quinta-feira, 20 de junho de 2024

Os mais difíceis aprendizados

 

 "Conhece-te a ti mesmo".

 

Qual o significado dessa frase? 

No frigir dos ovos, quer dizer o quê?

Dando uma rápida passeada pelo Google, achei a máxima num artigo de empreendedorismo do Sebrae, noutro de uma fundação vinculada ao espiritismo e também no texto de uma consultoria para "educação corporativa", entre outros URLs.  Pelo visto, o  dito também dá o ar da graça em páginas e perfis do Facebook e do LinkedIn como ponto de partida para mensagens motivacionais. Em comum nessas várias aparições está a ideia de que conhecer-se a si mesmo deve ser algo como um exercício de autoanálise com vistas a fazer do sujeito uma pessoa supostamente melhor - a depender do enfoque, uma pessoa mais equilibrada, ou mais produtiva, ou mais preparada para a liderança, etc.

Na cultura pop, a frase fez algum sucesso graças a Matrix, lançado em 1999. O(a) eventual leitor(a) deve se lembrar da cena em que Neo entra num prosaico apartamento para consultar o oráculo e saber se é ou não o Escolhido. É recebido por uma senhora que assava biscoitos. Ela aponta para uma plaqueta na porta da cozinha em que está escrito Temet nosce. Marilena Chaui faz uso dessa cena em Convite à Filosofia (um livro voltado principalmente para o Ensino Médio¹), explicando que ela "é a representação, no futuro, de um acontecimento do passado, ocorrido há 23 séculos, na Grécia",  no qual figurava Sócrates.

Chaui estabelece outras relações entre o protagonista do filme e o personagem mais destacado dos diálogos platônicos para, algumas páginas adiante, apresentar uma definição:

"Alguém que tomasse essa decisão [de colocar em questionamento os outros e a si próprio] estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência. Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a cumprir o que dizia o oráculo de Delfos: 'Conhece-te a ti mesmo'. E estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica" [grifo da autora]

E complementa: "Assim, uma primeira resposta à pergunta 'O que é filosofia?' poderia ser: 'A decisão de não aceitar como naturais, óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido' ".

Temos então um outro sentido: conhecer-se a si mesmo deve ser parte importante de uma disposição que leve o sujeito a desenvolver uma atitude filosófica (ou seja, uma atitude inquiridora) perante à existência, sem aquiescer pura e simplesmente às convenções e praxes vigentes e, quem sabe, capacitando-o a filosofar  futuramente (claro, se isso for de seu interesse).

Essas duas noções - conhecer-se a si mesmo como parte de uma estratégia de autoaprimoramento  e conhecer-se a si mesmo como "ferramenta" essencial para a adoção dessa chamada atitude filosófica - revelam diferenças, embora tenham a mesma fonte (a inscrição no templo de Apolo, em Delfos, posteriormente incorporada ao legado de Sócrates).

A primeira perspectiva, encontrada em textos relacionados ao discurso empreendedorista, nas dicas de como progredir no mundo corporativo ou simplesmente em mensagens "positivas", "good vibes", publicadas em mídias sociais, é resultado, penso eu, de um entendimento curto, não necessariamente errôneo, do aforismo délfico. Vou reproduzir um trecho do artigo encontrado no site do Sebrae para melhor ilustrar o que estou querendo dizer: "A famosa frase de Sócrates se transformou no que hoje chamamos de autoconhecimento, uma habilidade cujas pessoas que conhecem a si mesmas e sabem o que são e o que representam têm [sic]. A partir do autoconhecimento, é possível identificarmos as habilidades e capacidades que possuímos e o que nos motiva, evidenciando, assim, nosso propósito de vida".

Nesse caso, conhece-te a ti mesmo poderia ser traduzido como: liste suas virtudes e defeitos, seus pontos fortes e fracos, faça uma autoavaliação e veja como tudo isso auxilia ou atrapalha sua profissão/ocupação ou suas decisões financeiras (porque, afinal, essa perspectiva casa muito bem com a conformação capitalista).

Por outro prisma, a segunda interpretação vai além do simples autoconhecimento como competência a ser adquirida para determinado fim: nesse caso, conhece-te a ti mesmo poderia ser traduzido como: busque as razões de suas crenças, de suas convicções e de seus sentimentos e torne-as matéria de reflexão.

Há quem defenda - bambambãs do mundo acadêmico, como Paulo Ghiraldelli Jr, por exemplo - que a incorporação daquela mensagem colocada lá no templo de Delfos séculos e séculos atrás tem pouco ou nada a ver com isso, pois deriva de uma visão vulgarizada de Sócrates, não muito condizente com as circunstâncias históricas. Quem sou eu, porém, para imiscuir-me nesse debate, um reles blogueiro que nem sequer conseguiu terminar a graduação.

Além do mais, o tema do "conhece-te a ti mesmo" me ocorreu por causa de uma canção de Gilberto Gil, lançada há cerca de 51 anos, escutada por mim tantas outras vezes ao longo da vida, mas que só me fez parar para pensar mesmo há apenas algumas semanas. 

E é essa canção que desejo realmente discutir na postagem de hoje. 

Começo reproduzindo a letra:

 

PRECISO APRENDER A SÓ SER
                                                                            

Sabe, gente,
É tanta coisa pra gente saber.
O que cantar, como andar, onde ir
O que dizer, o que calar, a quem querer.

Sabe, gente,
É tanta coisa que eu fico sem jeito
Sou eu sozinho e esse nó no peito
Já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder.

Sabe, gente,
Eu sei que, no fundo, o problema é só da gente
E só do coração dizer não, quando a mente
Tenta nos levar pra casa do sofrer.

E quando escutar um samba-canção
Assim como: 
Eu preciso aprender a ser só
Reagir e ouvir o coração responder:
Eu preciso aprender a só ser.

Sabe, gente,
É tanta coisa que eu nem quero saber.

Como escrito acima, as primeiras apresentações da canção para uma plateia ocorreram em 1973, ano seguinte ao retorno do cantor e compositor baiano ao Brasil, após o exílio. Uma dessas performances foi particularmente marcante: um show na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (mais tarde registrado no disco Ao vivo na USP), realizado após o sequestro, tortura e morte de um estudante da instituição pelo DOI-CODI. Houve participação direta do público, dialogando com o artista sobre variados temas. A apresentação é encerrada justamente com a canção da qual estamos falando.

Segundo Vinícius R. Souto e Almir C. Barreto, em artigo publicado em 2021 ², "apesar de elaborada sob a repressão da ditadura militar que assolava o país, a canção de Gil é também marcada pelos valores libertários trazidos pela contracultura". Entre estes, "destacavam-se a liberdade de expressão das escolhas comportamentais individuais e a investigação de preceitos e práticas das filosofias orientais. Esse último é central em  Preciso aprender a só ser".

Mencionado em duas passagens, "o coração - símbolo do sensível, da intuição, do espontâneo - é a solução para as questões provocados pela mente - símbolo da racionalidade, da lógica, da cultura ocidental". Ainda de acordo com os mesmos articulistas:"Esse modo de ser e estar no mundo, que reconhece os pensamentos em sua abundância e fugacidade como algo a ser moderado e balanceado, está identificado com o que, de maneira geral, as filosofias das culturas orientais propagam"  - por exemplo, o taoísmo (ou daoísmo, como queiram).

O ouvinte, imediatamente a partir do título, sabe que a criação de Gil faz uma conexão direta com outra (Preciso aprender a ser só), cujos autores são Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, lançada em 1964, e interpretada por vários artistas (minha versão favorita é com Alaíde Costa). Para além do jogo de palavras (ser só - só ser), ambas pertencem ao gênero que se convencionou chamar de samba-canção e "o centro tonal de Preciso aprender a só ser está em Lá maior, assim como na canção referência", observam Souto e Medeiros. O importante aqui, porém, são as distinções. Embora as duas tematizem a solidão e a angústia, os sentimentos expressos no trabalho dos irmãos Valle advêm da desilusão amorosa, enquanto que, na composição de Gilberto Gil, o primeiro estado (a solidão) é proposto "como local de recolhimento, de liberdade" - nas palavras do próprio autor: 'resgate do prazer dessa solidão, como um grande refúgio, igual a um grande casulo onde você é você' -, e o segundo estado (a angústia), por sua vez, "é de caráter existencial, do indivíduo diante das tantas possibilidades e responsabilidades a respeito de como colocar-se no mundo".

Na conclusão de seu artigo, Souto e Medeiros escrevem:

"Quem esperava que Gilberto Gil exaltasse os ânimos da audiência na USP, abalados pela morte de Alexandre Vannucchi Leme [o estudante sequestrado pelo DOI-CODI], talvez tenha se decepcionado. Cantada como um acalanto, ao final de um show carregado de discussões e reflexões, Preciso aprender a só ser afirmou a necessidade de uma reestruturação pessoal, íntima. A busca proposta era de conciliar os próprios contrários, o oriental e o ocidental de  Oriente, Chiclete com banana - música que se seguiu a  Oriente na apresentação -, o Objeto sim, objeto não, os públicos da música de protesto e os tropicalistas, e [...] o 'ser só' com o 'só ser', a solidão como abrigo. É o contraditório como humano, a pluralidade de opções vista como potência, os opostos como complementares, valores fundamentais de uma democracia subtraída naquele momento [1973]. Nas palavras do próprio Gilberto Gil sobre sua canção, 'é como se ela [Preciso aprender a só ser] colocasse o interlocutor à vontade e fosse feita para humanizar os ambientes' "

Quando se tem em conta o contexto histórico, versos como "O que cantar, como andar, onde ir,/ O que dizer, o que calar, a quem querer" - para além do cerceamento típico das ditaduras - nos fazem pensar num certo patrulhamento com que o artista baiano talvez fosse obrigado a lidar; afinal ele e os tropicalistas não eram vistos, por parte da esquerda da época, como suficientemente engajados na luta contra a ditadura (mesmo Gil tendo sido preso pelos militares e composto, por exemplo,  Cálice, junto com Chico Buarque). 

Analisar a canção contextualmente é bastante enriquecedor, não há dúvida, mas vou me permitir ir um pouco além, mirando-a com os olhos de hoje, sem, contudo, forçar os limites da interpretação. Se concordarmos que  Preciso aprender a só ser  afirma "a necessidade de uma reestruturação pessoal, íntima", tal "conselho" vale em qualquer época.

Há, de fato, "tanta coisa pra gente saber". E há também muita cobrança em torno disso. Junto aos deveres que se espera de um cidadão com um mínimo de escrúpulo no século XXI, existe a avalanche de informação que nos engole todos os dias, chegando até a sufocar. Não sei você, eventual leitor(a), mas inúmeras vezes me pego perguntando: é essa a conduta que devo mesmo seguir em tal ou qual questão? Será que agi suficientemente cônscio nessa ou naquela situação?

Aqui o conhece-te a ti mesmo  e o  preciso aprender a só ser  se encontram. Pouca coisa no mundo é mais difícil do que se investigar - admitir os próprios preconceitos, reconhecer falhas pessoais, dar-se conta das próprias limitações (intelectuais e emocionais) - e do que se aceitar (o advérbio    é pequenininho, tem apenas duas letras, mas assume um significado imenso na letra de Gil). A meu ver, são aprendizados que nunca chegarão a um término.

Diante disso, os dois últimos versos da canção atualmente têm me feito um bem danado:

"Sabe, gente,/ É tanta coisa que eu nem quero saber".

Uma forma de escapismo? Não creio. Acho que é mais a constatação de que, apesar de tanto esforço (e não se pode simplesmente deixar o mundo pra lá, se nos pensamos como indivíduos responsáveis), não conseguiremos compreender o tanto que gostaríamos de compreender.

_______________

¹ Convite à Filosofia (Editora Ática, 14ª edição, 2012) é uma publicação, a meu ver, de introdução à disciplina e, portanto, pode ser lida por qualquer interessado em se iniciar nesse campo do conhecimento, independentemente de ser ou não um estudante secundarista. Aliás, nunca é demais lembrar que, desde a implementação do famigerado Novo Ensino Médio, a Filosofia não tem mais um espaço específico na grade curricular dessa etapa da educação básica, convertendo-se num componente da área Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

² SOUTO, Vinícius Rangel; BARRETO, Almir Cortes. Do 'ser só' ao 'só ser': uma análise da canção Preciso aprender a só ser, de Gilberto Gil, e seus (con)textos. Per Musi : Scholarly Music Journal, n°41, 2021, p.1-21. Disponível em:  <https://doi.org/10.35699/2317-6377.2021.33529>.  Acesso em 09/06/2024

BG de Hoje

Obviamente, Preciso aprender a só ser, de GILBERTO GIL.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Distanciar-se do embrutecimento

 
"A ciência, com muita poesia,
descobriu que somos feitos
com a mesma matéria
das estrelas,
e até nossos pensamentos
brilham, estelarmente.

Por isso convém andar
com delicadeza e cuidado:
nossos gestos e palavras
- já que também 
somos estrelas -
podem mudar o universo.

Universo, de Roseana Murray - Manual da delicadeza: de A a Z

 

 

Está difícil, cada vez mais difícil, o convívio em áreas urbanas.

Além dos riscos e da violência decorrentes das ações criminosas propriamente ditas (assaltos, extorsões, homicídios, estupros, etc.), sempre se pode acrescentar algo à lista de problemas: montes de lixo e entulho largados onde não se deve; o cheiro insuportável de urina nas localidades centrais; poluição sonora nas mais variadas formas; as vias entupidas de carros estacionados ou tentando se locomover; a descortesia como primeira reação diante de qualquer contratempo, mesmo os menores...

Fomos (e continuamos a ser) condicionados a desvalorizar a ideia do viver coletivamente,  levados a evitar a colaboração uns com os outros. Somos, isso sim, instigados a agir isoladamente: pessoas que precisam levar vantagem e se dar bem sobre os outros em tudo. A (mal denominada) lei de Gerson. Farinha pouca, meu pirão primeiro. A exacerbação do individualismo. No limite, o risco de não conseguirmos reverter os efeitos da atomização social.

Para piorar, há aqueles que sentem dentro de si uma irrefreável necessidade de promover intimidação. Entre estes, eu incluo, sem qualquer receio, os criadores/donos/tutores de cães da raça pitbull.

Não é aconselhável generalizar. Evitarei, contudo, a precaução nesse caso. Duvido muito que a ferocidade e a robustez dessa variedade específica de cachorro não são os principais motivos para que seja comprada (pois também não acredito que os muitos exemplares do animal encontrados por aí vieram de adoção). Quem mantém um pitbull quer aterrorizar os outros, simples assim, ainda que alegue ser para vigilância e proteção (não caio nessa). O sujeito passeando na rua com o bicho ao lado parece almejar uma espécie de mutualismo (perdoem-me os biólogos pelo abuso no emprego do termo), tomando emprestado para si - pelo menos imageticamente - o terror que o cão infunde. O recado dado é: "Também sou uma ameaça. Vai encarar?".

Eu não vou. Se, mesmo à distância, avisto o cachorro e seu acompanhante fanfarrão, retrocedo, mudo de rota, entro em alguma loja, tudo para não me aproximar.

Outro dia estava num bar que frequento aqui em Belo Horizonte e me aparece um tipo desses: senta-se à mesa na calçada, cheio de si, trazendo um pitbull marrom imenso, seguro apenas pela coleira ¹. Foi-se embora a pouca satisfação que estava tendo ao tomar minha cerveja e minha dose de cachaça no balcão. Pedi a conta e saí. Vale dizer que o cidadão foi estudante em uma escola onde trabalhei anos atrás e era o típico aluno-problema (não vou aqui me deter na adequação ou não do termo). Agora que é um adulto, não o tenho como exemplo de pessoa cordial.

O(a) eventual leitor(a) certamente ouviu ou leu a respeito de ataques de pitbull que resultaram em gente morta ou com ferimentos graves. Em alguns incidentes, a vítima era o próprio criador/dono/tutor do cachorro. Para ser honesto, não se tem, até onde eu saiba, nenhum estudo que aponte essa raça como sendo inerentemente mais agressiva do que outras. Como escrevi acima, contudo, não procurarei ser precavido na minha arenga. Esses cães são pavorosos.

Existem cerca de 340 a 350 raças reconhecidas pela Federação Cinológica Internacional e uma parte dessas com certeza é de animais grandes e capazes de fazer um potencial delinquente pensar duas vezes antes de arriscar qualquer coisa. Não é frequente, porém, vermos muitos desses outros cachorrões sendo exibidos por aí. A preferência pelo pitbull não tem a ver com a procura por um cão de guarda ou porque se tem uma afeição particular pelo monstrengo. Escolhe-se, como escrevi acima, para se mostrar como alguém que intimida (a má reputação da fera garante isso) e, portanto, alguém que não deve ser contrariado.

Penso que os criadores/donos/tutores desse tipo de cachorro são pessoas embrutecidas. Desconfio que vários desses indivíduos já deviam manifestar uma aptidão para a escrotice desde pequenininhos, mas, ao falar em embrutecimento, quero dizer com isso que houve (e há) escassez de delicadeza na vida desse pessoal.

Aqui vai uma autocrítica. Nunca me vi como uma pessoa especialmente gentil e sensível. Preciso estar sempre vigilante para conter meu primeiro impulso - a rispidez - no trato com outras pessoas no dia a dia. Demoro a identificar refinamentos e perceber o que há de belo em muitos objetos e fenômenos com as quais me deparo. E tenho dificuldade em me enternecer. 

A leitura literária, entretanto, há muito veio em meu socorro e ajudou a atenuar esses traços detestáveis. Falo a verdade: já fui poupado de muitos constrangimentos e embrulhadas nessa vidinha ordinária porque, graças à literatura, consegui atingir certa compreensão - restrita, mas valiosa - do que nos faz ser o que somos, bem como passei a ter um olhar menos obtuso sobre as coisas. A literatura me trouxe delicadeza, posso dizer.

Tenho quase certeza que criadores/donos/tutores de pitbull não tentam se colocar no lugar dos outros. Não ouvem boa música. Não abandonam nem por um segundo sua crença no cada-um-por-si.

Muito provavelmente, claro, também não leem literatura.

Em abril deste ano, a poeta Roseana Murray foi atacada por três cães pitbull numa manhã, quando saiu para fazer atividade física. Bastante ferida, permaneceu 13 dias internada e teve um dos braços amputados. Os animais, provenientes de uma das casas vizinhas, estavam soltos na rua e sem focinheira, descumprindo a legislação do Estado do Rio de Janeiro. Até onde sei, as três pessoas (dois homens e uma mulher) identificadas como responsáveis pelos cachorros estão sendo denunciadas por maus-tratos, não terem guardado com a devida cautela os animais e lesão corporal culposa, mas respondem ao processo em liberdade.

Esse caso é bem ilustrativo do que estou tentando expor hoje. Uma senhora de mais de 70 anos, artista da palavra, sai de casa para se exercitar e - boom! - a brutalidade da vida urbana ² avança sobre ela impiedosamente, devido à negligência e (ouso dizer) a insensibilidade de vizinhos.

Como a grande maioria dos leitores, conheci o trabalho de Roseana Murray através de seus livros voltados para crianças e adolescentes. Classificados poéticos (1984) tornou-se um clássico da literatura infantojuvenil brasileira, mas meu preferido é Casas (1994). Em 2001, a escritora publicou um volume intitulado justamente Manual da delicadeza. Espero que o(a) eventual leitor(a) concorde comigo que ler poemas é uma forma de nos distanciarmos do embrutecimento.

Em 2002, Hebe Coimbra organizou um conjunto de textos de Murray escritos em períodos de tempo diferentes e que tinham como destinatário o público adulto: Poesia essencial (Editora Manati). Dois poemas ali reunidos me deram o que pensar quando estava na preparação desta postagem. Reproduzirei os dois abaixo:

ESCRITA
 
com seus labirintos vazios
o que dói é a vida
o destino desarrumando as esquinas
 
um mistério atravessa 
nossos olhos distraídos
como um barco que invisível
cruzasse as montanhas
 
o que dói é a vida
e sua indecifrável escrita

 

 

ESTILHAÇOS
 
hoje alguma coisa se quebrou
como um cálice atrás do palco
todos os dias alguma coisa se quebra
varrer para debaixo da alma
essa água quebrada
esse silêncio estragado
 

Quem dera que tudo fosse literatura. Mas a realidade, essa escrita que passamos o tempo todo nos esforçando em desvendar, nunca descansa. Não para de despedaçar as coisas, estragar os silêncios. 

Porém, meu texto preferido na coletânea é este:

 
A MESMA FONTE
 
eu quero te contar
a minha vida
espalhar na mesa
os vidrilhos as lãs
com que fiei meus sonhos
e te falarei dos meus infernos
e precipícios
de quantas mortes morri
enquanto me olhava no espelho
eu quero te falar
de longas esperas
em plataformas vazias
te falar de um trem
que nunca chegava
de um navio de areia
escorrendo entre os dedos
eu quero te contar
a minha vida
em suas insignificantes
nuances
sem esconder os fantasmas
nos bolsos internos da alma
eu quero te contar
a minha vida
no que ela tem de náusea
e desejo
amassando as palavras
como se fossem de argila
eu quero te falar
dos ventos que embaralhavam
a casa
das minhas caixas e cofres
das minhas magoadas estrelas
eu quero te falar
da minha vida
como se escrevesse em tua 
pele
e me inscrevesse nela
porque em algum recanto
sombrio
a minha vida tem folhas
que são da tua
e não me pertence apenas
o meu cotidiano
é feito com a mesma
esgarçada renda do teu
e nesse lugar
à beira do imaginário
nos encontramos
e bebemos da mesma fonte

 

É difícil demais encontrar alguém com quem se possa "falar de longas esperas/em plataformas vazias", "de um trem/que nunca chegava", alguém que perceba que nosso cotidiano "é feito com a mesma/esgarçada renda". 

No seu blog (que não é atualizado há anos, é preciso dizer), Roseana Murray anotou numa postagem:

"Logo no princípio do Dr.Fausto, do Thomas Mann, lemos que nem as religiões podem reprimir as forças arcaicas e destruidoras que habitam o homem. Apenas a literatura pode fazer isso. Escrevo sentada num Café e não tenho o livro comigo para fazer a citação exata. Mas é mais ou menos isso. Sabemos que os regimes totalitários sempre queimaram livros. A própria Igreja Católica tinha o seu índice de livros proibidos. Penso que essas forças arcaicas podem sim ser domadas com a literatura, pois é quando nos misturamos com um personagem, assumimos sua vida e suas dores, que aprendemos a compaixão no melhor sentido da palavra e exercitamos a empatia".
 
Talvez seja depositar uma confiança exagerada na arte literária.  

Mas, se a alternativa é o embrutecimento, por que não?

_______________

¹ Aqui em Belo Horizonte, o Decreto Nº 11.215/2002 proíbe a livre circulação dos pitbulls sem o "uso de focinheira e correntes". No nível estadual, a legislação não é tão categórica em relação aos apetrechos exigidos para controlar os pitbulls (e outros cães ferozes) quando saem para a rua. A Lei Nº 16.301/2006 menciona que é "obrigatória a utilização de equipamentos de contenção do animal" (artigo 6º), mas não há detalhamento (basta apenas coleira simples? e quanto à focinheira, não precisa?). Essas regras, contudo, entram para o grupo daquelas incontáveis leis que "não pegam": o artigo 4º  da norma estadual explicitamente proíbe "a adoção, a procriação e a entrada de cães da raça pitbull no Estado", mas esses impedimentos não tem significado quase nada.

² Embora o município de Saquarema (onde reside Roseana Murray) tenha em torno de 90 mil habitantes, não dá para ser considerada uma cidadezinha singela do meio rural, pois não está tão distante assim da capital do Rio de Janeiro.

BG de Hoje

Registros (em áudio ou vídeo) de performances musicais ao vivo raramente me agradam. Entretanto, essa apresentação de TINA TURNER na segunda metade dos anos 1980, interpretando Addicted To Love, de Robert Palmer, é sensacional. Na época, a cantora estava em turnê pela Europa, embora eu não saiba exatamente em que ano e em que cidade ocorreu a gravação abaixo. A interação com o público (e a própria euforia da plateia), a boa disposição dos músicos, os diferentes ângulos da filmagem, o jeito de dançar - meio engraçado, mas bacana - de Turner, a voz poderosa... tudo resulta numa combinação de arrasar!