"Espero que o leitor benévolo me perdoe o discorrer sobre estes e semelhantes pormenores, os quais, por insignificantes que possam parecer a espíritos rasteiros e vulgares, hão de por certo ajudar um filósofo a dilatar as ideias e a imaginação, e aplicá-las em benefício não só da vida pública senão também da vida privada, o que, aliás, constitui o meu único intento ao apresentar este e outros relatos das minhas viagens pelo mundo; nos quais me preocupei em especial com a verdade, pondo de parte arrebiques de erudição ou de estilo".
O narrador de Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift
Este trecho epigrafado está no último parágrafo do capítulo I, da segunda parte das Viagens de Gulliver* , quando o protagonista (e narrador) está em Brobdingnag. Neste país, todos os habitantes eram gigantescos e Gulliver, pouco maior do que um rato em relação a eles.
O narrador julgou importante apresentar a justificativa acima porque acabara de relatar como convencera sua ama a deixá-lo "fazer mais de uma coisa que ninguém poderia fazer" por ele, ou seja, defecar e urinar. Ao longo do livro, encontrar-se-ão diversos episódios nos quais Gulliver nos conta os meios que obtivera para se "aliviar" (quando estava em Lilipute, por exemplo, dois criados, tão diminutos quanto os outros viventes desse reino, eram especialmente designados para levar em carrinhos de mão a "repulsiva matéria"). Qual a necessidade, do ponto de vista narrativo, de incluir esses detalhes que, em outros trabalhos ficcionais, são quase sempre dispensáveis?
Acredito que há duas funções para essa "obsessão escatológica" de Jonathan Swift. A primeira - menos importante - é criar um efeito cômico, como acontece ao descrever as experiências acadêmicas observadas em Lagado (Parte III). A segunda é dar verossimilhança ao que se narra.
Ora, Gulliver conhece um país cuja população tem estatura reduzidíssima; a seguir, visita outro com pessoas descomunais. Conhece uma ilha que flutua no céu. Vai a uma terra onde os cavalos são racionais e os seres humanos, as bestas. Tanta fantasia junta necessitava de um "lastro" de realidade. E poucas coisas são tão reais e concretas quanto nossas necessidades fisiológicas.
E por falar em fantasia, por que no título desta série de postagens usei a expressão fantasia etnográfica?
A "literatura de viagem" sempre foi um gênero muito popular. Uma de suas características - principalmente após as Grandes Navegações dos séculos XV e XVI - é falar no "exotismo" (do ponto de vista europeu) dos povos encontrados no Novo Mundo. Na segunda metade do século XIX, um outro boom da "literatura de viagem" acontece (e de novo apresentando o lado exótico dos grupos humanos), agora como "efeito colateral" da ação imperialista e neocolonizadora empreendida pela França, Inglaterra, Bélgica, etc. na África e na Ásia.
A etnografia, como técnica, método e elaboração científica, só se consolidaria no século XX, muito em virtude de Argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski, obra que, na minha opinião, é uma das mais importantes na história das ciências sociais. Contudo, a inspiração é a mesma da "literatura de viagem": aproximar-se de um outro que é culturalmente diferente de um nós. Swift radicaliza essa ideia nas Viagens de Gulliver simplesmente inventando esse outro, da forma mais fantástica possível.
Exemplos dessa invenção e a crítica contida nela serão o assunto da próxima e última postagem da série.
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* SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [tradução de Octavio Mendes Cajado]
BG de Hoje
Morrisey é um letrista fora-de-série. Reparem no belíssimo jogo de aliterações e assonâncias que ele faz em Cemetry gates (canção da época dos SMITHS), utilizando o nome dos escritores John Keats, W. B. Yeats e Oscar Wilde : "A dreaded sunny day/So I meet you at the cemetry gates/Keats and Yeats are on your side/While Wilde is on mine" (link para o vídeo)