quinta-feira, 23 de setembro de 2010

"[...] revolução silenciosa chamada literatura"

Em conferência* que não chegou a proferir, Lima Barreto expõe, de maneira intensamente apaixonada, qual seria, para ele, a função da Literatura (disponível aqui). Em determinado trecho, o autor menciona Crime e Castigo, de F. Dostoiévski e se pergunta: "onde está a beleza dessa estranha obra?". Como encontrar algo belo - ou apreciável - num livro que trata, principalmente, das lucubrações atormentadas de um paupérrimo e desesperado estudante, responsável pela morte brutal de duas pessoas? Responde Lima Barreto:

"[A beleza] Está na manifestação sem auxílio dos processos habituais do romance, do caráter saliente da ideia que não há lógica nem rigor de raciocínio que justifiquem, perante nossa consciência, o assassinato, nem mesmo quando é perpretado no mais ínfimo e repugnante dos nossos semelhantes e tem por destino facilitar a execução de um nobre ideal; e mais: no ressumar de toda a obra que quem o pratica embora obedecendo a generalizações aparentemente verdadeiras, executado que seja o crime, logo se sente outro - não é ele mesmo".

Mas apenas esse mote, esse tema, não seriam suficientes para construir um livro invulgar. Prossegue Barreto:

"É preciso que esse argumento se transforme em sentimento; e a arte, literatura salutar, tem o poder de fazê-lo, de transformar a ideia, o preceito, a regra em sentimento; e mais do que isso, torná-lo assimilável à memória, de incorporá-lo ao leitor, em auxílio de seus recursos próprios, em auxílio de sua técnica".

E acrescenta:

"É verificado por todos nós que, quando acabamos de ler um livro verdadeiramente artístico, convencemo-nos de que já havíamos sentido a sensação que o outro nos transmitiu e pensado no assunto".

Para o escritor carioca, a arte literária contribui para que não se esgarce de vez a tão precária solidariedade humana. Ele considera que

"Ela [a arte literária] sempre fez baixar das altas regiões das abstrações da Filosofia e das inacessíveis revelações da Fé, para torná-las sensíveis a todos, as verdades que interessavam e interessam a perfeição da nossa sociedade; ela explicou e explica a dor dos humildes aos poderosos e as angustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender, uns aos outros, as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais dispersas épocas, das mais divergentes raças, ela se apieda tanto do criminoso, do vagabundo, quanto de Napoleão prisioneiro ou de Maria Antonieta subindo à guilhotina; ela, não cansada de ligar as nossas almas, umas às outras, ainda nos liga à árvore, à flor, ao cão, ao rio, ao mar e à estrela inacessível; ela nos faz compreender o Universo, a Terra, Deus e o Mistério que nos cerca, para o qual abre perspectivas infinitas de sonhos e altos desejos".

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O título desta postagem foi extraído de um pequeno artigo escrito pelo filósofo francês Jacques Rancière** e que analisa também Crime e Castigo.

Dostoiévski é, segundo o filósofo, um representante exemplar "dessa revolução silenciosa chamada literatura". E como se dá essa revolução?

Com Dostoiévski (tal como Balzac, Proust, Faulkner, Italo Svevo, Virginia Woolf, entre tantos outros) houve uma equivalência entre a ordem e a desordem, entre a razão e a desrazão, entre o ser ativo e o ser passivo, nessa complexidade partilhada pela humanidade e que chamamos simplesmente de vida, de acordo com Rancière. Para ele, as intrigas de Crime e Castigo (e de centenas de outras narrativas literárias) indicam

"[...] essa nova maneira de praticar a arte da escrita que se chama literatura e que se manifesta na igualdade dos episódios importantes ou ' insignificantes ', sonhados ou reais, num ritmo feito de estiramentos indefinidos ou de acelerações fulminantes".

Um personagem excepcional como Raskólnikov é movido "apenas por intensidades nômades", por "febres, impulsos e acasos", nos lembra o filósofo. Entretanto, no mundo contemporâneo, não somos todos um pouco assim?

Se há alguma função política e/ou revolucionária na Literatura - e acredito que há - esta reside na sua capacidade de concentrar, num conjunto de palavras pré-ordenadas e organizadas, altas doses de sensações, sentimentos e emoções, das quais podemos nos valer, experimentando outros modos de viver e pensar, diferentes do ordinário a que estamos acostumados.
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* BARRETO, Lima. O Destino da Literatura. In: _____________. Lima Barreto. 2 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico por Antônio Arnoni Prado) [Coleção Literatura Comentada]

** RANCIÈRE, Jacques. De um Dostoiévski a outro. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 mai. 2001, Caderno Mais!, p. 10-11

BG de Hoje

Acho essa versão acústica (a gravação original é da banda The Knife) simples e lindíssima: JOSÉ GONZÁLEZ, Heartbeats.