"Cada
leitor achou encantos com os quais assegurou a posse de uma página que,
por magia, aparece como se nunca tivesse sido lida, fresca e imaculada,
com todas as leituras anteriores agora incorporadas aos próprios átomos
do texto. A história da leitura é, em certo sentido, a história desses
encantos".
Alberto Manguel
Logo no primeiro parágrafo do conto Fatalidade*, de João Guimarães Rosa, o narrador nos apresenta uma personagem ("Meu Amigo") cujas atividades revelam curioso ecletismo ("de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento de cavalaria e delegado de polícia").
Talvez, por causa dessa variedade de ocupações, a personagem tenha um
opinião tão pouco otimista com relação ao viver em comunidade: "A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio".
Cada
vez mais misantropo, não me soam despropositadas essas palavras.
Entretanto, é o caso de perguntar: haveria um modo de tornar a
existência mais suportável dentro de um grupo social? Arriscaria dizer
que sim: por meio da leitura.
No final do ano 2000, numa edição especial da revista Veja, li um lindo artigo escrito pelo ensaísta e romancista argentino (radicado no Canadá) Alberto Manguel**. Intitulado O destino da leitura na era da Web (disponível aqui),
o texto exibe as "vantagens" do livro, numa época em que os meios
digitais/virtuais vêm se afirmando como os principais instrumentos de
comunicação interpessoal, entretenimento, armazenagem e difusão de
informações para centenas de milhões de pessoas, de forma inédita na
história.
Concentrando-se na leitura literária (o ensaio começa falando do clássico romance Robinson Crusoe, de Daniel Defoe), Manguel ressalta esta incongruência de nossa civilização: "Pode-se
viver numa sociedade baseada no livro e, ainda assim, não ler, ou viver
numa em que o livro seja mero enfeite e ser, no sentido mais profundo e
verdadeiro da palavra, um leitor". Para o ensaísta, apesar da imensa quantidade de material escrito que nos cerca, "não somos uma sociedade letrada". E prossegue:
"Aceitamos o livro como um dado comum, mesmo antiquado. O ato de ler, outrora considerado útil e prestigioso, quando não perigoso e subversivo, agora recebe condescendência como passatempo, lento passatempo que não tem eficiência nem contribui para o bem comum".
A
rede mundial de computadores é vista, pelo escritor, de forma crítica,
como um espaço sem historicidade, propícia à autoalienação e ausência
de reflexão aprofundada. Mas, como afirma Manguel,
"Não é o caso de culpar a Internet por nossa falta de interesse em explorar o passado, nem pela preocupação superficial com o mundo em que vivemos. Sua virtude, com eu disse, está na rapidez e na quantidade da informação; não pode dar concentração e profundidade".
Essa função cabe aos livros.
"Estou convencido de que a leitura continua e sobreviverá, desde que persistamos em aplicar palavras ao mundo que nos cerca. Tanta coisa recebeu nome, tanta coisa continuará a receber que, com toda a nossa insensatez, não desistiremos desse pequeno milagre que nos permite um vago entendimento mútuo. Os livros talvez não alterem nosso sofrimento, talvez não nos protejam do mal, talvez não nos digam o que é bom ou belo, e, certamente, não nos resguardam do fado comum da sepultura. Mas livros nos dão a possibilidade de tais coisas, a oportunidade da mudança, a eventualidade de iluminação. Talvez não haja um livro, bem escrito como seja, que possa remover uma gota de dor da tragédia de Kosovo, mas talvez também não se ache um só livro mal escrito quanto seja, que não enseje uma epifania a seu leitor".
Do excerto acima - sem dúvida o mais belo em todo esse maravilhoso ensaio de Alberto Manguel - desejaria destacar este trecho: "não desistiremos desse pequeno milagre que nos permite um vago entendimento mútuo". E talvez seja possível compreender melhor a pergunta formulada no início da postagem.
Para
tornar a vida em comum mais suportável - uma vez que os interesses, as
perspectivas, as afeições individuais são tantas vezes inconciliáveis -
só mesmo através desse "pequeno milagre" que às vezes ocorre quando lemos bons livros.
Na próxima, Italo Calvino.
___________
* ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008
** Este texto de A. Manguel, com tradução e título diferentes (A biblioteca de Robinson),
além de alguns poucos acréscimos, também pode ser encontrado no mesmo
livro que contém o artigo de Z. Bauman citado na postagem anterior:
PORTELLA, Eduardo. Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: UNESCO/Moderna, 2003
BG de Hoje
"But my dreams/ They aren't as empty/As my conscience seems to be", canta Roger Daltrey, nesse belo poema-canção escrito por Pete Townshend: Behind Blue Eyes. No vídeo abaixo, THE WHO ao vivo.