sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Biela (I)

Mikhail Bakhtin, teorizando a relação do autor com a personagem *, defende que

" [...]  o autor acentua cada particularidade da sua personagem, cada traço seu, cada acontecimento e cada ato de sua vida, os seus pensamentos e sentimentos, da mesma forma como na vida nós respondemos axiologicamente a cada manifestação daqueles que nos rodeiam ; na vida, porém, essas respostas são de natureza dispersa, são precisamente respostas a manifestações particulares e não ao todo do homem, a ele inteiro [...]".

Ou seja, na vida comportamo-nos em relação ao outro sempre levando em consideração os contextos específicos de convivência, que variam no tempo histórico. Não é possível (ainda que se deseje fazê-lo) enfeixar o  outro num único invólucro imediatamente reconhecível - mesmo que, provisória e precariamente, qualifiquemos alguém como sendo irritadiço, compreensivo,  esnobe, etc. "Já na obra de arte" - escreve Bakhtin - " a resposta do autor às manifestações isoladas da personagem se baseiam numa resposta única ao todo da personagem, cujas manifestações particulares são todas importantes para caracterizar esse todo como elemento da obra".

Segundo o pensador russo, "a luta do artista por uma imagem definida da personagem é, em um grau considerável, uma luta dele consigo mesmo".

Julgo importante fazer essas considerações preliminares porque tenciono discutir a composição de uma personagem criada por Autran Dourado, na novela  Uma vida em segredo. Biela, protagonista da narrativa, é o único eixo que sustenta todo esse extraordinário livro.
Dourado conseguiu criar personagens memoráveis em outros de seus trabalhos - como, por exemplo, os membros da família Honório Cota, no romance Ópera dos mortos, do qual falarei noutra oportunidade - mas a Biela de  Uma vida em segredo demonstra um  acabamento  (no sentido estético, literário) notável dentro da Literatura Brasileira.

Trato disso na próxima semana.
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* BAKHTIN, Mikhail. O autor e a personagem. In: ____________. Estética da criação verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 3-20 [ tradução de Paulo Bezerra ]


BG de Hoje

Na minha opinião,  Little Wing  é a mais bela composição de JIMI HENDRIX, considerado, com acerto, o melhor guitarrista de todos os tempos. Mas STEVIE RAY VAUGHAN toca essa canção maravilhosamente, quase tão bem como a lenda Hendrix.


terça-feira, 28 de agosto de 2012

A escrita atordoante de Kafka: a "energia sem retorno"





A filósofa Hannah Arendt, num de seus livros *, valeu-se de uma narrativa de Franz Kafka para ilustrar metaforicamente o posicionamento dos seres humanos em meio à "disputa de forças" entre o passado e o futuro. Sobre o escritor ela diz:

"Não se decifrou ainda o enigma de Kafka [...] que consiste, basicamente, em uma espécie de espantosa inversão da relação estabelecida entre experiência e pensamento. Ao passo que consideramos como imediatamente evidente associar riqueza de detalhes e ação dramática à experiência de uma dada realidade, atribuindo assim certa palidez abstrata aos processos mentais como tributo a ser pago por sua ordem e precisão, Kafka, graças à pura força de inteligência e imaginação espiritual, criou a partir de um mínimo de experiência despojado e 'abstrato', uma espécie de paisagem-pensamento que, sem perda de precisão, abriga todas as características da vida 'real' . Sendo o pensar para ele a parte mais vital e vívida da realidade, desenvolveu esse fantástico dom antecipatório que ainda hoje [...] não cessa de nos atordoar". 

Atordoamento. Sem dúvida, essa é a sensação quando leio qualquer escrito de Kafka.

Noutra perspectiva, Maurice Blanchot  (citado por John Lechte**) afirma: "por isso que só compreendemos [a obra de Kafka] ao traí-la; nossa leitura gira ansiosamente ao redor de um mal-entendido".

Como, então, interpretar a obra desse autor?

Há, em seus contos e romances, um componente alegórico - o que motiva muitos leitores a tentar buscar sentidos ocultos, a mensagem por trás do texto. Mas esse esforço não nos levaria apenas a "girar ansiosamente ao redor de um mal-entendido" ?  Além disso, por não ser referir diretamente a nenhuma extensão espaço-temporal imediatamente reconhecível na vida "real", a maioria dos escritos de Kafka não nos deixa confortável dentro da "paisagem-pensamento"  por ele criada.

Essa obra atordoante é também um testemunho sobre o ofício do escritor a partir do início do século passado. Como observou John Lechte:

"No caso de Kafka, isso acarreta a consagração de sua experiência interior mais íntima. Essa consagração, ou o tornar-se literário da escrita, arma uma profunda tensão. Pois depois que o escritor armou seu jogo, queimou suas pontes, colocou seu próprio ser em risco e montou o cenário de seu desafio às mais profundas convenções da arte de sua época, ele pode não ser reconhecido; tudo pode ter sido em vão. A possibilidade do fracasso mais profundo tem de ser considerada. As apostas foram muito altas, e a tentação de se comprometer é extremamente forte".

De fato, em vida, o escritor não conheceu nenhuma popularidade e mesmo depois que o amigo Max Brod contrariou o pedido recebido e publicou os manuscritos inéditos, Franz Kafka é provavelmente um autor mais comentado pelos  estudiosos  do que efetivamente lido pelo público leitor  em geral   (exceção, talvez, d'A metamorfose, bastante difundido). Daí Lechte falar em "energia sem retorno" : energia gasta pelo escritor mas que não retorna a ele na forma de recepção popular, e, ao mesmo tempo, energia gasta pelo leitor que não tem garantia de retorno na forma de compreensão do texto proposto pelo autor.

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Para concluir nossa discussão, falemos de uma narrativa kafkiana conhecida: Na colônia penal*** (que considero uma angustiante história de horror).

São quatro personagens: um oficial, um explorador-visitante, um soldado e um condenado. A meu ver, o texto - pensando nos componentes alegóricos dos escritos de Kafka - tematiza a ritualização da violência, exercida metodicamente pelas autoridades (o oficial, na narrativa, parece não perceber o quão é injusto e brutal o uso do aparelho de tortura e morte mantido por ele na aplicação das punições e parece também não se dar conta do sadismo inerente à contemplação do sofrimento alheio).

Atentemos para este trecho, em que o oficial explica ao explorador o funcionamento da máquina de tortura e execução:

"[...] o objetivo não é matar de imediato, mas em média num intervalo de doze horas ; a transição está calculada para a sexta-hora. Muitos, muitos floreios rodeiam a escrita ; a escrita propriamente dita envolve o corpo apenas em um filete estreito ; todo o resto do corpo fica reservado aos ornamentos. Será que agora o senhor será capaz de apreciar o trabalho do rastelo e de todo o aparelho?"

A escrita refere-se à ação dos componentes do aparelho, que desenham e escrevem no corpo do condenado a sentença proferida contra ele. Essa violência ritualizada e metódica acabará por vitimar a todos - é o que a novela nos indica. Tratar-se-ia da "banalização do mal"  (citando um conceito discutido, aliás, por Hannah Arendt)?

Os enigmas de Kafka ainda não foram decifrados

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Para ampliar a compreensão da obra de Franz Kafka sugiro também a leitura de História: onde empatia e distanciamento se encontram (parte 1) e História: onde... (parte 2), publicados no blog da professora Rachel Nunes (um dos recomendados aqui da casa)
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* ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7 ed. São Paulo: Perspectiva: 2011 [ tradução de Mauro W. Barbosa ]

** LECHTE, John. Franz Kafka. In: ________. Cinquenta pensadores contemporâneos essenciais: do estruturalismo à pós-modernidade. 4 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006. p. 268-272 [ tradução de Fábio Fernandes ]

*** KAFKA, Franz. Na colônia penal. In: _____________.Um artista da fome seguido de Na colônia Penal e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 77-124 [ tradução de Guilherme da Silva Braga ]

 
BG de Hoje

Já que falei em horror, preste atenção a estes versos: "Modulistic terror/ a vast sadistic feast/ the only way to exit/ is going piece by piece" [tradução aproximada: "Terror modulístico ( ? )/ um vasto banquete sádico/ o único modo de sair/ será em pecaços"]. É a primeira estrofe de Piece By Piece, faixa do disco Reign in Blood (1986) do SLAYER, grupo seminal para o trash metal. Justificando o nome da banda, Piece By Piece   é uma espécie de recado macabro dado por um serial killer. No fundo, a letra é uma bobagem que pretende causar espanto e repulsa. Hoje, acho apenas divertido. Mas tinha tudo a ver com o espírito adolescente existente em mim naquela época. De todo modo, ainda curto o som do SLAYER.



sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Urbanoide sem culpa



Ultimamente tenho pensado muito num poema do Ferreira Gullar, chamado Bicho Urbano *:

" Se disser que prefiro morar em Pirapemas
            ou em outra qualquer pequena cidade
            do país
            estou mentindo
ainda que lá se possa de manhã
lavar o rosto no orvalho
e o pão preserve aquele branco
sabor de alvorada

Não não quero viver em Pirapemas
Já me perdi
Como tantos outros brasileiros
me perdi, necessito
deste rebuliço de gente pelas ruas
e meu coração queima gasolina  ( da 
comum )
         como qualquer outro motor urbano

A natureza me assusta.
Com seus matos sombrios suas águas
suas aves que são aparições
me assusta quase tanto quanto
este abismo
                     de gases e de estrelas
aberto sob minha cabeça ".

Um de meus amigos costuma dizer que sou um urbanoide (o termo é proferido num tom que mistura consternação e uma dose de raiva). Não me importo; pelo contrário. Assumi a qualificação sem titubear.

Certas pessoas começaram a adotar um bucolismo new age, meio fajuto, que não consigo suportar. Vivem falando em aumentar o "contato com a natureza" e em   buscar "qualidade de vida"... Ora, quem  repete  até babar a expressão  "contato com a natureza" é a mesmíssima pessoa que, se estivesse num acampamento, não se disporia a limpar a bunda com folha de mamona e quererá logo saber onde está a água encanada; os mesmos que buscam a tal "qualidade de vida" são os que não abrem mão do carro com ar condicionado - comprovadamente um dos meios de transporte mais poluentes e um transtorno cada vez maior para a fruição da vida citadina.

Sou urbanoide. E não me sinto culpado por isso: diferentemente daquele bicho urbano inscrito no poema de Gullar, que diz estar em perdição. Mas, semelhante a ele, também "necessito / deste rebuliço de gente pelas ruas", embora, às vezes, sinta, involuntariamente, desejo raivoso de me livrar de alguns passantes.

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Numa entrevista longa e bem editada, concedida há quase 13 anos **, Ferreira Gullar formulou uma definição para   o   artista :  "Os artistas são pessoas que ficam permanentemente teimando, no fundo são meninos... Um menino que não amadurece. Mas que diabos é amadurecer? Virar um cadáver adiado, como dizia o Fernando Pessoa? O artista é, na verdade, a necessidade que o mundo tem de manter viva a fantasia, a ilusão, que no fundo é o que vale a pena".

Só a ilusão vale a pena.... Como considero a Literatura uma produtora de ilusões necessárias, tendo a concordar com o poeta maranhense.
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* GULLAR, Ferreira. Bicho urbano. In: _______________. Toda poesia. 16 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. p. 327 [ esse poema foi publicado originalmente em 1980, no livro Na vertigem do dia ]

** A poesia que nasce do espanto. Palavra. Belo Horizonte, ano 1, n. 8, nov. 1999. p. 8-18

BG de Hoje

O TOOL é geralmente classificado como uma banda de "metal progressivo". Não sei se o termo descreve adequadamente o que é o som do grupo. Gosto de ouvir deitado na cama ou no sofá, curtindo ressaca, quando me sinto cheio de tédio e amargura. Além do mais, os clipes da banda são espetaculares.  É  o  caso  de   Prison Sex, canção  do primeiro disco deles (Undertow, de 1993 )



terça-feira, 21 de agosto de 2012

Neuromancer (III)


Havia dito na segunda postagem desta série que o tema circulação de dados e informações como setor vital da economia e da vida sociocultural seria tratado no fechamento da análise de   Neuromancer *. Mas preferi agora abordar outra questão que surge no capítulo 21.

Nesse capítulo (provavelmente o mais curto do livro, em que se explica o título da obra), Case, o protagonista, está retido, mentalmente, numa espécie de limbo virtual, criado por uma IA ( Inteligência Artificial) . E enquanto permanece lá, o corpo de Case no "mundo real" indica que ele está morto, pois o eletrencefalógrafo ao qual está ligado exibe uma linha plana durante 5 minutos. Escapa desse confinamento graças a um expediente simples: fones são colocados no seu ouvido orgânico e o som da música - o dub habitual de Zion - penetra no limbo virtual, orientando o personagem.

E por que falar desse capítulo em particular? Porque nele está condensado uma das principais questões de Neuromancer (e também uma das principais do gênero ficção científica): o que é a realidade?

A IA que retém Case - e que aparece a ele na forma de um menino brasileiro de 13 anos - diz em determinado momento: "Para invocar um demônio é preciso saber  o nome dele. Os homens já sonharam isso, mas agora é real, em outro sentido. Um sentido que conhece bem, Case. O seu negócio é saber os nomes dos programas longos e formais, aqueles nomes que seus donos tentam esconder. Os nomes reais".

Por ser um hacker (ou cracker, como queiram), cabe ao herói do livro tentar controlar esses novos "demônios", agora encarnados em códigos informáticos. "Demônios" que a cada dia definem momentos de nossas vidas, desde o terminal eletrônico no banco da esquina aos incríveis simuladores empregados em áreas tão distintas quanto as hard sciences e o entretenimento. Nesses tempos de hiperconectividade já não conseguimos definir o termo realidade rápida, inequívoca e peremptoriamente. E olha que - para usar uma expressão do Carlos Heitor Cony -  ainda estamos na era da "Internet lascada"...

Por fim, destaco outra fala da IA no mesmo capítulo. Tentando convencer Case a permanecer definitivamente naquela "realidade virtual", o menino diz: "Fique. Se a sua mulher [referindo-se à personagem Linda Lee, morta no "mundo real"] é um fantasma, ela não sabe disso. E você também não saberá". Essa passagem me remete ao traidor Cypher, no filme Matrix (discutido aqui), que escolheu a ilusão da mega-simulação virtual ao desagradável  e cruento plano da realidade.

Poderia também escrever a respeito da relação corpo-mente (a ideia de mente flerta, há milênios, com a - problemática - noção de alma), algo muito interessante em Neuromancer, mas fica para outra oportunidade.

Na próxima atualização, falo de um poema de Ferreira Gullar.
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* GIBSON, William. Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2003

BG de Hoje

Ando sentindo uma tremenda dor-de-cotovelo. Para ajudar a dissipar essa sensação desagradável, tenho ouvido os bons e velhos SMITHS. E eu acho simplesmente fenomenais estes versos de There is a light that never goes out" And if a double-decker bus / crashes into us / to die by your side / such a heavenly way to die / And if a ten-ton truck / kills the both of us / to die by your side / well, the pleasure and the privilege is mine" [tradução aproximada: "E se um ônibus de dois andares / batesse em nós / morrer a seu lado / que jeito celestial de morrer / E se um caminhão de dez toneladas / matasse a ambos / morrer a seu lado / bem, o prazer e o privilégio seriam meus"].

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Para além do humano ou Vida e morte na era digital



"O futuro, ao que parece, está sendo inventado por uma equipe de crianças crescidas com doutorado"

Michio Kaku


Encerraria hoje a série de postagens sobre Neuromancer. Farei isso mais adiante. É que li recentemente dois artigos muito bons e que, de certo modo, estão relacionados com o assunto das últimas postagens.

Em Tecnolatria antropofágica *, Alexandre Quaresma faz oportuna crítica ao oba-oba que costuma caracterizar a relação das pessoas com as bugigangas eletrônicas de última geração e alerta para algo óbvio, mas frequentemente esquecido: "Desenvolvimento material - seja científico, seja tecnológico - não significa, necessariamente, desenvolvimento humano [...]"

O articulista, claro, reconhece que a criação e adição de novas tecnologias é parte inseparável da história e da trajetória humana. Menciona, contudo, um outro aspecto da tecnização  progressiva da vida do homo sapiens, acentuada na pós-modernidade:

"[...] essa mesma tecnização ameaça transformar os integrantes desta humanidade em algo que não seria mais humano no verdadeiro sentido do termo, pois estaríamos prestes a investir pesado em técnicas bionanotecnocientíficas tão brutais e impactantes (clonagem, adição de próteses maquínicas ao corpo, manipulação genética, implantes neurais, transgenia, entre outras tantas) , que estas técnicas seriam de fato reestruturadas no que tange degenerações ontogenéticas e até filogenéticas, práticas e também simbólicas do que consideramos hoje um humano".


Para o autor, passamos a mitificar a ciência e as tecnologias produzidas a partir de suas atividades. Essa mitificação leva, frequentemente, a avaliações ingênuas e superficiais :

"Não há um só assunto relativo a projeções de cenários futuros para a humanidade que não possa ser resolvido - dizem os tecnólatras - com o auxílio luxuoso dela (Tecnociência). O que estes obnubilados parecem esquecer é que a maioria dos problemas (ambientais e sociais, axiológicos e também culturais) que enfrentamos na atualidade se originaram deste mesmo processo de tecnização exacerbado que em tudo interfere, altera e reconfigura".

Quaresma aponta para o desafio ético a se desenhar e pergunta: "Teremos a sabedoria e o discernimento necessários e suficientes para, neste contexto complexo e multifacetado, arbitrar sobre o que seriam atos dignos ou indignos para a nossa própria humanidade e também para o planeta em termos de Ciência e Tecnologia?"

Por sua vez, João de Fernandes Teixeira, em A imortalidade digital ** cita uma previsão feita pelo norte-americano Ray Kurzweil: "antes do final deste século, poderemos fazer o download do nosso cérebro na Internet". Marvin Minsky é outro que acredita na "possibilidade de preservação do  software  de cérebros humanos por tempo indeterminado através de uma criogênese digital". NOTA: Há um personagem em Neuromancer - McCoy Pauley, o Linha Plana - que é "um constructo, um cartucho ROM substituindo os talentos, obsessões e até os reflexos do joelho de um homem morto". Essas ideias - associadas a avanços medicinais e biotecnológicos - induzem alguns a falar em imortalidade (ou, pelo menos, num prolongamento da duração da vida sem precedentes). O que leva Teixeira a formular algumas questões: "Nossos corpos se tornarão biônicos, mas o que ocorrerá com nossas mentes? Será que nosso psiquismo está preparado para suportar os gostos e desgostos pelos quais passaremos numa vida que pode durar 200 anos? Será que os chips implantados no cérebro poderão expandir áreas específicas da memória e suprimir outras?"

E como estamos no terreno da pura especulação, também dou meu pitaco: chegará o dia em que o corpo, apenas carnal, se tornará obsoleto?

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Já que venho falando de ficção científica nas últimas semanas aproveito para mencionar a matéria publicada na edição de março deste ano da (sempre ótima) revista Ciência Hoje das Crianças ***. Mesmo sendo voltada para o público infantil, há logo na abertura do texto uma apropriada conceituação do gênero e tem a ver com o que discuti ao escrever sobre Ray Bradbury (clique aqui).

"O termo ficção científica (ou FC) refere-se às histórias em que acontecem situações fora do comum, mas que - preste atenção agora! - são explicadas pela ciência. Ou, pelo menos, deveriam ser, já que muitas vezes os autores criam essas situações com base em possibilidades reais. Eles podem falar, por exemplo, de uma tecnologia ainda não disponível, um vírus desconhecido ou uma guerra que não aconteceu. O importante é que, por mais imaginativas que sejam as histórias, a explicação por trás delas sempre deve estar ligada às leis que regem nosso universo e não à magia ou ao sobrenatural. Nesse caso, trata-se de fantasia e não de ficção científica, mesmo que o cenário seja o futuro de uma galáxia situada a anos-luz da Terra".
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* QUARESMA, Alexandre. Tecnolatria antropofágica. Sociologia, São Paulo, ano IV, n. 40, jun/jul. 2012, p. 22-25 [Editora Escala]

** TEIXEIRA, João de Fernandes. A imortalidade digital.  Filosofia Ciência & Vida, São Paulo, ano VI, n. 72, jul. 2012, p. 52-53 [Editora Escala]

*** MEREGE, Ana Lúcia. Histórias inventadas com um pezinho na realidade. Ciência Hoje das Crianças, Rio de Janeiro, ano 25, n. 232, mar. 2012, p. 2-6

BG de Hoje

Eu fico sempre encantado com a simplicidade e a beleza na execução deste clássico do samba (composto por Silas de Oliveira e  Joaquim Harindo). Meu drama, interpretado por RENATO BRAZ.


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

40


Completo hoje 40 anos. Que merda! Mas encontrei num conto do Dalton Trevisan* a frase perfeita para marcar esse dia idiota :  "Aos quarenta anos basta que não chova e você acorde sem achaque para não ser infeliz".  Vou encher a cara mais tarde no boteco do Dinei...
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* TREVISAN, Dalton. No meio do caminho. In: ______________. O rei da terra. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975 

BG de Hoje

Vou me dar um presente. Uma das minhas músicas prediletas da minha banda predileta: No Excuses, ALICE IN CHAINS.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Neuromancer (II)



Como já observei noutra oportunidade (clique aqui), uma das maneiras de se avaliar uma produção de ficção científica é tentar verificar o que se tornou (ou pode, no curto prazo, se tornar) "realidade" nas "previsões" feitas pela narrativa

Falemos então de certas "previsões" contidas em Neuromancer *, de William Gibson.

Algumas das megacorporações citadas no livro são japonesas (até a máfia torna-se multinacional, com a Yakuza absorvendo suas similares italiana e chinesa!). Nisso o romance reflete bem o que se poderia deduzir desde o final dos anos 1970 e durante a década seguinte, quando as empresas japonesas cresciam de forma gigantesca. O capitalismo é ardiloso, porém. Mitsubishi, Sony, Toyota são imensas, é verdade, mas conglomerados norte-americanos e europeus reagiram no final do milênio passado. Isso sem falar na China. Mas quem imaginaria, em 1984, o cenário hoje existente no país asiático?

Gibson, contudo, acerta em cheio na abordagem de temas como biotecnologia, engenharia genética e cirurgia plástica. Vejamos, por exemplo, os dispositivos denominados microsofts.

O microsoft é - citando nota do tradutor do livro - "um pequeno chip que é inserido numa tomada biotecnológica atrás da orelha para conectar o cérebro do usuário e dotá-lo de alguma habilidade ou conhecimento que ele não tenha, como, por exemplo, falar idiomas estrangeiros. Essa tomada também serve para fazer cópias back-up da memória humana".

(A empresa criada por Bill Gates existe na ficção de Neuromancer, mas foi incorporada, claro, por uma empresa japonesa)

Estamos, é verdade, longe de um dispositivo desse tipo, mas não deixa de ser uma sacada genial do autor, ao vislumbrar essa possibilidade fantástica na relação homem-máquina.

A percepção de que a circulação de dados e informações se tornará um setor vital da economia e da vida sociocultural, como hoje se verifica, naturalmente é o grande trunfo da narrativa de William Gibson. Mas falarei disso depois, no fechamento desta série de postagens.


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Escrevi sobre Ray Bradbury recentemente, mas não mencionei o pequeno artigo de Braulio Tavares, em homenagem ao escritor norte-americano, publicado na revista Metáfora** do mês passado (só comprei a edição anteontem). Vale conferir. Tavares ressalta o estilo poético do autor d'As crônicas marcianas e conta um episódio curioso: "Quando Mikhail Gorbachev visitou os EUA e foi recebido por Reagan na Casa Branca, os únicos convidados cujo nome ele indicou pessoalmente foram Ray Bradbury e Isaac Asimov, com a explicação: 'São os autores norte-americanos mais conhecidos e amados na URSS, e os favoritos da minha filha'. A ficção científica tem esse espírito eliminador de fronteiras geográficas e políticas".

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* GIBSON, William. Neuromancer. 3 ed. São Paulo: Aleph, 2003 [ tradução de Alex Antunes ]

** O poeta da ficção científica. Metáfora. São Paulo, ano I, n. 10, jul. 2012, p. 18-19

BG de Hoje

Toda vez que ouço esta canção me vem à cabeça sempre a lembrança de um sonho bom: Fuga nº II, com Os MUTANTES.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Neuromancer (I)






"A Matrix teve a sua origem nos primitivos jogos eletrônicos - disse a voz gravada -, nos primeiros programas gráficos e nas experiências militares com conectores cranianos [...] - O cyberespaço. Uma alucinação consensual vivida diariamente por bilhões de operadores autorizados, em todas as nações, por crianças aprendendo altos conceitos matemáticos... Uma representação gráfica de dados abstraídos dos bancos de dados de todos os computadores do sistema humano. Uma complexidade impensável. Linhas de luz abrangendo o não-espaço da mente, nebulosas e constelações infindáveis de dados. Como marés de luzes de cidade..."

William Gibson - Neuromancer

 
Como diversos outros leitores, suponho, cheguei a Neuromancer *, livro publicado originalmente em 1984, graças à trilogia cinematográfica Matrix, iniciada em 1999, e dirigida pelos irmãos Wachowski. A relação entre as duas obras é evidente - daí o questionamento: tratar-se-ia de plágio, citação ou homenagem? -, mas não discutirei esse aspecto por ora.

Gibson conseguiu antecipar, há quase 30 anos, a imensa participação, influência e poder da informática e da cibernética sobre a vida humana como hoje presenciamos. Tal como Isaac Asimov, cunhou um termo que ultrapassou o campo da Literatura para fazer parte de um vocabulário conhecido em outras áreas: ciberespaço (Asimov popularizou o termo robótica **). E os cenários em que a narrativa se desenrola são exemplos sinistros do que hoje chamamos de globalização.

O herói (ou anti-herói) Case, hacker dependente de drogas e desencantado é, contudo, um personagem instigante, assim como  sua  parceira,  Molly, a "samurai das ruas".

Outro clássico da ficção científica. Assunto que continua nas próximas postagens.
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* GIBSON, William.  Neuromancer . 3 ed. São Paulo: Aleph, 2003 [  tradução de Alex Antunes ]

** Importante dizer que a palavra robot já era conhecida e utilizada mundo afora desde o surgimento da peça R. U. R, do escritor tcheco Karel Capek, publicada nos anos 1920.
 
BG de Hoje

CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI representaram uma pequena revolução no rock brasileiro. Os "caranguejos com cérebro" produziram música da mais alta qualidade. A Nação Zumbi, do excepcional guitarrista Lúcio Maia, ainda segue trabalhando, mas sem a mesma intensidade de seu início (Chico Science, infelizmente, está morto). No BG, uma porrada, com cara de "carta de intenções"  ( Da lama ao caos ):  " E , com o bucho mais cheio , / comecei a pensar / que eu me organizando , posso desorganizar ; / que eu desorganizando, posso me organizar ".