terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A fantasia etnográfica das "Viagens de Gulliver" (3)


Um dos livros de que mais gosto em minha modestíssima biblioteca particular é o Dicionário de lugares imaginários*, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi. Não preciso dizer que todos os lugares visitados por Lemuel Gulliver  nas suas famosas Viagens** são verbetes da publicação, com acompanhamento de mapas e ilustrações inclusive (o esquema descritivo da ilha voadora de Laputa é ótimo). Sobre a ilha de Balnibarbi, por exemplo, o Dicionário nos informa que sua pobreza "é responsável, em larga medida, pelos assim chamados projetistas".

Esses projetistas (e seus trabalhos) merecem comentário. Chegaram a Balnibarbi após viverem cinco meses em Laputa (a ilha voadora), área nobre do reino, onde só são valorizadas a astronomia, a matemática teórica e a música. Como relata Gulliver, as pessoas


"[...]voltaram com tinturas superficialíssimas de matemática, mas cheias de espíritos voláteis, adquiridos naquela região aérea: essas pessoas, ao regressarem, principiaram a desagradar-se do governo de todas as coisas do continente, e entraram a projetar a remodelação de todas as artes, ciências, línguas e ofícios".

Os projetistas fundaram academias em todas as cidades importantes do reino, entre elas a capital, Lagado. Só que havia um inconveniente: "nenhum desses projetos atingiu ainda a perfeição; e, neste entretempo, andam os campos todos miseravelmente arruinados, as casas caindo aos pedaços e o povo sem comida e sem roupa".

É clara aqui a crítica de Jonathan Swift ao academicismo deslumbrado, divorciado dos problemas reais.

Em minha opinião, as duas passagens mais engraçadas das Viagens de Gulliver estão nos capítulos V e VI da Parte III, quando se visita a academia de Lagado.

Nessa instituição havia um arquiteto que começava a construir casas pelo teto, justificando "com o exemplo de dois prudentes insetos, a abelha e a aranha"; outro projetista intentava "extrair raios de sol dos pepinos"; um terceiro projeto consistia "em abreviar o discurso, transformando os polissílabos em monossílabos e pondo de parte verbos e particípios; porque, na verdade, todas as coisas imagináveis são apenas substantivos".

A "obsessão escatológica" de Swift, comentada na última postagem, faz-se presente mais uma vez. O "sábio mais antigo da academia", imundo e mau cheiroso, tinha como objetivo

"reconverter o excremento humano nos alimentos originais, separando-lhe as diversas partes, renovando a coloração que recebe da vesícula biliar, extinguindo-lhe o cheiro e retirando-lhe os restos de saliva. Recebia da sociedade uma ração semanal, a saber, um vaso cheio de imundície humana, do tamanho de um barril de Bristol".


No campo da ciência política, a coisa não era muito diferente. Um professor de Lagado desenvolveu um estudo para descobrir conspirações contra o governo:

"Aconselhava aos grandes estadistas que examinassem a dieta de todas as pessoas suspeitas: as suas horas de comer; o lado sobre o qual se deitavam na cama; a mão com que limpavam a bunda; que lhes estudassem acuradamente os excrementos, de cuja cor, cheiro, gosto, consistência, fase digestiva, poderiam deduzir-lhes os pensamentos e desígnios. Porque os homens nunca se mostram mais sérios, reflexivos e compenetrados do que sentados na privada, o que ele próprio verificara depois de reiterados experimentos; pois nessas circunstâncias, quando costumava, apenas por experiência, meditar na melhor maneira de assassinar o rei, as fezes lhe saíam esverdeadas, mas muito diferentes quando só pensava em organizar uma sedição ou pôr fogo na metrópole".

Tinha intenção de discutir o interessantíssimo método de criação e educação de crianças desenvolvido em Lilipute, a visita dos mortos ilustres em Glubbdubdrib, além da severa avaliação dos seres humanos por meio dos "yahoos", feita por  Swift, quando descreve a estadia de Gulliver no País do Houyhnhnms. Mas como o texto muito se alongou, deixo para outra ocasião.

Na próxima postagem, começo a falar dos poemas de José Paulo Paes.

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* MANGUEL, Alberto; GUADALUPI, Gianni. Dicionário de lugares imaginários. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 [tradução de Pedro Maia Soares]


**  SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [tradução de Octavio Mendes Cajado] 

BG de Hoje

RITA LEEZÉLIA DUNCAN foram muito hábeis ao compor a canção Pagu, questionando as imagens - simplistas ou preconceituosas - coladas às mulheres. Ironicamente, entretanto, Adriane Galisteu utilizava essa música na abertura de um de seus malsucedidos e desimportantes programas televisivos. Não entendeu que Pagu não foi feita para mulheres como ela.