quarta-feira, 24 de março de 2010

É possível reencantar o mundo?


No livro III de sua obra mais famosa (O mundo como vontade e representação*), o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, comparando ciência e arte, escreveu:

"Enquanto a ciência, perseguindo a torrente incessante e instável das causas e efeitos [...], em cada meta atingida é continuamente forçada adiante, sem poder atingir um objetivo último, uma satisfação plena, assim como não podemos correndo atingir o ponto onde as nuvens tocam o horizonte; ao contrário, a arte sempre está em seu objetivo. Pois ela arranca do curso dos acontecimentos do mundo o objeto de sua contemplação, isolando-o frente a si; e este algo individual, que era uma parte intensamente pequena naquela torrente, torna-se seu representante do todo, um equivalente do infinitamente numeroso no espaço e no tempo: ela permanece portanto neste individual, detém a roda do tempo, as relações desaparecem para ela, somente o essencial, a ideia, é seu objeto. Assim podemos mesmo designá-la como o modo de encarar as coisas independentemente do princípio de razão, em oposição àquele que a este obedece, que é a via da experiência e da ciência".

E, para Schopenhauer, a música é a manifestação artística que melhor representa essa sublime característica da arte: ser independente do princípio de razão. Num mundo em que o discurso técnico-científico é tão determinante, deve-se, pelo menos de vez em quando - como "reserva crítica" - não esquecer essa importante lição oferecida pela fruição artística e estética.
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Para continuar a conversa, peço a gentileza da leitura deste excerto do romance As brasas, do escritor húngaro Sándor Márai **. Acredito que o esforço não será em vão.

"Numa noite de verão, enquanto Konrad e a mãe de Henrik estavam tocando a quatro mãos uma peça para piano, algo aconteceu. À espera do jantar, o oficial da Guarda e seu filho, sentados num canto do salão, escutavam educadamente a música, com a condescendência contrita e a tolerância de quem pensa: ' a vida toda é um dever, também precisamos suportar a música. Não podemos nos mostrar entediados diante de uma senhora '. A condessa tocava com enlevo: executavam a Fantasie polonaise de Chopin. Na sala tudo parecia vibrar. Enquanto aguardavam, educados e pacientes, em suas poltronas num canto do salão, pai e filho perceberam que naqueles dois corpos, da mãe e de Konrad, estava se passando algo estranho. Da música parecia se desprender uma força mágica capaz de levantar os móveis e inflar as pesadas cortinas de seda das janelas. Era como se todas as coisas velhas e mofadas, enterradas há tempos nos corações humanos recomeçassem a viver, como se no coração de cada criatura se aninhasse um ritmo mortal que, em dado momento da vida, poderia começar a pulsar com violência implacável. Os pacientes ouvintes compreenderam que a música representava um perigo. A Fantasie polonaise era só um pretexto para a explosão de forças que se agitam e fazem eclodir tudo o que costuma ser cuidadosamente camuflado pela ordem estabelecida. Sentavam-se rígidos diante do piano, com o corpo ereto vagamente inclinado para trás, como se a música tivesse lançado no espaço um coche alado mítico, puxado por fogosos corcéis invisíveis, e como se fossem eles que segurassem as rédeas das forças que se soltaram".

Henrik (pelo menos naquele momento) e seu pai - ambos militares - só conseguem ver o mundo sob a ótica da ordem, da lógica inflexível. A mãe dele e Konrad (mesmo tendo também a formação de soldado), por sua vez, não desprezam o que há de onírico, de não ordenado na existência (pelo menos naquele momento); mais que isso, valorizam justamente essa parte da vida. O romance de Márai traz muito mais questões - e será tema de um postagem específica, brevemente - mas esse trecho merece destaque por mostrar que, da música, como de outras formas de arte, pode "desprender-se uma força mágica". E é a arte que reencanta este mundo tão preocupado em manter - às vezes, em vão - todas as coisas nos seus devidos lugares. Falo diretamente aos pretensos racionalistas (como este blogueiro que vos escreve) e sua sede por regularidades.
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* SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação, III pt. _______________. In: O mundo como vontade e representação, III pt.; Crítica da filosofia kantiana; Parerga e Paralipomena, cap. V, VIII, XII, XIV. São Paulo: Abril Cultural, 1980 [tradução de Wolgang Leo Maar] (Coleção Os pensadores)

** MÁRAI, Sándor. As brasas. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 [tradução de Rosa Freire d' Aguiar]

BG de Hoje

Costumo respeitar as inclinações religiosas das pessoas; para usar um chavão, "cada um, cada um". Não saio por aí impingindo meu ateísmo às pessoas com quem convivo. Entretanto, vivem enchendo o meu saco com proselitismo religioso. Parece que querem me curar de uma "doença"! Sempre que topo com "malas" assim (e ontem topei com uma dessas pessoas!) recomendo que ouçam Show Me How To Live, do Audioslave ou, melhor ainda, Get Up, Stand Up, obra-prima do gênio BOB MARLEY.