terça-feira, 28 de setembro de 2010

Angela Lago e Selma Maria



Depois de um longo e tenebroso inverno, volto a escrever sobre Literatura Infantojuvenil - afinal, essa é a minha praia e parte do meu ganha-pão.

Sou suspeito para falar do trabalho de Angela Lago* - ilustradora e escritora de quem sou admirador há muito tempo - mas considero, até agora, Marginal à esquerda (Editora RHJ, 2009) o melhor livro que conheci neste ano, independentemente do gênero literário ou da categoria de publicação.

Para início de conversa, é um livro de temas fortes, em que há muita tristeza, contrariando certa imagem estereotipada da Literatura Infantojuvenil, na qual só caberiam amenidades. Fala de miséria, criminalidade, doença, mas também de esperança. A narradora, companheira de um traficante de drogas, conta a pequena-grande história do irmão caçula, cuja vida nunca mais será a mesma, graças ao contato com a Música.

O projeto gráfico é maravilhoso e, tentando reproduzir o falar das grandes periferias brasileiras, Angela Lago é precisa, exata, ampliando o impacto do que diz (levando-se em conta, aliás, o público principal ao qual o texto se destina):

"Mamãe adoeceu e largou o serviço. Zé Pita ofereceu uns duzentos, se não mais, para o Miúdo fazer um avião. Para levar uma brita. Uma pedra, crack".[...]
"E ele, Vivaldino-Miúdo, Marginal-à-esquerda, o saco, era quem buscava o remédio para a dor da mamãe. Morfina, um remédio que é droga também. E a morfina começou a acabar antes do tempo".[...]
"E os dois ainda culpavam o Miúdo. Desfaziam dele. Miúdo Vivaldino era virgem, era trouxa. Tocar violino: coisa de bicha. Um imprestável".

Faço questão de repetir: a melhor obra que li neste ano. E sobre a qual escreverei uma análise mais detida numa próxima postagem.

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Um pequeno tratado de brinquedos para meninos quietos (Editora Print House, 2009), reunião de poemas da arte-educadora Selma Maria, acompanhados de ilustrações de Anne Vidal, é também uma preciosidade. O título do livro lembra coisa do Manoel de Barros. Não à toa, o "poeta pantaneiro" comparece na orelha da publicação e nos diz que "as crianças quietas estão guardando os primeiros conhecimentos do mundo", corroborando o que diz a Psicologia, quando esta destaca a importância essencial do ato de brincar no desenvolvimento das pessoas.

Mas é Guimarães Rosa o autor onipresente, direta e indiretamente citado em todo o livro. Selma Maria realizou intenso trabalho de pesquisa nas cidades mineiras de Cordisburgo, Morro das Garças e Andrequicé. Ela nos diz que descobriu gostar "muito de brinquedo que [a] deixa quieta" e procurava meninos que tivessem esse jeito de brincar (como o Rosa menino). "E o que acabou acontecendo, sem querer na minha vida, foi que viajei lá longe, pelo sertão de Minas Gerais, para conhecer mais desses meninos. E os seus brinquedos".

Além da primeira seção de poemas do livro (Os brincares), destacaria também aquela denominada  Brinquedo-livro, na qual se encontra o poema Corpos:

"As pessoas usam o corpo para contar suas histórias.
Histórias não precisam de livros para existir.
Mas uma história pode se perder fora do livro
e ser encontrada dentro dos olhos do leitor".

Além da seção Brinquedo-terra, que tem o poema Bonecas

"Enrolando o dia e uns panos velhos numa raiz,
uma menina transforma uma mandioca
numa boneca com a cabeça cheia de minhoca".

Ótimos poemas. Ainda mais numa época em que a quietude é tão rara de se encontrar...
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* Conheça também o site da artista: http://www.angela-lago.com.br/

BG de Hoje

O vídeo de O que sobrou do céu, d'O RAPPA, sempre me deixa emocionado. Num país tão desigual quanto este, como tomar decisões que sejam moralmente acertadas? Acho que essa é uma das perguntas que se tenta responder na história paralela que acompanha a canção.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

"[...] revolução silenciosa chamada literatura"

Em conferência* que não chegou a proferir, Lima Barreto expõe, de maneira intensamente apaixonada, qual seria, para ele, a função da Literatura (disponível aqui). Em determinado trecho, o autor menciona Crime e Castigo, de F. Dostoiévski e se pergunta: "onde está a beleza dessa estranha obra?". Como encontrar algo belo - ou apreciável - num livro que trata, principalmente, das lucubrações atormentadas de um paupérrimo e desesperado estudante, responsável pela morte brutal de duas pessoas? Responde Lima Barreto:

"[A beleza] Está na manifestação sem auxílio dos processos habituais do romance, do caráter saliente da ideia que não há lógica nem rigor de raciocínio que justifiquem, perante nossa consciência, o assassinato, nem mesmo quando é perpretado no mais ínfimo e repugnante dos nossos semelhantes e tem por destino facilitar a execução de um nobre ideal; e mais: no ressumar de toda a obra que quem o pratica embora obedecendo a generalizações aparentemente verdadeiras, executado que seja o crime, logo se sente outro - não é ele mesmo".

Mas apenas esse mote, esse tema, não seriam suficientes para construir um livro invulgar. Prossegue Barreto:

"É preciso que esse argumento se transforme em sentimento; e a arte, literatura salutar, tem o poder de fazê-lo, de transformar a ideia, o preceito, a regra em sentimento; e mais do que isso, torná-lo assimilável à memória, de incorporá-lo ao leitor, em auxílio de seus recursos próprios, em auxílio de sua técnica".

E acrescenta:

"É verificado por todos nós que, quando acabamos de ler um livro verdadeiramente artístico, convencemo-nos de que já havíamos sentido a sensação que o outro nos transmitiu e pensado no assunto".

Para o escritor carioca, a arte literária contribui para que não se esgarce de vez a tão precária solidariedade humana. Ele considera que

"Ela [a arte literária] sempre fez baixar das altas regiões das abstrações da Filosofia e das inacessíveis revelações da Fé, para torná-las sensíveis a todos, as verdades que interessavam e interessam a perfeição da nossa sociedade; ela explicou e explica a dor dos humildes aos poderosos e as angustiosas dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender, uns aos outros, as almas dos homens dos mais desencontrados nascimentos, das mais dispersas épocas, das mais divergentes raças, ela se apieda tanto do criminoso, do vagabundo, quanto de Napoleão prisioneiro ou de Maria Antonieta subindo à guilhotina; ela, não cansada de ligar as nossas almas, umas às outras, ainda nos liga à árvore, à flor, ao cão, ao rio, ao mar e à estrela inacessível; ela nos faz compreender o Universo, a Terra, Deus e o Mistério que nos cerca, para o qual abre perspectivas infinitas de sonhos e altos desejos".

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O título desta postagem foi extraído de um pequeno artigo escrito pelo filósofo francês Jacques Rancière** e que analisa também Crime e Castigo.

Dostoiévski é, segundo o filósofo, um representante exemplar "dessa revolução silenciosa chamada literatura". E como se dá essa revolução?

Com Dostoiévski (tal como Balzac, Proust, Faulkner, Italo Svevo, Virginia Woolf, entre tantos outros) houve uma equivalência entre a ordem e a desordem, entre a razão e a desrazão, entre o ser ativo e o ser passivo, nessa complexidade partilhada pela humanidade e que chamamos simplesmente de vida, de acordo com Rancière. Para ele, as intrigas de Crime e Castigo (e de centenas de outras narrativas literárias) indicam

"[...] essa nova maneira de praticar a arte da escrita que se chama literatura e que se manifesta na igualdade dos episódios importantes ou ' insignificantes ', sonhados ou reais, num ritmo feito de estiramentos indefinidos ou de acelerações fulminantes".

Um personagem excepcional como Raskólnikov é movido "apenas por intensidades nômades", por "febres, impulsos e acasos", nos lembra o filósofo. Entretanto, no mundo contemporâneo, não somos todos um pouco assim?

Se há alguma função política e/ou revolucionária na Literatura - e acredito que há - esta reside na sua capacidade de concentrar, num conjunto de palavras pré-ordenadas e organizadas, altas doses de sensações, sentimentos e emoções, das quais podemos nos valer, experimentando outros modos de viver e pensar, diferentes do ordinário a que estamos acostumados.
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* BARRETO, Lima. O Destino da Literatura. In: _____________. Lima Barreto. 2 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico por Antônio Arnoni Prado) [Coleção Literatura Comentada]

** RANCIÈRE, Jacques. De um Dostoiévski a outro. Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 mai. 2001, Caderno Mais!, p. 10-11

BG de Hoje

Acho essa versão acústica (a gravação original é da banda The Knife) simples e lindíssima: JOSÉ GONZÁLEZ, Heartbeats.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Velozes leituras



"Nos tempos cada vez mais congestionados que nos esperam, a necessidade de literatura deverá focalizar-se na máxima concentração da poesia e do pensamento".
 
Italo Calvino - Seis propostas para o próximo milênio

 
 
Nos anos 1980, Italo Calvino foi convidado a proferir as tradicionalíssimas e prestigiosas  Charles Eliot Norton Lectures,  em Harvard. Infelizmente, faleceu antes da data estipulada para o evento, deixando até mesmo de concluir a redação da última delas. Graças ao trabalho de Esther Calvino, porém, as cinco já escritas foram publicadas, inclusive no Brasil*.

O tema das conferências centrava-se em  "alguns valores literários que mereciam ser preservados" nos tempos que virão, segundo o escritor italiano.

Calvino partia do princípio de que os mil anos anteriores ao século XXI foram "o milênio do livro".  E um sinal de que essa era está no fim poderia ser encontrado na "frequência com que nos interrogamos sobre o destino da literatura e do livro na era tecnológica dita pós-industrial". Ele, contudo, não desejava fazer previsões nessa área e mostrava-se otimista: "Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura, como seus meios específicos, nos pode dar".

Já que falamos da velocidade, nas postagens anteriores, como uma das características mais marcantes desses nossos dias internéticos, vale a pena ler o que Calvino escreveu a respeito da RAPIDEZ, um "dos valores ou qualidades ou especificidades da literatura que [lhe] são particularmente caros, buscando situá-los na perspectiva do novo milênio".

Em determinado trecho de sua conferência, o autor de As Cidades Invisíveis reconhece

"[...] que a literatura jamais teria existido se uma boa parte dos seres humanos não fosse inclinada a uma forte introversão, a um descontentamento com o mundo tal como ele é, a um esquecer-se das horas e dos dias fixando o olhar sobre a imobilidade das palavras mudas".

Entretanto, anteriormente, ele já havia afirmado que "[...] numa época em que outros  media  triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda comunicação a uma crosta uniforme e homogênea", a arte literária, diante de tal "concorrência", precisará, de algum modo, ser também mais veloz. Para tanto, o êxito do escritor, tanto em prosa quanto na poesia, estará, de acordo com Calvino,

"[...] na facilidade da expressão verbal, que em alguns casos pode realizar-se por meio de uma fulguração repentina, mas que em regra geral implica uma paciente procura do  mot juste,  da frase em que todos os elementos são insubstituíveis, do encontro de sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado. Estou convencido de que escrever prosa em nada difere do escrever poesia; em ambos os casos, trata-se da busca de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável".

Cabe aos poetas e prosadores do novo milênio refletirem (ou não) sobre essa proposta.

Na próxima, Lima Barreto e Jacques Rancière.
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* CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 [tradução de Ivo Barroso]

BG de Hoje

Taí uma das canções pop que não pode faltar em uma boa festa: Roam, dos B-52's. Na edição do vídeo, repare nos diferentes figurinos e penteados das adoráveis Kate Pierson e Cindy Wilson ao longo do tempo.

sábado, 11 de setembro de 2010

Milagres



"Cada leitor achou encantos com os quais assegurou a posse de uma página que, por magia, aparece como se nunca tivesse sido lida, fresca e imaculada, com todas as leituras anteriores agora incorporadas aos próprios átomos do texto. A história da leitura é, em certo sentido, a história desses encantos".
Alberto Manguel

 
 
Logo no primeiro parágrafo do conto Fatalidade*, de João Guimarães Rosa, o narrador nos apresenta uma personagem ("Meu Amigo") cujas atividades revelam curioso ecletismo ("de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento de cavalaria e delegado de polícia"). Talvez, por causa dessa variedade de ocupações, a personagem tenha um opinião tão pouco otimista com relação ao viver em comunidade: "A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio".

Cada vez mais misantropo, não me soam despropositadas essas palavras. Entretanto, é o caso de perguntar: haveria um modo de tornar a existência mais suportável dentro de um grupo social? Arriscaria dizer que sim: por meio da leitura.

No final do ano 2000, numa edição especial da revista Veja, li um lindo artigo escrito pelo ensaísta e romancista argentino (radicado no Canadá) Alberto Manguel**. Intitulado O destino da leitura na era da Web (disponível aqui), o texto exibe as "vantagens" do livro, numa época em que os meios digitais/virtuais vêm se afirmando como os principais instrumentos de comunicação interpessoal, entretenimento, armazenagem e difusão de informações para centenas de milhões de pessoas, de forma inédita na história.

 
Concentrando-se na leitura literária (o ensaio começa falando do clássico romance Robinson Crusoe, de Daniel Defoe), Manguel ressalta esta  incongruência de nossa civilização: "Pode-se viver numa sociedade baseada no livro e, ainda assim, não ler, ou viver numa em que o livro seja mero enfeite e ser, no sentido mais profundo e verdadeiro da palavra, um leitor". Para o ensaísta, apesar da imensa quantidade de material escrito que nos cerca, "não somos uma sociedade letrada". E prossegue:

"Aceitamos o livro como um dado comum, mesmo antiquado. O ato de ler, outrora considerado útil e prestigioso, quando não perigoso e subversivo, agora recebe condescendência como passatempo, lento passatempo que não tem eficiência nem contribui para o bem comum".

A rede mundial de computadores é vista, pelo escritor, de forma crítica, como um espaço sem historicidade, propícia à autoalienação e ausência de reflexão aprofundada. Mas, como afirma Manguel,

"Não é o caso de culpar a Internet por nossa falta de interesse em explorar o passado, nem pela preocupação superficial com o mundo em que vivemos. Sua virtude, com eu disse, está na rapidez e na quantidade da informação; não pode dar concentração e profundidade".

Essa função cabe aos livros.

"Estou convencido de que a leitura continua e sobreviverá, desde que persistamos em aplicar palavras ao mundo que nos cerca. Tanta coisa recebeu nome, tanta coisa continuará a receber que, com toda a nossa insensatez, não desistiremos desse pequeno milagre que nos permite um vago entendimento mútuo. Os livros talvez não alterem nosso sofrimento, talvez não nos protejam do mal, talvez não nos digam o que é bom ou belo, e, certamente, não nos resguardam do fado comum da sepultura. Mas livros nos dão a possibilidade de tais coisas, a oportunidade da mudança, a eventualidade de iluminação. Talvez não haja um livro, bem escrito como seja, que possa remover uma gota de dor da tragédia de Kosovo, mas talvez também não se ache um só livro mal escrito quanto seja, que não enseje uma epifania a seu leitor".

Do excerto acima - sem dúvida o mais belo em todo esse maravilhoso ensaio de Alberto Manguel - desejaria destacar este trecho: "não desistiremos desse pequeno milagre que nos permite um vago entendimento mútuo". E talvez seja possível compreender melhor a pergunta formulada no início da postagem.

Para tornar a vida em comum mais suportável - uma vez que os interesses, as perspectivas, as afeições individuais são tantas vezes inconciliáveis - só mesmo através desse "pequeno milagre" que às vezes ocorre quando lemos bons livros.

Na próxima, Italo Calvino.
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* ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008

** Este texto de A. Manguel, com tradução e título diferentes (A biblioteca de Robinson), além de alguns poucos acréscimos, também pode ser encontrado no mesmo livro que contém o artigo de Z. Bauman citado na postagem anterior: PORTELLA, Eduardo. Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: UNESCO/Moderna, 2003


BG de Hoje

"But my dreams/ They aren't as empty/As my conscience seems to be", canta Roger Daltrey, nesse belo poema-canção escrito por Pete Townshend: Behind Blue Eyes. No vídeo abaixo, THE WHO ao vivo.


sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Livros, leitura e sociedade



Certa vez, no extinto blog Ração das Letras, fiz referência a um artigo do sociólogo Zygmunt Bauman* a respeito do papel do livro - e tudo o que este representa em termos de conhecimento e cultura - nos nossos tempos globalizados. Reli o texto nesse "período de hibernação" e, mais uma vez, me rendo à sabedoria do pensador polonês.

O artigo é inspirado por um debate bastante frequente na atualidade: qual será o futuro do livro?

Diante dos novos recursos tecnológicos e engenhocas eletrônicas, este objeto tornar-se-á peça de museu, simplesmente obsoleto - ou pior - traste a ser lançado nas latas de lixo da história? Veremos diminuir aceleradamente o número de leitores (principalmente de Literatura) até não restar mais nenhum? Ou, ao contrário, presenciaremos um incremento sem precedentes da leitura e o livro apenas mudará de suporte, transferindo-se do papel para as telas dos PCs, Kindles, iPads e outros aparelhos?

O sociólogo, sem deixar seduzir-se pela enganosa futurologia, acredita que "não é a tecnologia da edição e da distribuição que determinará se o livro vai tecer (ou, em um mesmo ímpeto, desfazer) vínculos entre comunidades humanas, nem qual será seu lugar em nossas culturas compartilhadas ou separadas na forma e no conteúdo de nossa humanidade". Ele considera que o livro "tem sido, acima de tudo, uma narrativa relatada em perpétuo diálogo com a experiência humana", desde que chegou à forma física com a qual nos habituamos. Se queremos especular sobre o futuro desse produto de nossa cultura, é na sua relação mais profunda com a trajetória existencial da humanidade que devemos tentar encontrar mais esclarecimentos.

No último século, o mundo modificou-se consideravelmente, do ponto de vista político, econômico e social. Por isso Zygmunt Bauman pergunta: "Quais são os serviços que o livro é suscetível de prestar ao nosso tipo de sociedade?". Para responder a isso deve-se "pensar menos nas mudanças tecnológicas da produção e da distribuição do livro do que seria desejável para os profetas da revolução eletrônica; talvez convenha examinar mais de perto a natureza mutável do mundo em que vivemos, assim como as mudanças na maneira de experimentá-la".

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Este nosso mundo globalizado não é flor que se cheire: inseguro, instável, marcado por um apreço quase irracional pela velocidade e pela simultaneidade absolutas e por um desprezo mal dissimulado pela reflexão aprofundada e pela História.

Nos dias de hoje, convive-se com muita informação e esta é sempre fragmentada, além de esgotar-se rapidamente, logo sendo substituída por outra, mais "quente" e "atual". Segundo Bauman, "o mundo nos é oferecido como um contêiner repleto de acontecimentos para consumo imediato, sob os holofotes e de uma só vez. Em tal mundo, o sentido da vida aparece como uma série de episódios, em que cada um deve ser consumido de modo semelhante".

O livro, durante séculos, cumpriu a importante e nobre missão de tentar lançar alguma luz na turbulenta existência humana e sua força, como nos lembra Bauman, sempre residiu

"na capacidade totalmente específica de ligar a biografia à história, o privado ao público, o individual ao social, os momentos vivenciados ao sentido da vida. Este trabalho de síntese é difícil de apreender em um mundo que renunciou ao pensamento consistente e de longo prazo: sua significação (de fato seu caráter indispensável) tende a escapar dos habitantes deste mundo. Nossa atenção desloca-se depressa demais para nos permitir fazer uma pausa e refletir; donde o fato de que a demanda por textos que ofereçam tal possibilidade não cessa de diminuir".

"A prática da narrativa alimentou a experiência comum do mundo que, por sua vez, alimentou a narrativa", lemos no artigo aqui discutido. Entretanto, como vimos, parece haver um divórcio entre o que buscam os cidadãos globalizados contemporâneos e o que oferecem os livros que se negam a ser somente mercadoria. Bauman encerra afirmando que

"Os livros estão condenados a compartilhar a sorte das sociedades das quais fazem parte. Quando estivermos inquietos com o futuro dos livros, consideremos, antes de tudo, com mais atenção a sociedade e suas tendências. Para tornarmos os livros mais adaptados à sociedade em que vivemos, estejamos vigilantes para evitar que a sociedade se torne inadaptada aos livros".

Na próxima postagem, será a vez de Alberto Manguel falar sobre a importância da leitura e dos livros.
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* BAUMAN, Zygmunt. O livro no diálogo global entre culturas. In: PORTELLA, Eduardo (Org.). Reflexões sobre os caminhos do livro. São Paulo: UNESCO/Moderna, 2003. p. 15-33

BG de Hoje

Nesse "período de hibernação", passei a valorizar ainda mais o "conselho" de LUIZ MELODIA, na sua canção Congênito: "Se a gente falasse menos, talvez compreendesse mais".