segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Thomas Hobbes e a autoajuda (1)



"Mas há um outro ditado que ultimamente não tem sido compreendido, graças ao qual os homens poderiam realmente aprender a ler-se uns aos outros, se se dessem ao trabalho de fazê-lo: isto é, Nosce te ipsum, Lê-te a ti mesmo".

Thomas Hobbes - Leviatã


Há bastante tempo, em entrevista publicada na revista Istoé* (buscada em meu precário arquivo de pastas plásticas), Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, respondia a uma pergunta sobre os diversos interesses do público leitor brasileiro. A conversa acabou chegando aos livros de autoajuda. Surgiu então outro questionamento: "o sr. acha que, de certa forma, isto [o livro de autoajuda] é um estímulo para leituras um pouco mais avançadas?" Parte da resposta de Schwarcz nunca saiu de minha cabeça:

"Este é um leitor em potencial para outros livros. Eu sou um otimista. Costumo dizer que todo bom livro é de autoajuda, só que uns têm uma pretensão mais totalitária sobre a vida das pessoas ou mais imediatista".

Há dois pontos a considerar, penso eu:

1) Ao dizer que o consumidor de livros de autoajuda, potencialmente, chega a outros tipos de publicação, o editor da Companhia das Letras acaba referendando a "teoria do degrau". É como dizer que o leitor de Augusto Cury, por exemplo, poderá, no futuro, apreciar Graciliano Ramos. Hoje, Zíbia Gasparetto; amanhã, Virginia Woolf... Não acredito nisso. Mas discutirei a "teoria do degrau" em outra oportunidade.

2) "Todo bom livro é de autoajuda": o que dizer dessa frase? Para muitos leitores (entre estes, o blogueiro que vos escreve), o ato de ler é, na maior parte das vezes, uma eterna procura. Pelo quê? Ou melhor, por quem? Por nós mesmos, dispersos nas páginas dos livros que vamos acumulando. Queremos encontrar traços definidores daquilo que chamamos (equivocadamente até) nossa personalidade. Lemos principalmente para compreender. E essa compreensão pode ser - como é, aliás, na maioria das vezes - uma tentativa de entender nossos próprios gestos e atitudes, mesmo sendo por meio do que outros escreveram.

Mas o que toda essa ladainha tem a ver com uma obra "maldita", elaborada por um intelectual do século XVII?

. . . . . .


Falemos de outra entrevista**. Em março deste ano, o filósofo Renato Janine Ribeiro conversou com a reportagem da (excelente) Revista de História da Biblioteca Nacional  (disponível aqui). Entre as questões, algumas sobre Thomas Hobbes, especialidade do entrevistado. Para Ribeiro, "Hobbes consegue ser antipático a todas as classes, o que é fabuloso". Perguntado sobre o que o pensador inglês teria a nos dizer hoje, ele responde:

"A grande questão hobbesiana é que o poder político não é a realização da natureza humana. É o contrário do homo politicus grego. Para o grego, você só se torna plenamente humano em sociedade. Não sendo assim, você é um bicho selvagem, como Kaspar Hauser. Com Hobbes, você tem a ideia de que a natureza humana, solta a si própria, levará todos a um conflito que abreviará a duração e a qualidade de nossas vidas. Isso tem muito a ver como o modelo de discurso dominante freudiano: o nosso desejo é infinito, temos que limitá-lo. Tanto em Freud como em Hobbes há esse descompasso  entre o desejo humano e a possibilidade de sua realização".

E mais à frente: "esta ideia de que a vida humana exige restrições marca o pensamento hobbesiano. E isto é algo muito próximo".

Os famigerados livros de autoajuda são escritos para fazer com que seus leitores se achem melhores do que realmente são (ou pelo menos, melhores do que os outros). É você - dizem esses livros - que deve estabelecer seus próprios limites. Hobbes, por sua vez, lembra-nos, a todo o tempo, que  não somos poços de virtude e, sem limites externos a nós, produzimos apenas conflito violento.

Ao teorizar sobre o surgimento do Estado, Thomas Hobbes acabou por dissecar nosso lado monstruoso. Eu me reconheço em suas reflexões. Não consigo imaginar forma mais adequada de "autoajuda"...

Na próxima postagem da série, começo a discutir o Leviatã.

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* O Brasil quer ler. Istoé, São Paulo, n. 1309, 2 jan. 1994, p. 5-7 [entrevista realizada por Apoenan Rodrigues]

** Renato Janine Ribeiro, um filósofo sem medo. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Ano 6, n. 66, mar. 2011, p. 48-53 

BG de Hoje


"Me sinto uma cobaia, um rato enorme/ nas mãos de Deus mulher/ de um Deus de saia/ cagando e andando". Essa é, para mim, a letra mais visceralmente autêntica de CAZUZACobaias de Deus é uma cacetada. O artista carioca estava nos EUA buscando tratamento médico. ANGELA RÔ RÔ pediu, Cazuza enviou o escrito pelo correio e a música foi feita.