A expressão "doente de Brasil", pelo que se sabe, apareceu em julho de 2019, cunhada pelo psiquiatra Fernando Tenório. A postagem no Facebook em que o médico usou o termo viralizou, inspirando, por exemplo, uma coluna da jornalista e escritora Eliane Brum, publicada na (extinta) edição brasileira do jornal El País em agosto daquele mesmo ano. Brum relatou como a chegada de Bolsonaro ao poder há quatro anos, associada aos nossos graves problemas sociais (como o desemprego ou a precariedade das ocupações que segmentos de trabalhadores conseguem encontrar), afetou negativamente a saúde mental de parte da população. "País que ultrapassou a possibilidade das metáforas, a toxicidade do Brasil abrange todas as acepções", escreve ela.
O autora aponta que esse adoecimento tem a ver também com "a destruição da palavra como mediadora" - não custa lembrar que o (agora) ex-presidente é um mentiroso em série e seus apoiadores usam e abusam do expediente das notícias falsas e das teorias conspiratórias. O sujeito não está mais à frente do poder executivo federal, mas as ações ultrajantes de muitos de seus sequazes (e daqueles que o usaram como títere, ou seja, membros das famigeradas forças armadas brasileiras) poluíram de vez o espaço público. "É preciso dizer: não vai ficar mais fácil. Não estamos mais lutando pela democracia. Estamos lutando pela civilização", lê-se ao final da coluna.
Partindo da mesma expressão, a revista piauí publicou em novembro de 2019 a matéria Doentes de Brasil: conversas sobre traumas políticos. A repórter Julia Sena acompanhou seções de uma roda de conversa organizada pelas psicólogas Simone Villas Bôas e Marcela Lima no Rio de Janeiro. Villas Bôas afirma que o termo "diz respeito a todos que se sentem prejudicados pela atual configuração social e política" e Lima acrescenta que "o discurso de ódio do bolsonarismo fere a subjetividade daqueles que não compactuam dele. Quem apoia esse discurso já está adoecido".
Talvez o(a) eventual leitor(a) esteja se perguntando: "Pra que falar disso agora? A eleição já passou e um novo presidente assumiu. Não é hora de seguir em frente?". Não dá pra fazer isso. Há um golpismo latente, com forte penetração entre os militares e forças de segurança (polícia federal e polícias estaduais). Há muitos indivíduos fanatizados e agressivos, membros de uma seita, cujos exemplos mais em evidência foram os "patriotas" acampados em frente a quartéis e aqueles que depredaram o plenário do STF, o Palácio do Planalto e o Congresso no dia 8 de janeiro. É esse caldo de cultura, junto com outras marcas da nossa política e da nossa sociedade, que me fazem também um doente de Brasil.
Entre as marcas que mencionei acima, uma das mais perversas é o racismo estrutural, que leva a situações como a que Hislla Ramalho discute em seu texto publicado dias atrás no Portal Geledés. Pela forte concordância com seu teor, vou reproduzi-lo aqui na íntegra. NOTA: É óbvio que havia pardos e pretos entre os bolsonaristas que vandalizaram as sedes dos Três Poderes, mas basta observar as imagens daquele dia para constatar que a grande maioria era branca (ou assim percebida, levando-se em conta o peculiar colorismo brasileiro).
A Branquitude pode tudo? Uma breve reflexão sobre a consolidação do nazifascismo no Brasil,
por Hislla Ramalho
O atentado contra a democracia, contra o resultado das urnas (2 e 31 de outubro de 2022), realizado no dia 08 de janeiro de 2023 em Brasília por terroristas, mostra ao Brasil e ao mundo que não se pode compactuar ou se calar diante da construção fascista-nazista que vinha/vem ocorrendo contra o Estado Democrático de Direito há pelo menos 5 anos. Depois do impeachment em 2016, já podíamos ouvir expressões e xingamentos contra os três poderes. Esses discursos tomaram força nas redes e na mídia, à medida que um governo antidemocrático estava no poder, inflando ataques visando enfraquecer as bases democráticas e, consequentemente, agir contra a Constituição Cidadã de 1988.
Considerei o dia 08 de janeiro de 2023 um dia de consolidação, de ápice; um dia de ver explicitamente a manifestação física do fascismo no Brasil. Entre quebra de patrimônio, quebra dos prédios representantes dos três poderes, palavras de ordem contra o presidente e outros agentes públicos, os terroristas foram escoltados, acompanhados, para fazer tais violações pelo próprio poder de força do Estado brasileiro – a polícia. Ao ver as terríveis cenas, duas perguntas me ocorreram: e se fossem pessoas negras que estivessem ali? A branquitude nazifascista pode fazer tudo?
A primeira questão me traz à memória os vários casos acontecidos que envolvem esta força abusando de seu poder e matando o povo preto, seja por “confundir” uma sombrinha com um fuzil ou por suspeitar que um cantor seja um bandido, dentre vários outros casos que sabemos; há um genocídio negro no Brasil, instaurado por necropolíticas, epistemicídios, prisões em massa, chacinas e assassinatos da população negra.Sueli Carneiro também denunciou utilizando dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Evaldos, Genivaldos, Rodrigos, Adalbertos, Kathlens, Ágathas etc. Sendo assim, é gritante a diferença do tratamento dado pela polícia à branquitude nazifascista e à população negra. Nós morremos por muito menos, por menos, por nada, por existir.
Se fossem pessoas negras, indígenas, estudantes, professores, dentre outras e outros que estivessem ali e não fazendo metade do que foi feito - diga-se depredado, violado neste dia (08/01/2022) -, a punição, o tratamento, seriam outros; teríamos bombas de gás lacrimogênio, surras de cassetetes, balas de borracha ou pior, dentre outras formas de “contenção”. Diante do infeliz acontecido e da rápida discussão aqui feita a pergunta sobre a branquitude nazifascista entra em evidência. Eles podem fazer tudo?
A questão surge como uma maneira de chamar atenção para quais serão as providências tomadas daqui em diante, como será tratado judicialmente cada indivíduo terrorista que agiu de má fé contra o Estado Democrático de Direto. Se dentro de determinada situação pessoas negras não têm direto a um tribunal ou corte por serem executadas e julgadas no instante do acontecimento, a branquitude tem essa garantia, e pelo menos judicialmente aguardamos as punições cabíveis.
BG de Hoje
Distopia, um dos mais recentes singles do PLANET HEMP, foi lançado ano passado, quebrando um jejum de mais de duas décadas da banda, em matéria de canções novas. Com participação do CRIOLO, a faixa não desagrada antigos fãs (como este blogueiro).