhecimento humano - a vitrificada separação. [...] Ainda assim, esse vácuo não é novidade para ela. Tem gume, em algum ponto na pálpebra inferior está a aversão. Ela a tem visto à espreita nos olhos de todos os brancos. Deve ser por ela a aversão, pela sua negritude. Tudo nela é fluidez e expectativa. Mas sua negritude é estática e medonha. E é a negritude que explica, que cria o vácuo afiado pela aversão em olhos de brancos".

Convivendo numa família pobre e embrutecida, Pecola, em sua fragilidade, não consegue defender-se das terríveis agressões e violências às quais é submetida (entre elas, o estupro).

No final do romance, a narradora nos relata que a menina negra desejosa por olhos azuis estava agora "entre todo o lixo e toda a beleza do mundo - que é o que ela própria era. Todo o nosso lixo, que jogamos em cima dela e que ela absorveu. E toda a nossa beleza, que foi primeiro dela e que ela deu a nós. Todos nós - todos os que a conheceram - nos sentimos tão higiênicos depois de nos limparmos nela".

Não há um traço sequer de triunfalismo nessa narrativa. Ninguém é poupado (nem o leitor):

[...] não éramos fortes, apenas agressivos; não éramos livres, meramente autorizados; não éramos compassivos, éramos polidos; não bons, mas bem-comportados. Cortejávamos a morte a fim de nos chamarmos de corajosos, e escondíamo-nos da vida como ladrões. Substituíamos intelecto por boa gramática; mudávamos os hábitos para simular maturidade; rearranjávamos mentiras e as chamávamos de verdade, vendo no padrão novo de uma ideia antiga a Revelação e a Palavra".

Falávamos, no início da postagem, sobre dor. Não se sai das duzentas e poucas páginas de O olho mais azul com a alma aliviada. Melhor assim.

* NAPARSTEK, Ben. Encontros com 40 grandes autores. São Paulo: Leya, 2010. [Tradução de Elisa Nazarian]

** MORRISON, Toni. O olho mais azul. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 [Tradução de Manoel Paulo Ferreira]

*** Essa declaração é semelhante à que se encontra no posfácio (escrito pela autora) da edição acima referenciada de O olho mais azul : "Concentrei-me, então, em como algo tão grotesco quanto a demonização de uma raça inteira podia criar raízes dentro do membro mais delicado da sociedade: uma criança; do membro mais vulnerável: uma mulher".

BG de Hoje

Sou um mineiro falsificado. Qualquer dia falo a respeito. Deve ser por esse motivo que não sou nada fã de MILTON NASCIMENTO. Gosto de uma ou outra canção, nada além disso. Itamarandiba é uma dessas.