Devo dizer que fiquei um pouco pesaroso, hoje, ao saber da morte do poeta, filósofo e letrista musical Antonio Cicero.
Tinha (e tenho) grande admiração por sua escrita e também pela maneira de expressar seu pensamento a respeito de tópicos como racionalidade e modernidade, inclusive em textos voltados para um público mais amplo (Cicero foi colunista na Folha de S. Paulo entre 2007 e 2010). Isso não quer dizer que houvesse sempre concordância de minha parte.
Li alguns de seus livros, falei de alguns de seus poemas aqui no Besta Quadrada e sempre recomendei seu blog (Acontecimentos) desde que me instalei neste espaçozinho internético. Por falar em seu blog, eu havia mesmo estranhado a falta de atualização das publicações (a última aconteceu em 23/10/2023), uma vez que o autor não costumava ficar muito tempo sem postar algo.
Diagnosticado com Alzheimer, Cicero resolveu (antes que os sintomas do mal piorassem muito, ao que parece) viajar para Zurique e, lá na Suíça, submeter-se a um procedimento de morte assistida - prática legalmente permitida naquele país e que, a meu ver, denota alto teor civilizatório e de decência.
Sua carta de despedida foi simples ¹; ainda assim, significativa e tocante.
"Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.
Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.
Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.
Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.
A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.
Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!"
Encerro com um um trecho de Inverno, uma das composições de Antonio Cicero que mais aprecio. Serviu de letra para uma canção de Adriana Calcanhoto, presente no disco A fábrica do poema (1994). Alguns anos depois, foi incluída no livro Guardar.
"Há algo que jamais se esclareceu:onde foi exatamente que largueinaquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?Lá mesmo esquecique o destinosempre me quis sóno deserto sem saudades, sem remorsos, sósem amarras, barco embriagado ao mar"
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¹ A carta foi reproduzida em matéria do G1. Disponível em <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/10/23/antonio-cicero-escritor-membro-da-abl-morre.ghtml>. Acesso em 23/10/2024
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